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Contextos multilíngues: contato linguístico com línguas Bantu em Moçambique e Angola

Mapa 6: Mapa político de Angola

1.3.2 Contextos multilíngues: contato linguístico com línguas Bantu em Moçambique e Angola

“O colonialismo não tem só coisas que não prestam”. “Temos que ter um sentido real da nossa cultura. O português (língua) é uma das melhores

coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua não é a prova de nada mais senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros; é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo”.

(Frases atribuídas a Amílcar Cabral – líder independentista da Guiné-Bissau e de Cabo Verde (PAIGC) – divulgadas pelo escritor e crítico português Manuel Ferreira, 1988, p.18-19)

No contexto de independência das colônias africanas, havia um dilema linguístico fundamental: qual língua adotar como oficial nas nações em formação? Uma dentre as diferentes línguas africanas locais – que, por sua vez, representavam grupos étnicos diferentes – ou a língua colonial, exógena, mas com representatividade internacional?

Diversos pesquisadores apontam razões que justificam a adoção do português como língua oficial pelos partidos pró-independência: Ferreira (1988) relembra que já na época das lutas armadas, o português era o idioma da propaganda política, representava a língua franca dos exércitos, era a língua da escolarização das zonas libertas. Enfim, segundo o autor, “no momento da libertação nacional houve apenas que assumir e aprofundar essa prática” (p.23).

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Note ainda que nenhuma das línguas autóctones com as quais o português competia podia reivindicar uma esmagadora maioria de falantes proporcionalmente distribuídos por todo o território nacional, pelo que a selecção de uma delas poderia minar o projecto da unidade nacional.

Nessa mesma linha de raciocínio, Firmino (2004) ainda afirma que a língua portuguesa representava a língua de consenso dentro dos movimentos de libertação, que também internamente eram constituídos por homens das diversas etnias locais23. Além disso, esse idioma ajudava os revolucionários das frentes armadas “a conhecer o inimigo comum” (2004, p.250). Considerando ainda a posição dos líderes da independência, Dias (2002, p.138) aponta outra razão que favoreceu a língua portuguesa naquela ocasião: ela representava a única língua que “permitia a transmissão dos ideais do Marxismo-Leninismo (política adoptada pelos governantes) que propunham a construção do Socialismo na Pátria Moçambicana”.

Em termos mais gerais, os representantes destes países tinham ciência de que, caso adotassem uma língua autóctone exclusivamente como língua oficial, seus países ora em construção teriam restrições de relacionamento com os demais países do mundo. Nesse sentido, o português já representava uma língua global que os inseria, portanto, no mercado mundial. “Enfim, razões políticas, culturais, ideológicas e diplomáticas levaram a uma decisão marcada pelo pragmatismo” (FERREIRA, 1988, p. 25).

Acerca desse assunto, é impossível dispensar a reflexão de Mia Couto (2007):

O lugar e o papel da língua portuguesa como idioma oficial em Moçambique foram debatidos, em 1962, no primeiro congresso da Frente de Libertação de Moçambique realizado na clandestinidade perto de Dar-es-Salaam. A maior parte das actas – incluindo a decisão de adoptar o português como língua oficial – foram redigidas em inglês. Os quadros com maior formação escolar tinham estudado nos países vizinhos. O português foi adoptado não como uma herança mas como talvez a mais valiosa ferramenta para forjar a unidade da futura nação. Se a adopção do português foi um acto de soberania, já a criação da lusofonia não resultou de iniciativa própria de Moçambique. O projecto lusófono surgiu, afinal, pouco tempo depois daquilo que em Portugal se chamou de "descolonização". Detenho-me na palavra "descolonização" porque ela é um exemplo claro de divergentes modos de ler o passado. O termo "descolonização" é emblemático do que Bernard Shaw disse do inglês: podemos ter uma língua comum para melhor nos desentendermos (MIA COUTO, 2007, s/p).

23 Para se conhecer melhor a realidade multiétnica das forças de libertação, cf. o romance do escritor

70 A adoção da língua portuguesa pelos países africanos contribuiu para que esse idioma se inserisse no mercado linguístico global como um dos mais importantes e representativos. No entanto, Fonseca (2009a, p.28) alerta para o fato de que, considerando as realidades locais dos países africanos, em especial o caso de Angola, “o que se verifica é que os líderes independentistas angolanos conseguiram ser mais eficazes e contundentes em transmitir a língua oficial portuguesa em diversos rincões e grotões étnicos do país em 34 anos mais do que o fez o conquistador português em cerca de 500 anos”. “Com efeito, a língua portuguesa singra em África a toda a velocidade, apesar das inumeráveis dificuldades a vencer” (FERREIRA, 1988, p.38).

