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uma análise em duas fábulas de Leandro Gomes de Barros

Francisco Paiva das Neves

Introdução

A literatura de cordel, em sua forma impressa, floresce e se desenvolve no Nordeste brasileiro a partir da segunda metade do século XIX. Essa poesia de cunho popular, oriunda da Península Ibérica, chegou ao Brasil através dos colonizadores, como defendem pesquisadores como Cascudo (1984), Haurélio (2010), Melo (1982), Maxado (2011), Alves Sobrinho (2003) e Vianna (2014). Por outro lado, Ana Maria de Oliveira Galvão argumenta que as origens da literatura de cordel são relacionadas ao hábito milenar de contar histórias que, aos poucos, começaram a ser escritas, sendo depois difundidas pela imprensa. (Cf. GALVÃO, 2005, p. 121)

Com a estrutura do cordel, cuja base é a tríade métrica, rima e oração, pode-se versar sobre os mais variados assuntos. A despeito disso, muitas vozes, a maioria leiga, já quiseram

enquadrar, tematicamente, as narrativas cordelísticas,

identificando-as como obras voltadas exclusivamente para temas sertanejos, incluindo questões como a saga de vaqueiros, o problema da seca e do cangaço, as romarias (em especial, ao Juazeiro do Padre Cícero), etc. Trata-se, no entanto, de um equívoco conceitual cujo desdobramento é a limitação do alcance da obra popular, a qual, não raramente, é alvo de toda ordem de

preconceitos, sendo tomada como expressão folclórica e como obra de baixo valor estético.

É certo que os poetas muito versejaram, e ainda versejam, em torno da temática da estiagem e do sofrimento do agricultor, abordando aspectos como a cultura do gado e o fenômeno social do cangaço. Todavia, desde os primórdios do cordel, os poetas populares não conheceram limites temáticos, como informa Julie Cavinac:

Um obstáculo subsiste, entretanto: como definir a literatura de cordel que, aparentemente, não conhece limites nos temas tratados? Esses contos edificantes em versos são tanto fábulas satíricas ou morais, quanto episódios épicos e poesias românticas elementos de mitos. Eles apresentam personagens lendárias em plena ação e desenham um quadro da sociedade nordestina. Enfim, refletem uma riqueza e uma história de uma cultura original. (CAVIGNAC, 2006, p. 74)

De fato, a temática da literatura popular é sem limites, como se pode observar através da análise dos catálogos de editoras

contemporâneas especializadas em edição de folhetos

tradicionais, como a Cordelaria Flor da Serra e a Tupynanquim, ambas de Fortaleza, a Queima-Bucha, de Mossoró, a Luzeiro, de São Paulo, e tantas outras. Essa diversidade é uma marca que vem do nascedouro do folheto impresso, resultante da capacidade criativa dos poetas pioneiros, os quais, desde os primeiros momentos do cordel impresso, também se voltaram para a discussão e representação de temas eminentemente urbanos, versando sobre fatos do cotidiano, além de terem criado obras em que predomina o maravilhoso (dragões, bruxas, duendes, etc.), feito versões de romances de cavalaria, desenvolvido adaptações de obras da chamada literatura erudita e revisitado contos tradicionais, fábulas, etc.

Este estudo se fixa exatamente na análise de uma desses gêneros narrativos vindos da Antiguidade e que serviram de inspiração para os cordelistas brasileiros: a fábula, assim denominadas as histórias que, em sua grande maioria, “têm como personagens animais ou criaturas imaginárias (...) [que]

representam, de forma alegórica, os traços de caráter (negativos ou positivos) dos seres humanos”, (BAGNO, 2002, p. 51). Nessa perspectiva, convém lembrar o seguinte comentário de Martim Lutero (Apud PORTELA, 1983, p. 126) sobre esse gênero: nas fábulas, leva-se “o homem para a verdade, enquanto vestimos a verdade intolerável com as peles dos animais”.

Vários autores comprovam essa influência sobre a literatura popular desse gênero literário milenar, de características estruturais bem definidas, e que conta entre seus grandes expoentes com nomes como Esopo (620 a.C. – 564 a.C.), Fedro (cerca de 15 a.C. – 50 d.C.), La Fontaine (1621 – 1695) e, para citar alguns autores brasileiros, também Monteiro Lobato (1882 – 1948), Millôr Fernandes (1923 – 2012) e Eno Teodoro Wanke (1929 – 2001). Não é demais lembrar que, como lembra Márcia Abreu (2004), o cordel se irmana com a fábula (e com o apólogo e a parábola) por ambas serem “obras exemplares”, ou seja, narrativas voltadas para o ensinamento, para indicar aquilo que deve e que não deve ser adotado como prática ou valor moral pelos homens.

