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Contemporâneo: percepcionar o obscuro do tempo

II — DO PRESENTE AO PASSADO

1. Contemporâneo: percepcionar o obscuro do tempo

Antes de observar a situação da dança e do teatro na nossa contemporaneidade convém talvez esclarecer com clareza o que se pode entender por contemporâneo. Neste sentido, o filósofo Giorgio Agambem (2008) apresenta a questão com extrema lucidez:

Il contemporaneo é colui che percepisce il buio del suo tempo come qualcosa che lo riguarda e non cessa di interpellarlo, qualcosa che, più di ogni luce, si rivolge direttamente e singolarmente a lui. Contemporaneo é colui che riceve in pieno il fascio di tenebra che proviene dal suo tempo.59 (p. 15)

No seguimento desta ideia, partilho também a posição de Agambem (2008) quando esclarece a sua posição sobre o presente:

Il presente non é altro che la parte di un non-vissuto in ogni vissuto e ciò che impedisce l’accesso al presente é appunto la massa di quel che, per qualche ragione (il suo carattere traumatico, la sua troppa vicinanza) in esso non siamo riusciti a vivere. L’attenzione a questo non vissuto é la vita del contemporaneo. Ed essere contemporanei significa, in questo senso, tornare a un presente in cui non siamo mai stati.60 (p. 22)

Esta definição sustenta a importância da atenção à nossa contemporaneidade. O criador contemporâneo procura esta atenção e vivencia este presente, o presente no qual nunca estivemos, paralelamente ao próprio presente, representando ele próprio, o presente contemporâneo.

A escrita cénica contemporânea delineia-se através de convenções, objecto de interrogações, que põem em causa os pressupostos da relação entre realidade e ficção. Esbatem-se as distinções entre géneros e o papel do encenador confunde-se com o do coreógrafo. O teatro já não é somente a

59 O contemporâneo é aquele que percepciona o obscuro do seu tempo como qualquer coisa

que lhe pertence e não pára de interpelá-lo, qualquer coisa que, mais que toda a luz, se dirige directa e unicamente para ele. Contemporâneo é aquele que recebe em plena cara o feixe de trevas que provêm do seu tempo.

60 O presente não é outra coisa senão a parte do não-vivido em todo o vivido e aquilo que

impede o acesso ao presente é justamente a espessura deste presente, o qual por qualquer razão (o seu carácter traumático, a sua proximidade excessiva) não estamos prontos para viver. A atenção sobre este não-vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo, neste sentido, significa retornar a um presente no qual nunca estivemos.

interpretação de um texto e, sobretudo, o próprio texto é ultrapassado não tanto pelo gesto ou pela imagem, mas pela imediatez de uma experiência física ou mental que ultrapassa qualquer transposição simbólica, dirigindo-se directamente ao espectador. O dramaturgo Antonin Artaud já afirmava este conceito de teatro sem mediação. Escreve Alfonso Cariolato (2005):

D’altronde il teatro di Artaud, attraverso il rifiuto radicale del concetto di imitazione nell’arte, apre decisamente all’esistenza in quanto tale senza alcuna mediazione, apre alla «carne» dunque, tanto che in lui teatro e corpo si rimanderanno vicendevolmente fin quasi a confondere i loro stessi abiti e confini.61 (p. 107)

Cai a ideia de espectáculo como narrativa formal para se deixar espaço às solicitações físicas e sensoriais do imediato. E é neste sentido que encontramos a contemporaneidade acima referida. Tudo acontece no imediato, no presente, no instante, observando o futuro já no presente vivido.

O criador contemporâneo consegue assim descobrir «as partes da sombra, a sua íntima obscuridade», citando as palavras de Giorgio Agambem (2008, p. 14), consegue, como acima referido, «retornar a um presente no qual nunca estivemos», como se a nossa existência se construísse cada vez mais a partir de pequenos fragmentos de momentos.

