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Do conceito de modernidade ao de contemporaneidade no teatro

Nota de rodapé: o teatro começa na dança

3. Do conceito de modernidade ao de contemporaneidade no teatro

Por mais voltas que dermos, a verdade é que parecemos todos obcecados em saber o que é que é “teatro” e qual o seu papel hoje. Iremos algum dia ser capazes de nos libertar-nos (sic)? (Costa, T.B., Forced Entertainment & Teatro Praga 2008, p. 35)

Existe, desde sempre, no universo do teatro e, de uma forma geral, nas artes, uma enorme vontade de questionar os mecanismos que sustentam a criação.

Não consigo definir nenhum tipo de renovação teatral, proposto na nossa contemporaneidade, que possa ser definido como novo. É como se tudo já tivesse sido feito e tudo já tivesse sido dito. No entanto, o que observo é o tipo de fenómenos que o teatro tem estabelecido para criar convenções onde existe uma forte reflexão sobre os processos de trabalho que são cada vez mais assumidos em cena. No teatro, as criações parecem assentar constantemente no diálogo entre a realidade e a ficção, mostra-se a realidade como uma ficção e a simulação parece derrotar a própria representação. As fronteiras entre actor e personagem deixam de existir e procura-se constantemente o abatimento das identidades personagem/

/pessoa.

Estamos perante um novo ciclo de teatro, desta vez uma espécie de

teatro dentro do teatro na contemporaneidade. Todo o material teórico, os

mecanismos e as partituras do ensaio (tal como já disse acerca dos materiais da criação coreográfica contemporânea) são assumidos em cena. É inevitável a referência ao dramaturgo italiano Luigi Pirandello, que, na sua obra mais conhecida, Seis Personagens em Busca de Autor, já tinha afirmado este conceito (ver final deste capítulo). Aparece cada vez mais a pessoa, e a

personagem parece não querer ser assumida como tal, exactamente como

observámos no capítulo anterior, onde esta duplicidade acontece e o bailarino se reconhece como personagem e pessoa ou, sobretudo, considera estes conceitos irrelevantes para o trabalho criativo. O actor cose e descose, manobra e manipula todos os seus artifícios, todas as suas aparências enganadoras ou não, do mesmo modo que assume tradicionalmente a

naturalidade da sua personagem, fazendo-a perder a sua identidade (de

personagem) e reformulando todas as suas possíveis gramáticas:

A personagem, aqui sustentada por várias vozes, perde a sua identidade de sujeito, duramente ferida pela análise psicológica, e torna-se numa constelação de possibilidades, reflexo de um “eu” fragmentário que se procura e que se tenta tornar nele. O actor entrecruza-se num jogo figurativo, metafórico ou realista, deixa-se cair na cavidade do papel por um momento, partilha-o com os outros, abandona-o, volta a si mesmo: um artista a trabalhar. Livre e soberano, inventivo e abundante. (Valente, 2008, p. 15)

Este actor, «livre e soberano» (lembro-me aqui perfeitamente do princípio da tese, e da afirmação de Bob Wilson: «está sempre pronto sem

saber o que irá fazer»), manipula o presente e torna-se o lugar de uma convenção móvel, activa e imprevisível. É um intérprete que não se sustenta

através de um pré-guião, mas torna-se ele próprio o elemento que estabelece o guião. Através da sua própria acção, ele é a própria partitura cénica, ele torna-se o corpo do possível, é ele o lugar das hipóteses: «O corpo é a ferramenta essencial do nosso trabalho enquanto articulador da presença no espaço e também mobilizador da emoção, da memória, dos estímulos externos e da linguagem» (Diaz, 2008, p. 14), afirma o encenador brasileiro Enrique Diaz numa entrevista acerca do trabalho que desenvolve na sua companhia — Companhia dos Actores —:

Companhia dos Actores... O nome ecoa como um manifesto: em Enrique Diaz, o teatro é antes de mais uma história de actores. Aquela que há quase vinte anos se escreve no palco com uma companhia unida numa vagabundagem colectiva. Aquela que se mostra em cena com as personagens. Jogo de duas faces, onde o intérprete faz tanto o seu papel com uma naturalidade que não se descose, como manobra os seus artifícios espectaculares e desfaz à distância as aparências enganadoras. (Valente, 2008, p. 14)

Analisar e entender a razão pela qual estas convenções do teatro tomaram um determinado caminho é o propósito desta secção, pretendendo depois, como consequência disso, analisar o que suscitam na formação do actor que o teatro contemporâneo descobriu.