É importante destacar que a predileção da literatura popular, especialmente o cordel, por histórias em que bichos se humanizam se confunde com o início da literatura popular em sua fase impressa. É o que demonstra a pesquisadora Vera Lúcia de Luna e Silva (Cf. LUNA E SILVA, 2010), que analisa aquele que pode ter sido o folheto impresso brasileiro mais antigo. Refiro-me ao cordel de autoria desconhecida “Testamento que faz um macaco especificando suas gentilezas, gaiatices, sagacidade, etc.”, o qual veio a ser impresso em 1865 na Tipografia de F. C. Lemos e Silva, Rua do Imperador, nº 45, em Recife. A referida obra, certamente, é tributária dos famosos “testamentos de bichos”, assim chamadas as narrativas protagonizadas por animais que eram importadas da Europa pela Livraria Garnier, em meados do século XIX. Por outro lado, tais “testamentos” indubitavelmente tiveram raízes nas fábulas que vinha desde a Antiguidade.

No caso do Brasil, pode-se ainda apontar como matrizes dessas histórias envolvendo bichos as lendas originárias de povos indígenas e africanos (ou afrodescendentes). Nesse pormenor, Câmara Cascudo, em Contos Tradicionais do Brasil (2004), apresenta quinze contos com animais. Já Sílvio Romero, em

Contos Populares do Brasil (2013), registra trinta e sete histórias

com animais: oito na seção “Contos de origem europeia”, vinte e uma na seção “Contos de origem indígena” e oito na seção “Contos de origem africana e mestiça”. Obviamente, com a miscigenação e a construção das identidades culturais de cada região, tais histórias passaram a ser adaptadas, ganhando versões próprias de cada comunidade.

Entre os exemplos de cordéis baseados em antigas fábulas, seja adaptando-as, seja apenas utilizando-se do esquema que aquelas velhas criações nos legaram, contam-se “A festa dos cachorros” e “A intriga do cachorro com o gato” (ambos de José Pacheco da Rocha) e “O casamento do bode com a raposa” (de Firmino Teixeira do Amaral). Mais recentemente, a editora IMEPH, de Fortaleza, lançou Sete fábulas em cordel, uma obra que reúne adaptações de algumas fábulas de Esopo feitas por sete cordelistas do Ceará.

A recorrência às fábulas como fonte de produção de cordéis, obviamente, não escapou ao olhar sempre atento de Leandro Gomes de Barros, que também publicou obras protagonizadas por animais com vistas a discutir sobre o comportamento humano. Partindo dessa premissa, este trabalho desenvolve-se com o objetivo de refletir sobre a importância que as fábulas tiveram no âmbito da criação literária de Leandro Gomes de Barros. Nesse processo, investigamos, a partir da análise dos cordéis “A noiva do gato” e “O casamento e o divórcio da lagartixa”, como o bardo soube valer-se da figura dos animais para melhor evidenciar sua crítica aguda da sociedade do seu tempo. Para tanto, como mostramos no corpo da pesquisa, Leandro re-contextualizava as histórias, seja introduzindo elementos regionais (a fauna local, por exemplo), seja

atualizando as questões que as velhas fábulas traziam, incorporando a matéria do entorno histórico-social e cultural nordestino.

Para alcançar este objetivo, o presente trabalho divide-se em três partes. Na primeira, discorremos sobre a amplitude temática observada na obra de Leandro. Em um segundo momento, a pesquisa acha-se centrada na análise dos cordéis: primeiramente, “A noiva do gato”; em um segundo momento, “O casamento e o divórcio da lagartixa”. Por fim, à guisa de Conclusão, procuramos as causas que explicariam a presença desse componente crítico não apenas nas duas fábulas de Leandro analisadas, mas também em outras obras semelhantes do autor. A Diversidade Temática da Poesia de Leandro Gomes de Barros

Leandro Gomes de Barros é o maior cordelista brasileiro. Nascido na Fazenda Melancias, então pertencente ao município paraibano de Pombal, mudou-se, aos 15 anos, para Vitória de Santo Antão. Dali sairia para Jaboatão e depois para Recife. Na capital pernambucana, desenvolveu ativamente suas atividades poéticas, tendo feito parte, segundo Haurélio (2010), de um célebre quarteto de poetas nascidos na Paraíba que confluíram para ali, então um dos centros urbanos mais desenvolvidos do Nordeste.

