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contemporaneidade: marcas da poesia insubmissa

no cordel de Patativa do Assaré

Mirlene Sampaio Pereira Tallyson Tamberg Cavalcante Oliveira da Silva

Introdução

Denomina-se comumente a literatura de cordel como sendo a representação de uma arte popular em verso cujas raízes se encontram na cultura medieval, mais precisamente no período do Trovadorismo, entre os séculos XII e XIV na Europa Ocidental. O período em questão foi um momento na história da literatura em que se originaram as cantigas de gesta, as novelas de cavalaria, as hagiografias, as crônicas historiográficas e as cantigas trovadorescas. Estas últimas eram assim chamadas por serem composições poéticas destinadas ao canto, razão pela qual sempre contavam com um acompanhamento musical.

A tradição de versos populares com forte propensão à musicalidade não ficou, no entanto, restrita à Idade Média. O nordeste brasileiro foi e tem sido um palco de proliferação cultural da literatura popular em verso através dos cordéis. Esse gênero literário é assim denominado pela forma usual em que tais folhetos poéticos são comercializados: normalmente pendurados em barbantes, cordas ou cordéis e apresentados em feiras, bancas ou nos mercados.

Assim como toda e qualquer manifestação artística, a literatura de cordel busca representar, por meio de seus versos, os diversos matizes da mentalidade humana: pensamentos, reflexões, concepções de mundo, histórias e os mais variados

tipos de sentimentos. Tem-se percebido que na contemporaneidade, muito em decorrência de diversos acontecimentos sócio- históricos (como as guerras e as ditaduras ocorridas no século XX), uma face especial da produção literária tem sido revisitada: a que gira em torno de um viés mais engajado, voltado à crítica social, às denúncias de mazelas, enfim, uma poesia de insubmissão.

No entanto, podemos dizer que a prática poética de fala insubmissa não é um traço tão somente da contemporaneidade, pois já na Grécia antiga, o poeta Arquíloco (705-640 a.C.), produzia versos em que se instaurava uma voz de caráter insubmisso, de denúncia e crítica social. Também na Idade Média estabeleceu-se uma poética tradicional no que diz respeito a essa faceta da literatura engajada: a produção trovadoresca em sirventês, um modo poético satírico utilizado pelos trovadores para fazer críticas e exprobrações a determinados assuntos e acontecimentos. Assim, esses trovadores denunciavam, pela força da poesia, as condutas humanas mesquinhas e reprováveis, as injustiças de uma sociedade aristocrática, as tiranias dos poderosos, a vida desregrada de certos religiosos, enfim, as mazelas de toda ordem.

Tendo em vista, também, as diversas mazelas e acontecimentos contrários aos direitos humanos mais elementares – como a liberdade, por exemplo –, muitos poetas e escritores da modernidade procuraram incutir em seu ofício artístico uma voz de denúncia e insurreição, dando continuidade à tradição literária insubmissa. Entre esses literatos, podemos citar Victor Hugo (1802-1885), Paul Éluard (1895-1952), Vladimir Maiakovski (1893- 1930) e Pablo Neruda (1904-1973). Na literatura brasileira, tivemos também grandes nomes de voz insubmissa na poesia:

Gregório de Matos (1636-1696), Carlos Drummond de Andrade (1902- 1987), Ferreira Gullar (1930-2016), entre tantos outros.

Todavia, o nosso intuito no presente trabalho é o de apresentar não um extenso painel da tradição insubmissa na poesia brasileira – o que demandaria uma investigação de maior fôlego –, mas o de apontar e analisar as marcas dessa tradição literária na produção de um poeta popular contemporâneo: Patativa do Assaré (1909-2002). Assim, o nosso objetivo, aqui, é analisar os traços da mentalidade insubmissa na produção literária desse poeta cearense, buscando evidenciar, dessa maneira, o modus operandi pelo qual o cordelista efetivou a reapropriação de um substrato tradicional em sua produção poética. Para que fosse possível alcançar o objetivo apresentado, efetuamos uma operação com os conceitos apresentados no livro

Poesia insubmissa afrobrasilusa (PONTES, 1999), escrito pelo

poeta, crítico e ensaísta Roberto Pontes. A consulta à referida obra foi de fundamental relevância para a pesquisa empreendida, haja vista a escassez de material teórico destinado exclusivamente à essência da poesia insubmissa.