Em Abril de 2008, Enrique Diaz apresenta, no Centro Cultural de Belém, Ensaio.Hamlet, espectáculo reconhecido pela crítica francesa como

apresentação do programa de sala, questionado sobre as razões que o levam a continuar a fazer teatro, responde: «É para imprimir qualquer coisa no mundo, através dos corpos e da “fisicalidade”, fazer uma marca, uma pressão sobre o mundo» (Diaz, 2008, p. 7). Estamos a falar de Hamlet, que, sem dúvida alguma, representa o texto mais emblemático do teatro ocidental, onde residem todos os lugares mais complexos da natureza humana: «As encenações de Diaz procuram a proximidade com o público, querem desmontar os mecanismos do teatro e insistem na nudez do palco e na consequente ausência de cenários e adereços.» (Margato, 2008, p. 47R)

O espectáculo tinha uma clara identidade contemporânea na qual a

mise-en-scéne deixava lugar à mise-en-abyme110 (narrativa dentro da

narrativa). É nesta dimensão reflexiva do discurso que o teatro se decompõe e fragmenta cada vez mais, necessitando de destruir guiões pré- -estabelecidos.

Francisco Valente (2008), a propósito da apresentação do espectáculo de Henrique Diaz, A Gaivota, no Centro Cultural de Belém, afirma: «Tanto colocado por questões, como na cena, este teatro desmonta a mecânica dramática e observa a palpitação da vida no pulsar das palavras.» (p. 15)

O Teatro Praga tem vindo a afirmar-se como uma realidade no teatro contemporâneo, assumindo-se aqui também com frontalidade perante o panorama actual:

110 Na heráldica, o conceito designa o fenómeno de reprodução de um escudo por uma peça

situada no seu centro. André Gide usou-o para referir essa visão em profundidade e com reduplicação reduzida, sugerido pelas caixas chinesas ou pelas matrioskas (bonecas russas), promovendo o deslizamento do conceito para o campo dos estudos literários e das artes plásticas em geral. A mise en abyme consiste num processo de reflexividade literária, de duplicação especular. Tal auto-representação pode ser total ou parcial, mas também pode ser clara ou simbólica, indirecta. Na sua modalidade mais simples, mantém-se a nível do enunciado: uma narrativa vê-se sinteticamente representada num determinado ponto do seu curso. Numa modalidade mais complexa, o nível de enunciação seria projectado no interior dessa representação: a instância enunciadora configura-se, então, no texto em pleno acto enunciatório. Mais complexa ainda é a modalidade que abrange ambos os níveis, o do enunciado e o da enunciação, fenómeno que evoca no texto, quer as suas estruturas, quer a instância narrativa em processo. A mise en abyme favorece, assim, um fenómeno de encaixe na sintaxe narrativa, ou seja, de inscrição de uma micro-narrativa noutra englobante, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre níveis narrativos. Em qualquer das suas modalidades, a mise en abyme denuncia uma dimensão reflexiva do discurso, uma consciência estética activa ponderando a ficção, em geral, ou um aspecto dela, em particular, e evidenciando-a através de uma redundância textual que reforça a coerência e, com ela, a previsibilidade ficcionais. (Rita, 2005, s.p.)

Achamos que as denominadas «pessoas de teatro» não compreendem que a vida e o ser humano não são lineares e, se fazemos o que fazemos, não é por estarmos numa crise criativa ou porque queremos ser diferentes, NÃO, o problema não é esse, o problema é toda a gente andar a fazer a mesma coisa, e por isso mesmo, não andamos numa crise, andamos a fazer exactamente o que queremos fazer, e assim a definição (e não a «redefinição») da palavra teatro é um assunto que nos é muito caro. Teatro como um edifício-bomba-relógio. Teatro como um monstro mutante. (Costa, Forced Entertainment & Teatro Praga, 2008, pp. 35-36)

Bomba-relógio ou monstro mutante são dois termos consequentes de

um teatro que reflecte a sociedade actual, onde existe uma permanente mutação de estados e informações. É um teatro que se espelha na nossa contemporaneidade e que a cria e determina ao mesmo tempo. Se o teatro é realmente o lugar para «il vedere e farsi vedere»111 (Ortega & Gasset, 2006,

p. 39), então o teatro contemporâneo espelha a sociedade e identifica-se com e nela, sendo o lugar onde este algo é criado e representado.

