• Nenhum resultado encontrado

irmãs para a fuga e o sonho

Simão Pedro dos Santos

Introdução

Em Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira afirmou que sua Pasárgada é um lugar “onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar” (BANDEIRA, 1984, p. 98). Manuel Camilo dos Santos, em linguagem fina de cordel, nos deu Viagem a São Saruê e nos fez perceber quanto a vida dura, triste, de escassez material se transmudou, como em “Vou-me embora pra Pasárgada”, em empreendimento de fuga, porém, à busca por lugar e dias melhores.

Dois poetas. Duas experiências poéticas. Duas linguagens. Dois olhares para o mesmo tema com suas pertinentes variantes. Manuel Bandeira: pernambucano, poeta, acadêmico, erudito. Manuel Camilo dos Santos: paraibano, poeta, semialfabetizado, agricultor. Seus textos se assemelham por traços arquitetônicos a erguerem duas cidades imaginárias e urgentes. Necessárias: Pasárgada e São Saruê.

Curran (2011) traz importante nota sobre o texto de Manuel Camilo dos Santos:

Na verdade, Viagem a São Saruê é um poema escapista, ‘um retrato vivo da fuga, pelo sonho, de um povo que sofre’, nas palavras de Orígenes Lessa, em seu discurso na Academia Brasileira de Letras

quando comparou este poema a ‘Vou-me embora pra Pasárgada’, do modernista Manuel Bandeira. (CURRAN, 2011, p. 315)

Certamente, quando conhecemos o país de Manuel Camilo experimentamos a sensação de estar em Pasárgada e vice-versa. Não raro, ao longo de sua história, o homem cria espaços de fuga, o que denota quanto a humanidade cogita exílios (coletivos ou individuais), forçados ou não, decorrentes de vária circunstância, situações a que, voluntária ou involuntariamente, não se consegue dar conta.

Partindo dessas premissas, esta pesquisa apresenta um breve cotejo entre esses dois lugares fantásticos criados pela imaginação de Manuel Bandeira e de Manuel Camilo dos Santos, mostrando os pontos de contato entre a Pasárgada do poeta pernambucano e a São Saruê do cordelista paraibano. Para tanto, recorremos aos seguintes teóricos: Mircea Eliade (1972), Hélder Pinheiro e Ana Marinho Lúcio (2001), Orígenes Lessa (1973), Lêda Tâmega Ribeiro (1986) e Tzvetan Todorov (1975) e Mark Curran (2011). Cabe destacar ainda que são frequentes as referências à Bíblia, mostrando como a Pasárgada bandeiriana e a São Saruê camiliana guardam muitas aproximações com lugares descritos no Texto Sagrado, como o Jardim do Éden e Canaã, por exemplo.

As cidades ideais de Bandeira e Camilo

Em Manuel Bandeira e Manuel Camilo, temos dois arquitetos de cidades ideais, com uma mítica que soa como “a história de um novo começo, réplica da criação do Mundo” (ELIADE, 1972, p. 28). Arquiteto do sertão, Camilo ergueu seu país com o igual reflexo na “vida madrasta” de que falou o poeta de Libertinagem. A seca, a fome, o descaso político, as injustiças sociais, o abandono fizeram brotar um locus de promissão: uma mosaica terra de São Saruê.

Ao explicitar a feitura de “Vou-me embora pra Pasárgada”, Manuel Bandeira nos deu a chave desse processo e do porquê dessa oficina:

Esse nome Pasárgada [...] suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias [...]. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora pra Pasárgada”. (BANDEIRA, 1984, p. 97)

Entende-se, desse modo, e mediante a fala do poeta, que um Eu profundamente lúcido, embora as dificuldades na e da vida, as necessidades, as ausências de tudo, deu início, – e concretizou – construção sólida, lugar de refúgio para aplacar tantas dores. A nosso ver um ideal de poder adquirido em Pasárgada se deu por três vertentes: o da proximidade com o próprio poder, – privilégio de poucos, que até soa irônico –, o da conquista do amor, na verdade, de amores – não concretizados na “vida madrasta”– e o de tantas possibilidades quanto necessárias:

