• Nenhum resultado encontrado

III — METODOLOGIA: UMA MESQUITA NO GROUND

2. Objectivo do estudo

O objectivo deste estudo consiste em desenvolver um percurso reflexivo sobre o conceito de Terceiro Corpo. Procura-se uma proposta de intervenção que não pretende ser um método fechado. Trata-se de estabelecer uma referência epistemológica — o Terceiro Corpo — que é lugar de um abatimento de fronteiras (entre vários géneros e categorias artísticas) e ponto de encontro de múltiplas áreas de estudo. Pretende-se construir um espaço de investigação onde seja possível estabelecer uma estratégia capaz de interrogar, transformar e enriquecer a formação do intérprete, através do diálogo transdisciplinar, inerente à natureza do corpo sensível, e comunicante.

Propus-me ensaiar novas abordagens metodológicas que pudessem utilizar o conceito de Terceiro Corpo como uma possibilidade de repensar as metodologias estruturais da formação do intérprete. Através disso, procura- -se transformar o sentido do saber num percurso onde as biografias de cada um são aceites como parte integrante da formação do intérprete.

Para o intérprete não se tornar dependente dos métodos que lhe são impostos, é necessário criar ferramentas que o consigam deixar soberano dos seus actos, ou seja, capaz de ser mais do que um mero executante, ao transformar e metamorfosear, consciente e constantemente, os seus materiais. Para que isto possa acontecer, é importante a tomada de consciência da própria biografia (consciência-de-si)120 e a compreensão da

«decisão cénica consciente», através das quais o intérprete adquire determinadas qualidades cénicas relevantes ao longo da sua formação, no sentido de estas modificarem activamente o seu percurso.

Volto, assim, à questão fundamental apresentada no início desta dissertação: «Aquele actor está sempre pronto para tudo sem nunca saber o que irá fazer.»

3. Metodologia

A preocupação da fenomenologia é dizer em que sentido há sentido, e mesmo em que sentidos há sentidos. Mais ainda, nos fazer perceber que há sempre mais sentido além de tudo aquilo que podemos dizer. (Rezende apud Gehres, 2001, p. 37)

Nesta investigação procurei construir um percurso inverso do tradicional: analisar a passagem de uma disciplina prática para uma investigação teórica e científica, numa altura em que os processos teóricos e práticos se manifestam cada vez mais intrínsecos uns aos outros.

O resultado desta investigação é uma reflexão aprofundada sobre a evolução e a afirmação da escrita cénica contemporânea, com vista à fundamentação de uma proposta de intervenção na formação do intérprete. Em síntese, procura-se dar uma resposta aos problemas que têm surgido a partir das observações empíricas realizadas durante todo o trabalho desenvolvido em instituições de formação para actores e bailarinos.

A presente investigação, de carácter interpretativo, exigiu uma reflexão de natureza subjectiva, holística, fenomenológica e autobiográfica. Procura-se sustentar o conceito de «verdades provisórias», tal como afirma Adriana Gehres (2001):

Rompendo com a noção de Ciência neutra e objectiva, positivista em sentido latu, filósofos modernos como Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Ricoeur e pós-estruturalistas como Foucault introduziram a subjectividade e o indivíduo como elementos desencadeadores da criação científica, aqui entendida como verdades provisórias. (p. 34)

Apresenta-se uma fundamentação de ordem fenomenológica acerca do comportamento humano enquanto fenómeno de observação e interpretação em toda a sua subjectividade:

Essa atitude [de abertura do ser humano para compreender o que se mostra] é apresentada por Heidegger ao referir-se ao método fenomenológico de investigação (método tomado do grego meta-odos — meta significando após, além, e

odos significando caminho — poderia ser traduzido para além do caminho, ou continuar o caminho). (Fazenda, 2002, p. 156)

Presentemente, consigo observar um processo artístico pessoal constituído por três momentos decisivos: um primeiro, onde o mais importante era «fazer» (mais especificamente, «imitar» ou «executar» os movimentos dados pelos coreógrafos); um segundo, onde surgiu a necessidade de uma profunda reflexão acerca desse «fazer» (tentar compreender os fenómenos que permitem esse «fazer»); e, um Terceiro (Corpo), onde o cruzamento entre o fazer e a sua reflexão levou à

incorporação da reflexão do «fazer». Já não é o corpo que só «fazia»,

também já não é o corpo que reflectia sobre esse «fazer» mas é “este”

Terceiro Corpo — disponível, híbrido e não hierárquico — que incorpora

todo este processo. Torna-se assim possível, por um lado assumir e desenvolver uma pedagogia e, por outro lado, estruturar o processo metodológico fundamentado nesta dissertação.