Em Recife, onde já havia um vigoroso parque gráfico, com máquinas tipográficas à época de grande padrão tecnológico, Leandro e outros poetas do seu tempo deram início à produção de folhetos de cordel, com distribuição para as demais localidades do Nordeste e regiões do país. Desse grupo pioneiro, Leandro destacou-se desde o início, escrevendo, publicando e distribuindo sua produção literária. E, dada a qualidade sem igual de sua obra, veio a ser merecidamente considerado “O pai da literatura de cordel”. Nesse pormenor, importa destacar o quanto Leandro inovou a poesia popular, indo muito além dos gêneros e temas que esta herdou da cantoria:

Leandro não se limitou a aproveitar os temas correntes, oriundos do romanceiro medieval e dos ABCs, manuscritos compostos em quadra, que já circulavam aos montes pelo Nordeste narrando as gestas do boi e do cangaceiro. Ele foi mais longe. Criou um tipo de poesia 100% brasileira, versejou em diversas modalidades (sextilha, setilha e martelo), utilizando a redondilha menor (versos de cinco sílabas), a redondilha maior (sete sílabas) e o decassílabo. (VIANNA, 2014, p. 20)

A obra do poeta de Pombal realmente é vasta, muito embora o autor tenha vivido pouco, vindo a falecer no auge da fertilidade de sua produção literária, aos cinquenta e quatro anos. Entretanto, tanto em quantidade (aproximadamente mil poemas, distribuídos em cerca de seiscentos folhetos), como em qualidade, pode-se afirmar que é a maior produção individual de toda a história da literatura de folhetos. Ademais, trata-se de uma obra diversificada, contemplando diversas modalidades poéticas e um sem número de temas. Comprova a riqueza da produção de Leandro o acervo disponível na Fundação Casa Rui Barbosa, que apresenta tanto folhetos bem conhecidos, como obras raras do bardo pombalense. E mesmo com a usurpação de parte de sua obra pelo editor e cordelista Martins de Athayde, ocorrida após a morte de Leandro, este nunca deixou de ser reconhecido como uma referência pelas novas gerações.

Leandro escreveu em quadras, sextilhas, setilhas, décimas, martelos e diversas modalidades da cantoria, o que levou a ser erroneamente caracterizado por alguns biógrafos como repentista. A esse respeito, o poeta popular, cantador e pesquisador de literatura popular José Alves Sobrinho, na apresentação do seu livro Cantadores, repentistas e poetas populares (2003, p. 17), afirma o seguinte:

Dizem, por exemplo, que o glosador Bernardo Nogueira e os poetas Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas e João Martins de Athayde também foram cantadores quando, na verdade, foram apenas poetas populares e editores de literatura de cordel. Já foi dito também que Inácio da Catingueira teve uma peleja que durou oito dias com o

mestre Romano da Mãe D’agua. Com a continuação da leitura desse livro o leitor entenderá a razão de nossas arguições ou contestações.

De fato, não há nenhum registro que comprove a atividade de Leandro Gomes de Barros como improvisador da arte poética do repente. Essa afirmativa, acredito, deve ter sido formulada a partir de alguma pesquisa apoiada em fontes duvidosas e que veio a ser reproduzida sem maiores cuidados. Outro fator que deve ter muito contribuído para esse fato é a versatilidade poética do bardo paraibano que, com habilidade e maestria, versejava de uma modalidade a outra e desenvolvia narrativas em temas diversos, sem maiores problemas. De toda forma, mesmo descontados os exageros a respeito do bardo paraibano, não há como contestar sua importância, seja pela expressividade da sua poética, seja pela graciosidade com que criou versos que, até hoje, são um modelo para as novas gerações de cordelistas.

Uma das marcas mais apreciadas por aqueles que têm um espelho na figura de Leandro é a sua capacidade de congregar graciosidade com a crítica aguda dos costumes e das instituições de seu tempo. Essa última característica é destacada por Arievaldo Vianna, ao lembrar que Leandro, em “sua vasta produção, orçada em torno de mil poemas publicados em mais de seiscentos folhetos, destacou-se, sobretudo, pela qualidade de sua poesia e por sua sátira mordaz e instigante” (VIANNA, 2014, p. 20).