Para Michel Maffesoli, o conhecido sociólogo francês, vivemos «un presente tragico, in un eterno susseguirsi di istanti che fanno, della vita di ciascuno, un dionisiaco e disperato inno alla sopravvivenza.»62 (2005, p. 30).

O criador contemporâneo presencia esta contemporaneidade enquanto transformador destes fragmentos de instantes do presente em futuro, fracturando a própria realidade, transformando-a em futuro:

Quero eu dizer: as exigências subterrâneas que o artista antecipa não chegariam trazidas pela fatalidade, ainda que ele as não tivesse previsto. Tendo-as adivinhado antes dos outros, tendo-as exprimido antes do seu tempo, desloca o seu

61 De outro modo, o teatro de Artaud, através da recusa radical do conceito de imitação na

arte, abre-se decididamente à existência enquanto tal sem nenhuma mediação, abre por isso à «carne», de forma a que nele, teatro e corpo, irão reviver-se mutuamente até quase confundirem os seus próprios hábitos e limites.

62Um presente trágico, num eterno suceder-se de instantes, que fazem da vida de cada um

calendário. Intervém no curso do tempo, transformando o presente (realidade) para fazer desabrochar nele elementos imperceptíveis para a maior parte dos olhares. Melhor: a acção que a sua obra representa não só antecipa o futuro, mas transforma radicalmente o presente (e, portanto, o futuro). É uma espécie de acto performativo que o artista efectua. Diz: “eis o futuro” e, fazendo-o transforma e mostra outro presente que, pelo seu gesto, inaugura já outro futuro. (Gil, 2001, p. 209)

Nesta performatividade temporal, a nossa época parece viver uma transformação que resulta na descoberta de novos suportes, cujo resultado evoluiu numa impossível classificação dos objectos artísticos.

Mas a minha ênfase vai para a velocidade com que tudo isto acontece que, se, por um lado, confirma que é este o caminho do desenvolvimento da nossa época e claramente o nosso motor, por outro lado, convoca o espectro da incerteza acerca dos objectos artísticos que circulam e através dos quais temos de nos descobrir, causando uma estranheza na nossa capacidade de os pensar:

Um qualquer olhar que dirija a sua atenção sobre a situação cultural das últimas décadas notará a multiplicação de produções artísticas e eventos sociais de índole estética que não se conciliam bem com as estruturas mentais e os esquemas interpretativos habitualmente associados à esfera de significações da obra de arte ou ao campo experiencial da fruição estética. O que poderia significar, numa primeira análise, que o panorama oferecido pelas artes actuais se teria alterado tão rapidamente e o leque das suas manifestações diversificado a um tal ponto, que tanto a nossa capacidade de as pensar como a nossa linguagem se veriam reiteradamente confrontadas com a estranheza perante formas cada vez mais heterogéneas e, nessa medida, difíceis de assimilar e classificar. (Serrão, 2007, p. 71)

Como justamente sustenta ainda Adriana Serrão (2007) «estaríamos a assistir a uma alteração da experiência perceptiva da realidade, a par de uma mutação profunda da própria realidade» (p. 72).

Este movimento é inapreensível no tempo de que dispomos, porque apesar de termos sido os responsáveis por esta multiplicação vertiginosa de imagens e tecnologias, enquanto humanos ainda não conseguimos controlar este sistema complexo. Isto provoca uma alteração na observação das obras de arte, como nos lembra Gilles Lipovetsky (2009) quando afirma que «a atitude propriamente estética ou contemplativa foi suplantada por um consumo de imagens incessantemente renovadas que não se destinam tanto a ser vistas como a ser consumidas em grande velocidade» (p. 305).