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei. (BANDEIRA, 1986, p. 117)

O sentido primordial de evasão se dá no primeiro verso da estrofe inicial: “Vou-me embora pra Pasárgada”, que se repete ainda na última linha desta mesma estância, com a firmeza de quem toma decisão (5.º verso); na segunda, (1.º verso); na terceira, (12.º verso) e na quinta, (8.º verso), todos a se repetirem com o caráter mesmo de fuga, mas também da disposição à aventura a um mundo novo que se descortina. Percebe-se que as repetições destes versos se dão enfaticamente, com o propósito de marcar a afirmação do Eu diante do qual, possibilidades se abrirão. O sentido, talvez mais completo de contentamento, pela mudança de lugar: ser amigo do rei, ter a mulher de seu querer e

a cama de sua escolha, ocorre em contraposição a um princípio contundente de insatisfação com o mundo real, centro do poema, que se configura nos dois primeiros versos da segunda estrofe: “Vou-me embora pra Pasárgada/Aqui eu não sou feliz”. Há de se observar que o fulcro do poema tem como ponto de partida estes dois versos, a partir de que um universo de realizações se aclara. O advérbio de lugar Aqui, contido no segundo verso da segunda estrofe, tem como contraste outro advérbio, também de lugar, Lá, que já se faz presente como resposta positiva na segunda linha, ao verso da primeira estrofe: “Lá sou amigo do rei”. Porém, no verso “Aqui eu não sou feliz”, (segunda linha, da segunda estrofe), o único do poema a dar pistas de que se está no mundo sensível, (advérbio Aqui), e resposta negativa ao “Vou-me embora pra Pasárgada” (primeira linha da segunda estrofe) e a que o Lá contraria ao mesmo tempo em que nos leva a cogitar do caráter de crença no porvir do eu lírico: “Lá a existência é uma aventura” (terceira linha da segunda estrofe). De todo modo, é a partir do verso negativo “Aqui eu não sou feliz” que tudo se desdobra em esperançar um eu lírico que anseia outras terras.

Este “desabafo da vida besta”, como afirma Bandeira, leva o eu poético à busca do desconhecido, a fugir para o “país de delícias” na tentativa de concretizar os sonhos mais banais não realizados no plano do real, do concreto. O deslocamento até Pasárgada revela a perspectiva de o Eu do poema aniquilar o homem incompleto do plano terreno. Transpor o limiar de Pasárgada é chegar ao paraíso: frustrações por não viver aventuras as mais bestas, porém, tão vivas, do mundo - tanto do adulto quanto da criança do “aqui” – mundo material –, serão superadas neste acolá de outras terras:

E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo

Na cidade erguida por Manuel Bandeira, pode-se voltar a um estágio de infância tal, que é proibido não ser feliz. As preocupações não existem, porque para isto não há espaço. Neste país idealizado é permitido ao homem girar na roda da meninice:

E quando estiver cansado Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar. (BANDEIRA, 1986, p. 117)

Nesta terceira estrofe, chama a atenção o porquê de o eu lírico convidar a mãe-d’água e não Rosa para lhe contar as histórias dos tempos de meninice: em “Profundamente”, igualmente, de Libertinagem, a exemplo de “Vou-embora pra Pasárgada”, no terceiro movimento, o eu lírico deixa transparecer a morte, literal, de entes queridos:

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó

Meu avô

Totônio Rodrigues Tomásia

Rosa

Onde estão todos eles? – Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo

Profundamente. (BANDEIRA, 1986, p. 112)

Aquela que contaria as histórias vivera a condição humana, e agora dorme (profundamente), isto é, Rosa, a esta altura do tempo, jazia morta. Neste caso, só um ser sobrenatural, mágico, da mitologia da infância, poderia se fazer realidade no universo de Pasárgada: a mãe-d’água. Os papéis se invertem numa sagaz lógica poética.