Por fim, ressaltamos que, dada a impossibilidade de garimparmos os modos pelo qual a feição insubmissa se fez presente em toda a tradição literária, concentramos nosso olhar na produção poética de caráter insubmisso do Trovadorismo. Essa escolha se deveu, principalmente, por ser o período trovadoresco aquele que nos legou toda uma tradição poética de viés insubmisso: as cantigas do gênero sirventês. Assim sendo, fica evidente que laboraremos, no presente trabalho, com os fundamentos da Literatura Comparada, haja vista o processo de cotejamento entre a produção poética medieval – o sirventês trovadoresco – e o cordel contemporâneo – o poema de viés insubmisso de Patativa do Assaré, intitulado “Inleição direta 84”.

Acerca de alguns pressupostos teóricos comparatistas.

Para situarmos os mínimos pressupostos teóricos indispensáveis ao cotejo das obras selecionadas, enfatizamos primeiramente que a análise operacional aqui empreendida tem como objetivo precípuo a apreensão dos substratos mentais oferecidos pelos textos literários. Os poemas, nesse caso, servir- nos-ão como manifestações artísticas cujo conteúdo nos possibilita o acesso aos substratos de mentalidade. Portanto, a decodificação dos textos literários do passado nos permite compreender traços da atmosfera mental de uma época, afinal, como nos lembra Charles Peirce, “toda palavra é um símbolo. Toda frase é um símbolo. Todo livro é um símbolo. [...] O valor de um símbolo é servir para tornar racionais o pensamento e a conduta e permitir-nos predizer o futuro” (PEIRCE apud JAKOBSON, 1973, p. 117).

Assim sendo, ao procedermos com a decodificação, análise e interpretação do sirventês trovadoresco e de cordel de voz insubmissa, estaremos laborando no terreno da tradução de sentido que nos permite o texto literário, pois, como nos esclarece Antonio Candido (2006, p. 27), “num texto literário há essencialmente um aspecto que é tradução de sentido e outro que é tradução do seu conteúdo humano, da mensagem por meio da qual um escritor se exprime, exprimindo uma visão do mundo e do homem.”. Nesse sentido, o texto literário configura-se como uma espécie de documento social, no qual o pesquisador pode acessar a essência de sentido na expressão artística, o que equivale a dizer que consegue vislumbrar traços da mentalidade social a qual se insere o poeta, como nos assevera Carvalho, ao defender que

qualquer texto poético constitui um documento social na medida em que o assunto de que trata, os termos em que é redigido, a escolha dos vocábulos que utiliza, a sua ordenação formal, o seu ritmo ou falta dele, a sua intencionalidade, tudo são sinais definidores de uma sociedade determinada. (CARVALHO, 1995, p. VII)

São, portanto, esses “sinais definidores” que nos possibilitam a chave de acesso aos substratos do período literário a que se estuda. Esse modus operandi em relação aos textos literários é o que nos permite a decodificação dos substratos mentais manifestadas nos sinais, gestos, vocabulário e símbolos contidos nas manifestações artísticas. Frisamos que esses “substratos mentais” a qual nos referimos têm o mesmo sentido e acepção do conceito de “mentalidade” que temos empregado no decorrer desse trabalho, qual seja,

plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão os anseios, esperanças, medos, angústias e desejos assimilados e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa manifestação. (FRANCO JÚNIOR, 2006, p. 184)

Assim, são os traços da mentalidade insubmissa que buscaremos apontar e delimitar na produção cordelista de Patativa do Assaré, evidenciando o trabalho de reapropriação da tradição poética de insurreição. Por isso, torna-se imprescindível o mencionado procedimento relativo à tradução de sentido dos textos aqui analisados, pois é essa operação que possibilitará o cotejamento entre a produção satírica medieval e o cordel do poeta cearense. Após, então, a decodificação desses substratos mentais de caráter insubmisso, partiremos para o cotejamento com produção cordelista de Patativa, buscando salientar, em seus versos, as principais marcas de insubmissão.