Realmente, Leandro foi um poeta pioneiro que soube se expressar magistralmente, refletindo, em poesia rimada, sobre as mazelas do seu (e do nosso!) tempo. Nesse processo, algumas de suas obras apresentam um componente didático, no sentido de haver a recompensa dos bons e o castigo dos maus, vindo a se direcionarem para uma “moral da história”, tal como as fábulas. E, como veremos a seguir, essa ligação com as fábulas também se reforça, no caso de Leandro, pela constante utilização, pelo autor, de bichos do cotidiano regional (gatos, cururus, ratos, lagartixas, etc.) em narrativas tão lúdicas quanto reveladoras dos desconcertos da sociedade da época.

Nessas histórias, temas como o divórcio, crescimento do protestantismo (os “nova-seita”), corrupção e relação de poder são retratadas de forma graciosa e, ao mesmo tempo, extremamente críticas. Foi a partir desse modelo, que Leandro escreveu vários desses textos, histórias geralmente curtas, de até 50 sextilhas, em que animais vão vivenciar realidades políticas e culturais da época. Entre estas, destacam-se pela graciosidade “A noiva do gato” e “O casamento e o divórcio da lagartixa”, obras que passamos a analisar a seguir.

“A Noiva do Gato” e a Discussão da Justiça Social

A recorrência às fábulas evidencia-se em várias obras de Leandro Gomes de Barros, algumas delas ainda hoje alvo de polêmica quanto à autoria, haja vista que alguns pesquisadores atribuem alguns títulos a João Martins de Athayde. Entre as “fábulas” de Leandro, ou seja, as obras que dialogam com o legado de Esopo e outros fabulistas, podem ser citados os cordéis “A ausência dos bichos”, “Os bichos que falavam”, “O casamento do calango com a lagartixa”, “O galo misterioso, marido da galinha de dentes” e “A ressurreição dos bichos”. A essas obras, claro, se somam “A noiva do gato” e “O casamento e o divórcio da lagartixa”, alvo aqui de nossas análises.

Em “A noiva do gato”, Leandro Gomes de Barros faz uma crítica contundente do sistema de relações sociais de troca de valores, em que prevalece a ambição e o lucro. Nesse processo, o diálogo com as fábulas, já sugerido pelos protagonistas estampados no título da narrativa, se reforça pelo tempo em que se passa a narrativa: um tempo mítico, fora do tempo histórico, em que os animais tinham habilidades tipicamente humanas. Essa era mágica é indicada na segunda estrofe do poema, como vemos a seguir:

Os bichos daquele tempo Não eram como hoje são, Falavam, sabiam ler,

Tinham civilização Sabiam se defender

Pois todos tinham instrução. (BARROS, 2007-a, p. 01)

Tendo apresentado o contexto cronológico da história, o narrador vai apresentando cada um dos personagens, vindo a arrolar não menos que 24 bichos, cada um desempenhando uma função na sociedade. Assim, já nos versos que se seguem à abertura da narrativa, são citados alguns animais e suas profissões:

O gato era tesoureiro O rato tabelião

Percevejo era um rapaz De grande habilitação Advogava o país

Quando esse entrava em questão. (BARROS, 2007-a, p. 02)

Como se pode observar na estrofe apresentada, Leandro, fino gozador e crítico contundente, demostrou grande habilidade e perícia ao fazer sua análise crítica da corrupção que corrói a sociedade. Assim, já no primeiro verso, a simples escolha do animal que assume a função de tesoureiro é emblemática: o gato, animal matreiro, é tido pelo senso comum como o bicho acostumado a roubar, o que explica a origem do termo “gatuno”. Dessa forma, em um único verso, usando um artigo, um sujeito, um verbo e um predicado ele descreve o mal que assola o país até hoje. Dito de outro modo: ao colocar o gato, animal que popularmente é tido como ladrão, para gerir as finanças, Leandro, de forma jocosa e sutil, indica para seus leitores a situação real vivenciada pela comunidade.

A mesma sutileza se estende para o segundo verso da estrofe citada, considerando que o rato é igualmente associado com características humanas nada abonadoras: além de um animal tido como sujo e transmissor de doenças, é também identificado com o roubo e a clandestinidade. A este, significativamente, Leandro atribui o cargo de tabelião, ou seja, aquele responsável

pelo registro de documentos, estando, assim, ligado ao cumprimento das leis. Fixa-se, assim, a ideia de uma lei ligada a algo sujo, clandestino, nocivo e tomador do alheio. Tal ideia, a propósito, reforça-se na estrofe logo a seguir com a representação do percevejo como advogado, uma profissão que, à época de Leandro, era própria dos filhos da elite: como um inseto que suga o sangue das pessoas, o percevejo passa a figurar a lei que se volta contra o povo, que lhe rouba o que tem, deixando-o fraco e impotente.