A Pasárgada de Manuel Camilo dos Santos são as terras de São Saruê, possessões onde a poesia jorra como o leite e o mel. Terra farta em contraposição ao habitat real em que vivia o poeta: secas cíclicas, solo inculto, fome, escassez. O poeta, ao perceber as dores coletivas de certa porção do Nordeste arquiteta São Saruê como um apelo à promissão.

Acerca do olhar de Camilo para os homens e a realidade à sua volta, – embora a assertiva possa abranger não apenas o aspecto local, mas aquele de ocorrência em qualquer grupo humano –, opina Orígenes Lessa:

Um poeta verdadeiramente nacional terá que falar também aos pequeninos, resignados ou revoltados, sofredores sempre, sonhando sempre com um mundo melhor, onde nem a seca nem a carestia nem as fraudes eleitorais nem os exploradores suguem o sangue do povo. É por todas estas agonias que a literatura dos humildes é quase sempre uma literatura de evasão, como na Viagem a São Saruê, de Manuel Camilo dos Santos. (LESSA, 1955, p. 83)

Orígenes, especificamente, e no tocante ao cordel do poeta paraibano, assevera entre convicto e encantado em artigo, após transcrever quase na íntegra o poema camiliano:

Aí fica uma versão sertaneja do ‘Vou-me embora pra Pasárgada’, de Manuel Bandeira. Eu, que sempre amei o poema de Bandeira, desde que li o folhetinho do outro Manuel, o Camilo dos Santos, comecei a sonhar com São Saruê. Vamos embora pra São Saruê? (LESSA, 1955, p. 87)

É com este sentimento de evasão, decorrente de injustiças, principalmente, que o poeta projeta, ergue o justo, igualitário, profético país de São Saruê. O poeta segue as ordens deste sonho/pensamento e sua construção começa a tomar forma. O pensamento, ligado ao imaginário, mestre e guia, nesta condição, ordena e poeta inicia sua viagem:

Doutor, mestre pensamento Me disse um dia: – você,

Camilo, vá visitar O país São Saruê. Pois é o melhor lugar

Que neste mundo se vê. (SANTOS, 2008, p. 311)

Na história das civilizações sempre houve a ainda há a memória da eterna promessa de lugares melhores do que o mundo material. Biblicamente, ou por outra, de um ponto de vista judaico-cristão, cogita-se do ideal do paraíso restabelecido. Pelo viés político, inclusive, e no plano material, portanto, há este espaço para um imaginário paradisíaco, isto é, aquele em que o proletariado pode vir a gozar seus direitos mais sagrados: a terra, o pão, a liberdade. Como apontado por Eliade (1972, p. 158), “Marx retomou um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrâneo: o papel redentor do Justo (hoje, proletariado), cujos sofrimentos são invocados para modificar o status ontológico do mundo.”. Este é o sentido possível de se perceber tanto em Pasárgada quanto em São Saruê: o da tentativa de compreensão da essência mais absoluta do ser ou dos seres à busca de mudança. É como se os poetas apontassem a memória de um paraíso a ser retomado.

A temática desta infância perdida da humanidade se delineia para duas vertentes: a da restauração, propriamente, deste lugar de delícias biblicamente prometido e a da fuga para um recinto em que as dores do mundo sofram esperança de melhores dias. “Viagem a São Saruê” se inicia pela busca do lugar da memória (reminiscência tanto coletiva quanto do Eu que escreve):

Eu que desde pequenino Sempre ouvia falar Neste tal São Saruê Destine-me a viajar Com ordem do pensamento

Fui conhecer o lugar. (SANTOS, 2008, p. 311)

A viagem começa a tomar forma mediante elementos locais de ordem da natureza, com belas imagens poéticas. Há a busca