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Metáforas, conceitos e práticas

1.1. Aprender a desaprender: pressupostos sobre a formação

do intérprete

Temos de encontrar algo que esclareça a partir de fora, algo que vá para além ou sob esta realidade, algo que nos dê uma espécie de visão em êxtase, que perdure por muito mais tempo do que a própria realidade. (Herzog & Paganelli, 2009, p. 53)

Neste capítulo, passo a descrever de forma fundamentada a minha proposta de intervenção em relação à formação do intérprete. Desenvolvi uma estratégia de trabalho a partir dos conceitos mais relevantes anteriormente abordados e que agora são apresentados com o intuito de esclarecer os aspectos práticos da proposta conceptualmente já justificada.

Ao longo da sua formação, o intérprete vive, de forma mais ou menos subjacente, um sentimento de transitoriedade que levanta algumas dificuldades para consolidar as suas experiências de forma definitiva:

O carácter transitório realiza o fluxo em detrimento à fragmentação. O significado não é fixo, como pretendia a modernidade; o conhecimento é móvel, maleável, múltiplo e depende deste carácter para manter-se. (Sloterdijk, 2006, s.p.)

Este fenómeno de fragmentação é o reflexo dos aspectos da sociedade em que o intérprete vive e a sua maneira de pensar. Esta qualidade fragmentada do seu «estar» no processo de formação é um lugar onde o intérprete se afirma, mas é, ao mesmo tempo, o lugar onde ele percepciona e manifesta dificuldades em reconhecer materiais que necessita de desenvolver: enquanto «descobridor de novas ficções» deseja ao mesmo tempo ter respostas definitivas. Isto não acontece. O intérprete pretende consolidar os seus materiais, mas as qualidades de carácter eminentemente transitório não lhe permitem que isso aconteça como ele desejaria. Por muito que deseje consolidar as suas descobertas e qualidades cénicas, o intérprete, enquanto sujeito e objecto da sua formação, não encontra mais do que uma consolidação transitória: quando isso acontece e o intérprete finalmente aceita este conceito de transitoriedade, passam a existir os pressupostos para

o início de uma verdadeira compreensão, que conduz a uma possível consubstanciação das suas qualidades cénicas. O intérprete reconhece a natureza dos princípios que regem o seu percurso e possibilita a compreensão dos fenómenos subjacentes à transitoriedade descrita.

O sentimento de transitoriedade deve-se a dois factores importantes: primeiro, à identidade pessoal do intérprete presente paralelamente à sua aprendizagem (devido à natureza evolutiva e em contínua transformação da identidade, o intérprete não consegue percepcioná-la de forma suficientemente estável): «Em todos os tipos de si em que podemos pensar, há sempre uma noção dominante: a noção de um indivíduo limitado e singular, que muda contínua e suavemente ao longo do tempo mas que, de certo modo, permanece igual.» (Damásio, 2004, p. 163). Em segundo lugar, ao facto de se trabalhar com materiais de natureza efémera e sujeitos a uma constituição impermanente.

No intérprete em formação existe uma confrontação diária entre a própria experiência vivida e todas as novas informações recebidas que, cada vez, se tornam mais incessantes e alteram as suas certezas. Em cada dia, o intérprete equaciona os conceitos das suas criações e depara-se com a necessidade de reformular e/ou reiterar as suas ideias. O intérprete é levado a formular questões e a colocar problemas sem lhes poder responder na sua totalidade e sem se poder fixar em soluções acabadas, sem conseguir encontrar repostas completas e definitivas.

Neste sentido, para que o processo de aprendizagem possa começar, o intérprete necessita de investir num processo aparentemente contrário ao tradicional: torna-se indispensável começar por aprender a desaprender. Mais especificamente, o intérprete deve procurar um espaço de possibilidades que não seja exclusivamente dependente da sua biografia e sobretudo de estereótipos comportamentais pré-estabelecidos: «Substituam a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação.» (Deleuze & Guattari, 2007, p. 200). Ele precisa, de alguma maneira, de «esquecer»:

«O esquecimento», insistira Nietzsche, «é uma propriedade de toda a acção», e prosseguira citando a frase de Goethe segundo a qual o homem de acção não tem consciência. Por isso, Nietzsche podia acrescentar, o homem de acção, o verdadeiro

poeta, «também não tem conhecimento: esquece a maior parte das coisas para poder fazer uma coisa, é injusto para aquilo que o antecedeu, e reconhece apenas uma lei — a lei do que vai acontecer». (Bloom, 1991, pp. 68-69)

Apesar de se referir ao trabalho do corpo do bailarino pós-moderno, a afirmação da investigadora Ana Mira (2008) acerca da possibilidade de criar «novas reinscrições» parece poder aplicar-se ao trabalho do intérprete contemporâneo que nesta tese investigo:

Estes processos contêm a possibilidade de intervir na transformação e mudança de formações incorporadas. No entanto, trata-se de uma prática continuada, ou seja, a desconstrução nunca é totalmente alcançada, mas o bailarino trabalha no sentido de um corpo disponível a ser reinscrito de “outras” formas. (Gardner in Dempster, 1996, p. 50) A noção de corpo pós-moderno, implícita na experiência da dança que sustenta a presente pesquisa, abre a possibilidade de desinvestir o corpo das suas inscrições destruturando-se, e de incorporar, criando “novas formações”, um outro conhecimento, com o qual se encontra comprometido (a longo prazo), manifestando-se dentro e fora do espaço da performance. (p. 21)

Este processo, de «desinvestir o corpo das suas inscrições», remete à articulação entre o conceito de «esquecimento» e de «des-aprendizagem». Se por um lado é utópico pensar que o corpo possa esquecer, por outro lado o corpo transforma-se. Ao fazê-lo e ao reconhecer esta transformação o intérprete desinveste-se das suas inscrições (entre as quais encontramos a biografia e os estereótipos comportamentais). Ele não esquece: «Aprende a desaprender», ou seja, reorganiza e recicla sentidos. Efectivamente, o intérprete procura não quando sabe, mas quando se dispõe a encontrar aquilo que não sabe: «As condições de uma verdadeira crítica e de uma verdadeira criação são as mesmas: destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si própria, génese do acto de pensar no próprio pensamento.» (Deleuze & Guattari, 2000, p. 240).

Este processo deve acontecer todos os dias, permitindo ao intérprete distanciar-se do problema dos materiais cénicos estarem sempre sujeitos a interpretação. No entanto, é necessário admitir que os materiais possam não ter nenhuma interpretação e ser apenas o que são.

Na prática pedagógica que desenvolvo, observo que o intérprete vive mal quando não consegue dar uma interpretação/sentido àquilo que faz; existe um desconforto com a ausência de interpretação. Em todo o percurso

formativo é facilmente observável que existem sérias dificuldades em enfrentar o material cénico, sem lhe atribuir uma qualquer interpretação/significação possível.

Deste modo, seria ideal conseguir que o intérprete aprendesse a não restringir cada acção a um significado específico (eliminando possivelmente a interpretação), e compreendendo que qualquer acção que faça é antes de mais uma acção e qualquer coisa que pode ser outra coisa para além dela. Mas antes disto é uma acção. Mais nada.

Se pensamos que cada uma das nossas percepções é, já em si, uma interpretação, será fácil entender a razão pela qual vivemos mal com a ausência de interpretação que, em absoluto, é objectivamente impossível: é como mergulhar num vazio, tentando anular qualquer tipo de sentido antes mesmo dele aparecer. É necessário assim criar uma tábua rasa, que permita todas as possibilidades, mas, ao mesmo tempo, não retire ao intérprete a sua identidade em contínua transformação e evolução.

Numa escola de arte, pode parecer absurdo e contraditório instituir uma pedagogia cujo objectivo consiste em conduzir o intérprete (ainda em fase de desenvolvimento estrutural) a um percurso o mais próximo possível da objectividade da acção, em detrimento da sua interpretação. No entanto, isto significa proporcionar-lhe os instrumentos necessários (numa segunda fase) a fim de estabelecer critérios e «pontos de vista» capazes de o aproximar com lucidez da criação artística. Este conceito de objectividade da acção virá ajudar o intérprete a desenvolver e compreender as ferramentas que estruturam o cerne das pedagogias das linguagens contemporâneas. O intérprete encontra dificuldade quando tenta compreender a epistemologia dos discursos cénicos, razão pela qual necessita de uma base objectiva que só a «acção não interpretada» lhe permite.

A objectividade da acção é o pilar possível da construção, fundamentação e salvação da pedagogia da escrita cénica contemporânea.

Normalmente, verifico que o intérprete que começa um caminho pedagógico nas escritas cénicas contemporâneas procura instintivamente, desde o princípio, dar um sentido a tudo o que faz. É complexo, para ele,

aceitar que um objecto ou uma acção não são nada mais, nem menos, do que aquilo que são.

É necessário estruturar o trabalho do intérprete através de um percurso onde ele possa identificar e reconhecer «os objectos» na sua objectividade. Trata-se de uma espécie de «aprendizagem da cedência»: ceder às próprias convicções, desistir dos pontos de vista pré-estabelecidos e anular interpretações subjectivas. É importante abrir um espaço onde seja possível trabalhar numa investigação consistente cujo objectivo principal não é «executar algo», mas sim entender as possibilidades que o objecto admite.

Pretende-se ajudar o intérprete a compreender a conhecida ideia do pintor Frank Stella: «Uma pintura não é mais do que uma tela com tinta em cima», ou seja, que o intérprete, a partir da objectividade das coisas, desenvolva uma subjectividade própria — o tal ponto de vista do qual derivam os caminhos da criação.