Além dessas questões, a crítica social se formula no referido texto através de uma visão nada positiva da obra em relação à justiça: esta é mostrada como uma rede de intrigas, na qual o direito cede lugar a questões pessoais. Veja-se, por exemplo, como o general Cururu, encarregado de resolver o assassinato da rata pelo gato, seu pretenso noivo, reage ao saber que teria que tratar com a cobra Sururucu:

Exclamou o general: – É uma desgraça imensa. Essa questão para mim Torna-se mal que vai pensa. A cobra é minha inimiga;

Se ela me ver [sic], não dispensa. (BARROS, 2007-a, p. 10)

Há que se considerar, entretanto, um aspecto interessante da narrativa, que poderia ser apontado como uma visão progressista por parte do narrador: a mulher (no caso, a rata) é o personagem mais sensato do texto, estando muito à frente da mentalidade expressa pelo gato (seu “noivo”) e pelo cachorro (seu padrinho): enquanto o primeiro abraça um noivado que levaria à quase ruína da comunidade em que viviam, e o segundo tenta mostrar que não haveria perigo em ela se unir ao felino, predador natural dos roedores, a catita mostra-se como a única que percebe a inadequação daquele enlace amoroso:

A rata desconfiou,

Disse o gato: Minha noiva, Traga a sua certidão. A catita disse: Vôtes!

Procure outra noiva; eu, não! (BARROS, 2007-a, p. 04)

Não obstante esse discernimento que a catita demonstra ter, ela acaba encontrando sua perdição por confiar em dois machos: no gato, que lhe jurava amor incondicional, e no cachorro, que se colocou como defensor da afilhada contra uma possível investida por parte do felino:

– Ó, de casa! – Disse a rata. O gato disse: – Ó, de fora! Disse o gato: – Oh! Minha noiva, Pensei que tinha ido embora. Entre, venha dar-me um beijo, Que estou com saudade agora. A rata puxou a carta,

Porém o gato não viu. Beijou-a com tanto gosto Que, no beijo, a engoliu. O guabiru, vendo aquilo,

Rapidamente saiu. (BARROS, 2007-a, p. 07)

Para piorar o quadro, esse crime acaba ficando impune, pois o precário e truculento sistema de justiça que se apresenta na narrativa, no qual predomina a força, termina não julgando o gato. Assim, lido à luz da sociedade machista própria do período em que Leandro escreveu o cordel em foco, trata-se a morte da catita de mais um “crime passional” do qual o agressor masculino escapa ileso.

A Submissão da Mulher em “O Casamento e o Divórcio da Lagartixa”

Em “O casamento e divórcio da Lagartixa”, o objetivo do poeta é dialogar com os costumes e as mudanças sociais da época.

Nesse processo, o poeta traz à discussão no referido texto temas como a submissão da mulher, a traição, o divórcio, o machismo e os casamentos por encomenda e/ou interesse financeiro. Para desenvolver esse enredo, o poeta, usando de muita graça, satiriza a sociedade da época. Nesse movimento, acaba assentando sua fábula no ambiente nordestino, passando a descrever ambientes e situações temporais típicas da região. Ademais, elege os atores da narrativa na fauna local, incluindo na história o gato, o cachorro, o camaleão, o papa-vento, o besouro, o saguim, a seriema, o mosquito, o peixe e o cururu. E não é demais lembrar que o casal protagonista é formado pela lagartixa e pelo calango:

A lagartixa saiu,

Vendendo azeite às canadas. Encontrou com o calango, Uma alma dispersada Que andava com a moléstia

Procurando namorada. (BARROS, 2007-b, p. 02. Grifos nossos)

Do ponto de vista da atualização do gênero fábula, ajustando-o Leandro ao contexto nordestino, é também significativo o uso da linguagem regional, como se vê na expressão “andar com a moléstia”. Nesse sentido, também é importante destacar os versos a seguir, que trazem termos regionais/populares como “rombudo”, “neguinho” (em lugar de “negrinho”) e “bestade” (em vez de “besteira”, “bobagem”):

Era um namoro rombudo... Ela chamava: – Neguinho! Calango focava a cauda, Pedia a ela um beijinho... A Lagartixa dizia: – Espere aí, meu anjinho!