Afirmamos, ainda, que esses procedimentos comparatistas objetivando a delimitação, apontamento e análise das reminiscências da marca insubmissa na produção poética de Patativa do Assaré se inserem naquilo que Elizabeth Dias Martins intitula de residualidade literária, pois que esse procedimento analítico

se caracteriza por aquilo que resta, que remanesce de um tempo em outro, podendo significar a presença de atitudes mentais arraigadas no passado próximo ou distante, e também diz respeito aos resíduos

indicadores de futuro. Este último é o caso de artistas que, independente da estética à qual pertençam, incluem em suas obras uma linguagem precursora, sendo por isso comumente considerados artistas “avant la lettre”. Mas a residualidade não se restringe ao fator tempo; abrange igualmente a categoria espaço, que nos possibilita identificar também a hibridação cultural no que toca a crenças e costumes. (MARTINS, 2003, p. 518)

Fica evidenciada, desse modo, a proposta de cotejamento aqui empreendida: em torno das marcas de insubmissão no cordel de Patativa do Assaré. Pensamos haver, assim, situado os mínimos pressupostos teóricos e operacionais indispensáveis à compreensão do trabalho aqui proposto. É, portanto, imbuídos desse método analítico que efetuaremos a operação referente à literatura de viés insubmisso do sirventês trovadoresco para, em seguida, apontar e analisar as marcas dessa mentalidade no cordel do poeta cearense.

Em torno da tradição insubmissa no sirventês medieval.

Conforme explicitado na introdução do presente trabalho, torna-se impossível tratar e analisar, num simples artigo, a tradição poética de viés insubmisso ao longo da história literária, razão pela qual optamos por concentrar nossa atenção na produção satírica do Trovadorismo, período literário em que tal tradição se faz de forma abundante por meio do gênero poético conhecido como sirventês. Denominamos essa modalidade poética de poesia insubmissa “porque se trata daquela que encerra em seus versos uma voz insurreta.” (PONTES, 1999, p. 21)

Acreditamos ser de grande relevância a investigação aqui empreendida devido serem vagas e até insipientes as fontes e os trabalhos escritos relativos ao sirventês; como também serem de forte importância e de evidente atualidade a leitura e a análise de poemas de voz insubmissa frente às transformações e às demandas sociais. Por esses motivos, a análise aqui materializada voltar-se-á para o cotejo entre a cantiga trovadoresca de crítica

social e a produção cordelista de teor insubmisso de Patativa do Assaré, evidenciando, assim, a sobrevivência residual dessa mentalidade poética cujas raízes se encontram já na Antiguidade clássica.

Tratando do sirventês trovadoresco, Manuel Rodrigues Lapa designa-o do seguinte modo:

A cantiga escarninha toma na Provença, de um modo geral, o nome de sirventês. Pelo que respeita à forma, o sirventês em nada difere da canção, e até o nome parece indicar que a sua estrutura seguia servilmente a melodia duma canção. O tema era, todavia, diferente, tinha carácter mais objetivo, refletia as opiniões e os sentimentos do trovador sobre os homens e a vida social. Daqui necessariamente o seu carácter moral e satírico. (LAPA, 1981, p. 174)

E quanto à sua classificação, Lapa admitia “três classes fundamentais, que representam outras tantas atitudes do trovador em face da vida: o sirventês moral ou religioso, o político e o pessoal” (idem, ibidem). Portanto, trata-se de uma cantiga trovadoresca na qual a temática principal centra-se em torno da crítica e sátira a algum comportamento, pessoa ou acontecimento político, pois, nessa modalidade poética, “os trovadores encarregaram-se de fazer a reportagem dos acontecimentos mais ou menos escandalosos da época” (LAPA, 1981, p. 179). É, assim, um tipo específico das composições poéticas medievais e se enquadra, pelos motivos explicitados, na tradição satírica do Trovadorismo.

Ilustremos essa modalidade poética com fragmentos de uma composição de meados do século XIII, de autoria de Airas Peres Vuitorom e publicada no Cancioneiro da Vaticana (CV, 1088). A cantiga gira em torno de uma crítica veemente contra os que forjaram a deposição do rei D. Sancho II de Portugal: por um lado temos os cavaleiros traidores que entregaram os castelos “como nom deviam”; por outro, a alta hierarquia eclesiástica que justificava, com fraseado latino, esses atos de traição ao nobre rei. A cantiga foi escrita no fim da guerra civil, em 1247 e é

considerada uma das sátiras mais poderosas e originais da literatura trovadoresca. Frisamos que o idioma em que foi vazada a cantiga é o galego-português, estágio linguístico anterior à formação da língua portuguesa (Cf. MAIA, 1986). Examinemos o poema:

Esta cantiga é de mal dizer dos que derom os castelos como nom deviam a 'l-rei Dom Afonso.