Há uma espécie de falência da utopia. Nas processos criativos observa-se uma recusa sistemática, lá onde a emoção pode tomar conta do conteúdo da cena. A escrita cénica contemporânea não aceita formatar «a personagem», querendo confundir-se com ela, através dela. A tensão entre o evento (o instante efémero da apresentação) e a re-apresentação ou repetição torna-se um acontecimento recorrente nas criações. Até no teatro sem texto existe sempre um guião, uma dramaturgia de um corpo no espaço e, apesar de não existir uma verdadeira personagem, procura-se sempre uma tensão entre repetição e multiplicação de formas e criação de sentidos.

A multiplicação das possibilidades e o permanente estado de imprevisibilidade do intérprete são comparáveis à multiplicação das informações a que estamos cada vez mais sujeitos e à imprevisibilidade do estado do mundo contemporâneo. Não existem certezas, ou existem falsas certezas, e o século XXI vivencia um estado de hipérbole de informação. Assim, também não existe a certeza de uma única e possível construção de uma personagem, chegando-se até à fase de uma possível e constante dúvida entre apresentação e representação. Estamos perante a definição do indivíduo como um lugar de múltiplos acontecimentos. A escrita cénica

contemporânea reflecte e consubstancia o entendimento presente do ser

humano como o resultado de um número infinito de possibilidades, implicando um intérprete com múltiplas responsabilidades, i. e., inúmeras respostas.

A internet e o acesso múltiplo e infinito às informações carregam o intérprete de uma superlotação de possíveis sentidos, numa sociedade cada vez mais interligada. A criação confronta-se com uma indefinição permanente da sua gramática. Assim, a convenção da escrita cénica

contemporânea, onde a dança e o teatro acabam por se encontrar, nasce,

acima de tudo, a partir de uma espécie de pacto de confiança entre o intérprete e o criador e das decisões tomadas permanentemente por ambos, uma cumplicidade. O encenador parece ser mais um organizador de informações e o intérprete passa a ter responsabilidades que antes não tinha. Assume-se como co-criador, enquanto responsável pelo desenvolvimento do processo criativo; recebe e manipula as informações, estabelecendo os sentidos dramatúrgicos necessários à construção cénica. O intérprete é o lugar das hipóteses e, como consequência, é o lugar onde a ideia passa a ser um facto. Aqui nasce o sentido e a configuração da partitura cénica.

Numa entrevista que me foi concedida por Enrique Diaz, o encenador brasileiro comenta assim a importância da decisão, na criação da convenção

contemporânea no teatro:

Tudo parte de um pacto que se vai estabelecendo. Uma aceitação, no sentido em que os actores são autores do trabalho também. Mas ao mesmo tempo existe uma indefinição na minha maneira de olhar para aquilo que eu penso que possa vir a ser a peça, que será determinante na afirmação dos sentidos. Uma questão de confiança. Em última instância eu não vou fugir da decisão e, ao mesmo tempo, eles (os intérpretes) vão ter que continuar a argumentar através das decisões com que eles me respondem. (2008, Anexo 3)

É importante aqui lembrar uma frase de Romeu Castellucci numa entrevista concedida a Jean Frédéric Chevallier e Matthieu Mével:

É un carattere ancora più flagrante di questa epoca in cui la solitudine é diventata una condizione esistenziale comune a tutti. Il linguaggio é completamente

distrutto. Viviamo un linguaggio di distruzione, che é il linguaggio della comunicazione.112 (Castellucci, Chevallier & Mével, 2007, p. 115)

A transformação do teatro tradicional na criação da escrita cénica

contemporânea acontece progressivamente. Tendo em conta as palavras de

Castellucci, na nossa contemporaneidade, a destruição parece ter tomado conta da linguagem. Chegamos por isso a um teatro onde não existe um guião pré-estabelecido, que obriga os criadores contemporâneos a procurar uma quantidade de materiais cénicos possíveis, superior ao que muitas vezes os textos oferecem. O texto é posto sempre em causa e nunca é apresentado no seu lugar original: «La question n’y est pas toujours de renier le texte, mais de lui donner une autre place, moins prépondérante pour laisser les corps et la gestuelle s’emparer dans l’espace.»113 (Marzano, 2007, p. 925).