A este propósito parece-me importante referir aqui Christine Greiner, no livro Pistas para Estudos Indisciplinares (2005):

[Pensar em uma co-evolução entre corpo e ambiente, entre cognição e cultura] — Rompe com a ideia de influência, na medida em que entende a relação entre corpo e ambiente em movimentos de mão dupla. Ou seja, não é a cultura que influencia o corpo ou o corpo que influencia a cultura. Trata-se de uma espécie de contaminação simultânea entre dois sistemas sígnicos onde ambos trocam informações de modo a evoluir em processos, juntos. A cultura simbólica não seria nada além do que uma resposta para o problema da replicação de sistemas sígnicos, apresentando diferentes soluções adaptativas para situações diversas. (pp. 103-104)

Estes aspectos são relevantes porque, como aqui referido, a existência de uma «espécie de contaminação simultânea» entre o corpo e a cultura faz nascer esta nova corporeidade multifuncional que se sustenta através do pleno reconhecimento da descoberta do seu presente.

A existência de limites entre corpo e cultura é pura ficção: o corpo representa a cultura assim como a cultura se representa através do corpo. Considerar sobretudo a hipótese de uma constante reorganização das informações, que o corpo leva e traz da experiência que vivencia em cada momento da sua existência, parece ser o caminho mais significativo. É-o sobretudo face à violência com que a velocidade anula estas possíveis transacções de que o corpo necessita para conseguir sempre situar-se e encontrar uma identidade, individual e colectiva, dentro e fora de si mesmo. Mas então que corporeidade/contemporaneidade pretendo discutir agora?

Sugiro a construção desta corporeidade contemporânea através da consolidação de um corpo onde seja possível racionalizar o sensível, na criação de um analogon rationis (análogo da razão):

Um complexo dinâmico de potencialidades, talentos e dons naturais com uma ampla função de recepção, de produção e de crítica: engloba não só a capacidade de apreender e reproduzir novas combinações entre esses dados e ainda a faculdade de julgar e emitir apreciações. (...). O analogon rationis possui uma lei própria: o princípio da probabilidade ou da verosimilhança, segundo a qual não procura determinar a verdade de que é, mas inventar o que pode vir a ser: a obra artística. E é orientado por uma finalidade específica, a de atingir a plenitude do seu conhecimento. (Serrão, 2007, p. 20)

Nesta não determinação de verdades mas invenção «do que pode vir a ser», encontro a corporeidade do intérprete contemporâneo, quase como se

este quisesse habitar este seu presente, projectando-se num futuro desconhecido.

Nesta multiplicação de géneros inclassificáveis, nasce, como consequência, um corpo híbrido, que necessita de um grande poder de adaptação e de uma reinvenção constante. Um corpo que descobre a sua identidade através do reconhecimento e da aceitação do abatimento de fronteiras: direi um corpo quase utópico, enquanto lugar de cruzamento de linguagens que só podem encontrar-se neste corpo quando ele começa a reconhecer-se como objecto e sujeito destes cruzamentos.

Mas estaremos então a falar de um novo conceito de corpo?

Amelia Jones, citada aqui por Bragança da Miranda (2008), afirma que «o corpo é algo recente, pelo menos na forma em que, hoje, se apresenta» (p. 155). E Cunha e Silva (2001) também salienta que «hoje, sabemos menos o que é o corpo: sabemos mais sobre as suas possibilidades.» (p. 175).

Neste «corpo recente» são justamente estas possibilidades que, representando a multiplicidade social, se reflectem nele, permitindo-lhe descobrir-se como lugar especular do século XXI.

O corpo reinventa-se e actualiza-se como espaço de inúmeras possibilidades de criação, assim como a sociedade vivencia uma multiplicidade do possível. Estas possibilidades potenciam-se no corpo do intérprete contemporâneo, favorecendo a representação e a ficção de si próprio. O corpo afirma-se como lugar da confirmação, como espaço onde a acção se torna possível, onde as coisas acontecem, onde o imaterial se torna visível, ponto de «ancoragem», enfim, o corpo é o lugar das urgências do mundo e mesmo a alma é «apenas uma palavra para designar algo no corpo», como diz Nietzsche.

Neste sentido, este corpo, que vem antes de qualquer outra coisa (a divisão entre matéria e espírito, entre realidade e ideia, entre sujeito e objecto), abre o caminho a uma nova ideia de corporeidade que sustenta a construção do Terceiro Corpo. Trata-se de um «corpo do meio», um corpo aristotélico do terceiro milénio, um corpo mais próximo das suas percepções e atento às suas decisões, que procura a liberdade necessária para se mover no mundo, um corpo que consegue sustentar um pensamento.