A lealdade do Bezerra pela Beira muito anda:

ben é que a nostra vendamos, pois que no-lo Papa manda. Non ten Sueiro Bezerra que tort'é en vender Monsanto, ca diz que nunca Deus diss'a San Pedro máis de tanto: «Quen tu legares en terra erit ligatum in celo»; por én diz ca non é torto de vender hom'o castelo. [...]

O que vendeu Leirea muito ten que fez dereito, ca fez mandado do Papa e confirmou-lh'o Esleito: «Super istud caput meum et super ista mea capa, dade o castelo ao Conde, pois vo-lo manda o Papa». [...]

O que ofereceu Sintra fez come bon cavaleiro, e disso-lh'i o legado log'un vesso do Salteiro: «Sagitte potentis acute -e foi i ben acordado-:

melhor é de seer traedor ca morrer escomungado. (VUITOROM, CV, 1088)

Dada a longa extensão da cantiga, reproduzimos apenas alguns fragmentos, tal qual fez Rodrigues Lapa em sua obra supracitada (Ver LAPA, 1981, p. 182). Referindo-se ao conteúdo dessa composição, o estudioso português definiu-a como um “depoimento esmagador”, cuja “ironia, dura e amarga, flagela a corrupção do poder eclesiástico e da fidalguia militar, mancomunados naquela torpeza” (LAPA, 1981, p. 181, passim). A “torpeza” referida por Lapa diz respeito ao episódio da traição ao rei D. Sancho II pelos alcaides que, não só permitiram a sua deposição, quanto também entregaram os castelos ao conde de

Bolonha, futuro Afonso III, quebrando, assim, o juramento de lealdade para com seu legítimo senhor e rei; além desse episódio, a cantiga volta-se, também, aos altos dignatários da Igreja que imediatamente legitimavam a traição, quando não a incitavam.

Em termos classificatórios, pode-se dizer que tal composição se trata de uma cantiga de maldizer, tendo em vista que esta, ao contrário da cantiga de escárnio, apresenta críticas de forma direta, descoberta (Cf. MONGELLI, 2009, p. 185-186). Na composição em foco, observa-se a forma descoberta com que o trovador lança suas exprobrações e críticas, chegando, inclusive, a nomear aos

alcaides traidores do episódio referenciado. Por essas características de violento manifesto contra os que permitiram a deposição do rei D. Sancho II, temos que tal composição guarda um viés de caráter insubmisso, proporcionando um veemente ataque e denúncia de um funesto acontecimento, sendo este um traço inerente à poesia de voz insubmissa, afinal “[...] a palavra e, portanto, a poesia, podem ser usadas como arma, empregado este termo tanto com o significado de recurso, meio, expediente, quanto de ataque e defesa” (PONTES, 1999, p. 39).

É, portanto, esse teor de denúncia, revolta, crítica ferrenha e exprobração a um episódio histórico que faz dessa cantiga uma composição de caráter insubmisso, cujos versos escancaram a revolta e o inconformismo por parte do eu-lírico da composição, gerando a denúncia e a crítica social, chegando, com isso, a um só resultado: “o uso da palavra empenhada e, por consequência, da poesia, enquanto instrumento ou arma” (PONTES, 1999, p. 42).

Essas características elencadas da trova de Airas Peres Vuitorom fazem-na uma composição poética típica da tradição insubmissa, que gira em torno de uma denúncia, de uma crítica social, de uma exprobração a algo ou alguém. Essa cantiga é, pois, a representação de um gênero trovadoresco bastante difundido no período medieval: o sirventês. Serão as marcas dessa mentalidade insubmissa encontradas nessa modalidade poética medieval que buscaremos apontar e delimitar no cordel de Patativa do Assaré e, para isso, selecionamos um poema em

especial, intitulado “Inleição direta 84”, cuja temática aborda a campanha pelas Diretas Já em 1984 contra a ditadura militar instaurada no Brasil.