Nesta dissertação, existe uma recolha de dados analisados de forma académico-científica, fundamentados através de conceitos e teorias, interpretados e, consequentemente, sistematizados. Trata-se de materiais de natureza efémera, razão pela qual assumimos a subjectividade da percepção como espaço de reflexão e acção:

A nossa percepção e a nossa presença perceptiva no mundo estão além do juízo positivo ou negativo, de críticas e opiniões negativas. Nesse sentido, a fé perceptiva é mais velha do que qualquer juízo, e a experiência de habitar o mundo por meio do nosso corpo, e essa experiência revela-se verdade, independentemente de ser visível ou não. Assim, perceber ou imaginar são apenas duas formas de pensar, sabendo que o imaginário não é um pensamento de ver ou sentir, mas de ter uma imanência de verdade sobre o que não é visto nem poderá ser sentido. O mundo é o mesmo para todos, porque ele é o que julgamos perceber e esta é a única verdade, sendo que a fé perceptiva é a forma mais certa de contacto e relação com o mundo. Assim sendo, tanto a filosofia como a arte não trazem respostas às ansiedades humanas, às questões às quais tentam responder e que são anteriores à nossa vida e à nossa história, e a maior parte das vezes não encontram respostas. (Oliveira, 2007, p. 147)

O próprio decorrer prático da investigação, acompanhado paralelamente de toda a reflexão teórica, levou à adaptação do método de pesquisa. Começou-se pela construção de um curto questionário dirigido aos intérpretes/alunos acerca da metodologia de trabalho, com o objectivo de melhor compreender as suas percepções e atitudes face ao desenvolvimento da formação. Por este motivo foram colocadas duas questões abertas sobre

os aspectos considerados essenciais para a construção da metodologia. As questões apresentadas foram:

1 — Tendo em consideração a partitura Eu, Eu e Os Outros, Eu e O Outro, descreve a tua acção.

2 — Em que medida esta partitura cumpre metodologicamente os objectivos da compreensão cénica.

Este questionário foi aplicado aos intérpretes solicitando uma resposta directa. A entrega aconteceu no final do semestre formativo e todos os alunos/intérpretes, cujos nomes foram substituídos por nomes fictícios, responderam dentro de um prazo estabelecido de modo a permitir a análise dos dados. Seguimos uma perspectiva de análise de conteúdos com um enfoque fenomenológico:

O método fenomenológico não se limita a uma descrição passiva. É simultaneamente uma tarefa de interpretação que consiste em pôr a descoberto os sentidos menos aparentes, os que o fenómeno tem de mais fundamental. (Masini, 2002, p. 63)

Foi também utilizada, para análise, a gravação em vídeo como forma de registo de várias sessões. Foram observadas, com particular atenção, todas as alterações na formação do intérprete, que foram objecto de uma observação sistemática da minha parte e, também, objecto de contínuas reflexões partilhadas com o intérprete. Esta observação, na relação professor-intérprete, motivou um diálogo constante que permitiu analisar as oscilações evolutivas no desenvolvimento dos materiais cénicos, balançando conscientemente entre a objectividade das acções elaboradas e as suas observações subjectivas:

Para a fenomenologia, a unidade do mundo, antes de ser possuída pela consciência como uma realidade e identidade, existe por si só como um projecto do mundo, que o sujeito não possui mas ao qual não se cansa de dirigir. A aquisição mais importante da fenomenologia é, sem sombra de dúvida, ter juntado o extremo subjectivismo e a extrema objectividade na sua noção do mundo e da racionalidade. O mundo fenomenológico não é do ser puro, mas o de ser que surge da intersecção das suas experiências com as do outro. (Oliveira, 2007, p. 145)

A descrição da proposta de intervenção assume um carácter essencialmente reflexivo que corresponde a uma metodologia justamente baseada na prática de uma partitura (descrita seguidamente), cuja natureza pedagógica procura estimular permanentemente o intérprete a constituir-se como objecto e sujeito da construção cénica. Através disso, pretende-se levar o intérprete a criar as suas situações/problema e, consequentemente, a encontrar as necessárias respostas. No entanto, as próprias situações/problema que o intérprete cria são «sujeito» da própria construção: «Lecteurs, pardonnez-moi donc de tirer quelquefois mes exemples de moi-même: car pour bien faire ce livre, il faut que je le faisse

avec plaisir.»121 (Rousseau, 1998, p. 323).

121 Leitores, perdoem-me então usar por vezes exemplos de mim mesmo: pois para fazer