Na escrita cénica contemporânea, o texto é manipulado constantemente, provocando uma multiplicidade de sentidos que oferecem um panorama mais amplo e, ao mesmo tempo, estilhaçado das linguagens e das gramáticas contemporâneas. A dramaturgia não procura um sentido único e confronta- -se com a aceitação do visível e, ao mesmo tempo, do invisível. Todos os materiais que, no teatro tradicional, não eram mostrados, tornam-se agora parte do jogo:

O espectáculo tem uma existência dupla: um tecido visível, constituído e fundamentado por pregas invisíveis. As opções que materializam o espectáculo no plano do visível são dobradas por relações invisíveis que as integram. Dobrando para dentro, complexificando e estruturando o espectáculo, a dramaturgia implica dimensões possíveis de sentido, entretece as pregas do invisível no visível. (Pais, 2004, p. 78)

Mas como chegámos aqui, onde o teatro — e, como já vimos, a dança — passam a diluir-se em diferentes linguagens, até tornarem-se outras? Parece-me importante voltar a reafirmar que consideramos a escrita cénica

contemporânea enquanto categoria estável e reconhecível (apesar da

convergência das outras linguagens), e que pretende ser possivelmente

112 É um carácter ainda mais flagrante desta época na qual a solidão se transformou numa

condição existencial comum a todos. A linguagem está completamente destruída. Vivemos numa linguagem de destruição, que é a linguagem da comunicação.

113 A questão aqui não é continuar a negar o texto, mas dar-lhe outro lugar, menos

tratada como objecto da pedagogia, não coincidindo contudo com o lugar da

performance: «Performance art was the one place where there were so few

definitions»114 (Carlos, 1998, p. 9). Trata-se de um lugar complexo e objecto

de um cruzamento infinito de linguagens, que, no entanto, acartam definições, apesar das dificuldades que levantam, e são cada vez mais reconhecíveis e passíveis de ser estabelecidas sendo também objecto de procedimentos. A escrita cénica contemporânea, apesar de não querer ser identificada, procura uma estruturação que lhe possa permitir procedimentos pedagógicos sólidos, ao contrário da performance, que exige continuar pensar-se na fragmentação e no limiar dos materiais que utiliza. Apesar de tudo, a escrita cénica contemporânea é o resultado de uma diluição do teatro e da dança, que acontece numa época que é testemunha de outras grandes transformações que condicionam os seus fenómenos, mas não a impedem de exercer uma vontade de encontrar uma metodologia, tornando-se passível de ser ensinada.

Apesar de estarem ainda numa fase de desenvolvimento, estes procedimentos são já uma realidade e pretendem ser sistematizados e objectos da pedagogia, ou seja, deverão e poderão ser ensinados: «A noção de arte contemporânea não pode ser desligada das estratégias de legitimação e dos modos de vida das instituições que a ela são consagradas, nem de uma certa demissão crítica que o sistema produz.» (Guerreiro, 2010, p. 38R).

Vivemos um teatro contemporâneo, que, em muitos casos, já não centra no texto o seu eixo de criação mais importante. A conceituada companhia inglesa Forced Entertainment (2011), por exemplo, apresenta-se no seu site como um grupo de artistas que pretende fazer naufragar as regras clássicas do teatro: «Questioning, pushing, stretching and breaking theatre in many different ways to see what can be built from wreckage.»115

Existe uma ideia clara de subversão das regras da construção e da

114A arte da performance era o único lugar onde havia tão poucas definições.

115Questionar, empurrar, esticar e romper o teatro de muitas maneiras diferentespara ver o

comunicação com o público, dentro das quais o teatro esteve sempre confinado.

Nas linguagens artísticas, repensaram-se e reformularam-se todas as formas da criação contemporânea: «Este teatro faz-se contra molduras, formatações, convenções, contra a anulação da personalidade do actor e a favor da criação colectiva, contra os ensaios tradicionais para que este seja «um momento de explosão» (Vercruyssen & Henriques, 2004, p. 24), diz Frank Vercruyssen, um dos fundadores do grupo flamengo Tg-Stan.