As marcas da tradição insubmissa no cordel de Patativa do Assaré

Na Serra de Santana (a três léguas da cidade de Assaré), no dia 5 de março de 1909, nasceu Antônio Gonçalves da Silva – que mais tarde viria a ser conhecido como Patativa do Assaré –, filho dos agricultores Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva. Desde muito cedo, o menino teve que trabalhar na roça, o que o impossibilitou de continuar na escola, ambiente que frequentou apenas por poucos meses. Mesmo assim, ele adquiriu hábitos de leitura e sentiu-se encantado pela poesia, começando a produzir seus primeiros versos.

Patativa do Assaré é considerado por muitos um grande poeta brasileiro, sendo um dos principais representantes da cultura popular nordestina, tendo diversas de suas obras traduzidas em outros idiomas. Sua produção poética se fazia numa linguagem simples, numa variação linguística regional. Os principais motes para a sua poesia era surgida de situações cotidianas, daquilo que via, ouvia e sonhava. Ficou conhecido nacionalmente no ano de 1964, quando o cantor e compositor Luiz Gonzaga utilizou um de seus poemas, intitulado “Triste Partida”, como letra pra uma composição musical.

Possuidor de um estilo expressivo, Patativa aborda em muito de sua poesia os valores socioculturais do povo nordestino. O poeta apresenta em sua produção literária uma realidade marcada por questões de inconformismo, manifestações sociais e culturais. Assim, o sujeito falante de seus poemas apresenta-se, no mais das vezes, como um porta-voz e não um mero espectador. Entre suas temáticas preferidas, é possível destacar situações de denúncia da realidade sertaneja, bem como questões de cunho político, êxodo rural e as diferenças entre campo e cidade. O cordel aqui a ser analisado foi publicado originalmente

em 1988, no livro Ispinho e Fulô, intitula-se “Inleição direta 84” e faz referência ao movimento civil ocorrido em 1984 que buscava reivindicar por eleições presidenciais diretas, afinal o país vivia sob o jugo de uma ditadura militar. Eis o poema:

Bom camponês e operaro A vida tá de amargá O nosso estado precaro Não há quem possa aguentá Neste espaço dos vinte ano Que a gente entrou pelo cano A confusão é compreta Mode a coisa miorá Nós vamo bradá e gritá Pelas inleição indireta. Camponês, meu bom irmão E operaro da cidade, Vamo uní as nossas mão E gritá por liberdade Levando na mesma pista Os estudante, os artista E meus colega poeta Vamo todos reunido Fazê o maió alarido Pelas inleição direta. Vamo cada companhêro Com nosso potresto forte Por este país intêro, Leste, oeste, sul e norte Com as inleição direta Nós vamo por outra meta De uma forma deferente, Esta marcha tá puxada E esta canga tá pesada Não há cangote que aguente. Senhora dona de casa Lavadêra e cozinhêra, É precisa manda brasa,

Ingrossá nosso filêra, Vamo abalá toda massa Dêrde o campo até a praça, Agora ninguém se aqueta, Vamo luta fortimente E elegê um presidente Com as inleição direta. Se o povo veve sujeito Sem tê a quem se quexá, É preciso havê um jeito Pois deste jeito não dá, Cadê a democracia Que o pudê tanto irradia Nas terra nacioná? Tudo isto é demagogia Quem já viu democracia Sem direito de votá? [...]

Seu dotô, seu deputado, Seu minstro e senado Repare que o nosso estado É mesmo um drama de horrô; Se vossimicê baixasse E uns dez ano aqui passase Ferido da mesma seta, Fazia assim como nós Gritando na mesma voz

Queremo inleição direta! (ASSARÉ, 2004, p. 221-224)

Antes de partirmos à análise do cordel, uma explicação se faz necessária: dada a sua extensão (o texto é composto de nove estrofes), selecionamos apenas alguns blocos do poema em apreço, de modo a não gastarmos tantas páginas com a sua produção integral. Outro ponto a se considerar – e que o leitor poderá estranhar num primeiro momento – é a linguagem na qual foi vazado o poema: se trata de uma variação linguística representativa dos falares regionais relacionados à cultura matuta do homem do sertão nordestino (de onde Patativa é oriundo).

O poema, conforme já salientado, gira em torno de um acontecimento histórico brasileiro: a luta pela democracia, efetivada no que ficou conhecido como “diretas já”, uma reivindicação popular ocorrida em várias cidades brasileiras no ano 1984, exigindo o direito de eleições presidências com a participação do povo. Assim como na trova satírica medieval de