O Terceiro Corpo é o corpo sensível, síntese de todas as convergências e divergências, que possibilita um pensamento acerca da criação numa perspectiva contemporânea e dinâmica:

L’intelligence, dans son inaptitude à suivre le vital, immobilise le temps dans un présent toujours factice. Ce présent, c’est un pur néant qui n’arrive pas à séparer réellement le passé et l’avenir. Il semble en effet, que le passé port ses forces dans l’avenir, il semble aussi que l’avenir soit nécessaire pour donner issue aux forces du passé et qu’un seul et même élan vital solidarise la durée. La pensée, fragment de la vie, ne doit pas dicter ses réglés à la vie. Tout entière à sa contemplation de l’être statique, de l’être spatial, l’intelligence doit se garder de méconnaitre la réalité du devenir.63 (Bachelard, 1992, p. 17)

A liberdade encontra-se no momento, entre o estímulo e a resposta, em que o sujeito exerce o seu poder de decisão e de escolha.

Numa perspectiva ambígua de ter ou ser, um corpo estabelece-se e fortifica-se numa possível representação do Eu, como confirma Pontremoli (2005): «L’ambiguità costitutiva dell’essere e dell’avere un corpo, se rappresenta la condizione di possibilità della relazione interpersonale, è anche alla base della rappresentazione del se.»64 (p. 256).

João Fiadeiro (1999), enquanto criador do Re.Al, centro de investigação sobre o corpo contemporâneo, afirma, no que diz respeito ao lugar do pensamento no corpo:

Quando vejo um trabalho da Vera (Mantero), ou do Jerôme Bel, quando vejo um trabalho onde pressinta imediatamente o pensamento e não o corpo, onde me aperceba de forma clara que aquele corpo só serve para suportar um conceito ou um pensamento, é que eu me ligo, de facto, ao espectáculo. (pp. 79-80)

Podemos afirmar que se exige do Terceiro Corpo encontrar-se perfeitamente enquadrado num discurso de potenciação do pensamento

63 A inteligência, na sua inaptidão para seguir o vital, imobiliza o tempo num presente

sempre factício. Este presente é um puro nada que não chega a separar realmente o passado e o futuro. Parece, com efeito, que o passado transporta as suas forças para o futuro; o futuro parece também ser necessário para dar saída às forças do passado: e que um só e mesmo elan vital consolida a duração. O pensamento, fragmento da vida, não deve ditar as suas regras à vida. Completamente entregue à sua contemplação do ser estático, do ser espacial, a inteligência deve evitar a ignorância da realidade do devir.

64 A ambiguidade constitutiva de ser ou ter um corpo, caso represente a condição de

através do corpo: pretende tornar-se visível um corpo, entendido como lugar de convergência de hipóteses, um corpo hipótese, onde a teoria possa ser lugar de comunicação efectiva e de praxis. Aceita-se no Terceiro Corpo uma hierarquização das faculdades comunicativas e não se estabelece que esse mesmo corpo desenvolva os seus enunciados a priori: a cada construção ele disponibiliza-se para todo o mundo sem conceitos a priori. A escrita cénica

contemporânea desenvolve-se a partir do pensamento dos seus actos e

necessita de um «corpo enquanto pensamento». Não é o corpo que é a dança, mas sim os conceitos subjacentes a esse corpo que modificam os caminhos de construções pedagógicas, sendo estes pensamentos o próprio corpo.

Não temos forma de não aceitar o corpo, mas este corpo será sempre um lugar de potencialidades que não se esgotam se procurarmos tornar evidente o pensamento através dele, se não o dividirmos, concebendo-o apenas como corpo — res extensa, se derivarmos dele uma linguagem coerente, isto é, aquilo que ele quer dizer e que de facto diz.

2. Do conceito de modernidade ao de contemporaneidade na