Ao longo do século XIX, não foram muitos os dramaturgos que procuraram ultrapassar as regras constrangedoras dos tradicionais e grandes

mestres do teatro. Pretendo realçar o trabalho de três importantes autores

e dramaturgos que conseguiram criar uma ruptura no teatro tradicional, abrindo um caminho diferente, que, ainda hoje, contamina e influencia as dicotomias do próprio teatro e das escritas cénicas contemporâneas; são eles Luigi Pirandello (sobretudo por causa da sua obra Seis Personagens em Busca

de Autor), Antonin Artaud (que considero um autor contemporâneo) e

Bertold Brecht (autor de uma profunda reflexão sobre o teatro no século passado).

Luigi Pirandello (1867-1936), por exemplo, cria, através do seu mecanismo de desconstrução, uma ruptura com a tradição textocentrista. Em Seis Personagens em Busca de Autor (1921), o dramaturgo italiano procura desvendar o mecanismo e a magia da criação, bem como a passagem da pessoa à personagem e vice-versa. Pirandello consegue desintegrar o espaço da criação e chega a decompor todas as estruturas dramáticas criando um «teatro dentro do teatro», cumprindo assim um papel importante na ruptura com o teatro tradicional. É curioso como no dia de estreia, em Maio de 1921 no Teatro Valli em Roma, a peça teve um êxito tempestuoso e o público contestou a representação, gritando «Manicómio! Manicómio!». Uma primeira grande «bomba-relógio» das regras teatrais daquela altura, que não deixa de ser uma referência quase oculta para muitos criadores contemporâneos, porque Pirandello põe em cena os mecanismos do teatro, desvendando-os nitidamente ao espectador, factor determinante na escrita cénica contemporânea.

No palco de um teatro, onde se está a representar um drama pirandeliano, Il gioco delle parti, aparecem seis personagens que, recusados pelo autor, procuram alguém que os possa representar em cena, dando-lhes, por isso, uma consistência. Entre a surpresa geral dos actores, num contínuo desenrolar de acontecimentos, de interrupções e de recomeços caóticos, cada um deles (o Pai, a Mãe, o Filho, a Meia-Irmã, o Jovem Adolescente e a Criança) vai contar a dificuldade das relações familiares, até que chegamos à tragédia final: a Criança afoga-se na banheira e o Jovem Adolescente mata-se com um tiro. Mas aqui reside o paradoxo: estes factos podiam ter acontecido mas não acontecem, porque cada uma das personagens vive num estado fluido. O autor recusou-se a dar-lhes uma forma porque uma «forma» não reflectiria a vida e seria como admitir que cada um de nós é um só:

O drama, para mim, está todo aqui, senhor: na consciência que tenho de cada um de nós — veja — se julga «um» mas não é verdade: são «muitos», senhor, «muitos», segundo todas as possibilidades de ser que estão em nós; «um» com este, «um» com aquele — muito diversos! E com a ilusão, entretanto, de ser sempre «um para todos», sempre «este um» que julgamos ser em todos os nossos actos. (Pirandello, 2009, p. 127)

O autor, por isso, não escuta os pedidos das personagens, porque o viver em estado fluido representa a misteriosa e trágica condição existencial: e é isso que ele pretende demonstrar no seu teatro. O drama da relação entre a vida e a forma é assim reproposto não como drama de pessoa mas de personagem. Actores e público já não distinguem entre ficção e realidade. E quando se fecham as cortinas, apercebemo-nos de que o autor substituiu o drama pela impossibilidade de o representar.

Esta é a experiência do teatro dentro do teatro, onde qualquer convenção cénica resulta desmontada e onde também é posto em causa o próprio género teatral, diálogo e acção. Consequentemente, as palavras são uma abstracção vazia, cada um entende as convenções à sua própria maneira («acreditamos entender-nos» diz uma das personagens «e nunca nos entendemos»); as acções não servem, porque cada um de nós não é inteiro enquanto as cumpre116. A provocação do pseudo-drama, antes do tradicional

116 Pirandello sintetiza os objectivos fundamentais da peça, prevendo exactamente os

epílogo, abarca o público numa relação dialéctica com o autor, e faz da cena «um lugar de verificação» das concepções propostas. Isso significa um golpe definitivo em todo o teatro precedente, constituindo, parece-me, um paradigma importante do teatro contemporâneo, onde muitas vezes se pretendem desvendar os mecanismos que sustentam a escrita cénica como parte integrante do próprio espectáculo, e onde tudo deve ser visto, não se