Antes de seguir com a importância da língua portuguesa para os países pós- coloniais, é imprescindível considerar a ressalva de Ki-Zerbo (2006) sobre o papel das línguas tradicionais para a África contemporânea:

Dito isto, é impensável e impossível rejeitar as línguas impostas pela colonização porque, objetivamente, elas foram integradas ao nosso patrimônio cultural, elas unem povos africanos entre si e com a comunidade internacional. As línguas fazem-nos ter acesso a filões fabulosos de cultura e história que são portas incontornáveis para entrar no mundo contemporâneo. Mas com as condições de sairmos da posição de colonizados e de que não nos obriguem a deixar as nossas próprias línguas no vestiário ou no caixote de lixo do mundo moderno (KI-ZERBO, 2006, p.73).

Uma vez que a decisão de se implementar o português como língua nacional foi levada a cabo com a ascensão das nações independentes, houve uma severa transformação da representatividade simbólica desse idioma. Nesse sentido, o português passou do status de língua meramente colonial, para representar o veículo de expressão do pensamento de angolanos, moçambicanos, guineenses, caboverdianos e são tomenses. Além disso, as línguas nacionais também adquiriram novas funções sociais condizentes com a dinâmica natural dos povos. Segundo demonstra Firmino (2006):

As línguas ex-coloniais não permaneceram como produtos estáticos, mas adquiriram novos significados simbólicos e aspectos estruturais, elevando-se ao estatuto de variantes lingüísticas com valor próprio e não exclusivamente como meras distorções folclóricas das línguas européias. Como aponta Tengan (1994), as sociedades africanas nunca foram sistemas fechados, imunes a uma integração de novos elementos e a transformações ou mudanças devidas a influências externas. Pelo contrário elas têm estruturas abertas que admitem, num processo contínuo, a entrada de novas realidades e de elementos a serem transformados e adaptados ao contexto africano. As

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transformações das línguas européias em África são parte deste processo, em que elas se acomodam às realidades socioculturais e políticas em mudança acelerada” (FIRMINO, 2006, p.46).

Esse pesquisador assevera que a língua portuguesa, nos contextos dos países africanos, ao passo que adquire novas relações sócio-simbólicas, novos usos e funções – uma nova ideologia, portanto – inevitavelmente passa por um processo de ser cada vez menos encarada como um elemento intruso e exógeno, para ser visto como algo próprio, que expressa as necessidades e anseios locais. Esse fenômeno é denominado pelo autor como “processo de nativização”.

Especificamente para o contexto moçambicano, Dias (2002) afirma que, ainda em tempos coloniais, a língua portuguesa passou a assumir relações diglóssicas, uma vez que os governos proibiram em 1929/1930 o ensino em línguas locais (com exceção do ensino religioso), em favor do ensino realizado completamente em português. Nesse sentido, a população passou a fazer diferença sobre os contextos em que poderiam ser usadas as línguas autóctones e quando se deveria usar a língua do colonizador. A autora sugere que, muito provavelmente, foi nesse momento em que “começaram a surgir com mais vigor sentimentos de desprezo e estigmatização em relação às línguas bantu” (DIAS, 2002, p.114).

Com a independência e o advento do governo socialista, expandiu-se o ensino em língua portuguesa no sentido de se permitir que a população tivesse acesso às instituições oficiais de que antes se viam excluídas. Nesse contexto, o governo passou a valorizar uma variedade “moçambicanizada como língua de unidade nacional. Valorizou-se a variedade nativizada do tempo colonial e que era resultado da resistência cultural e linguística ao modelo civilizacional europeu” (DIAS, 2002, p.138). A fim de se ilustrar essa ideologia socialista transmitida por meio da valorização da língua portuguesa, Dias (2002, p.141) apresenta um excerto das orientações pragmáticas do Ministério da Educação de Moçambique, de 1975, que será aqui reproduzido:

Todo o ensino está em função da aprendizagem do Português. O partido e todo o Aparelho do Estado utilizam o Português como base. Dizemos, pois, que a evolução do Português em Moçambique vai conduzir ao aparecimento da língua portuguesa como expressão de uma cultura revolucionária moçambicana, garantia da sua continuidade, transformando-a sempre e sendo transformada. Rejeitar o que é velho, absorver o que é novo, eis o princípio da evolução da língua portuguesa em Moçambique. Ela vai ser o que as massas populares dela fizerem, porque, como já dissemos, língua é

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transformação. Assim, compete-nos usar a língua portuguesa como uma arma que nos une, no processo de transformação da nossa sociedade, como factor de progresso da revolução e reforço da nossa defesa (MEC, 1975, p.5 apud DIAS, 2002, p.141).

Assim, o português foi se tornando o principal meio de comunicação tanto em situações institucionais como em interações cotidianas nos centros urbanos, pelas ruas, mercados etc. Dessa forma, o número de falantes foi se ampliando e, “à medida que as pessoas usavam o português de diferentes maneiras, ele começou a transcender o seu papel de instrumento político e administrativo para se tornar um veículo de novos tipos de mensagens comunicativas e simbólicas relacionadas com a vitalidade da nova vida nacional de Moçambique” (FIRMINO, 2004, p.352).

O fluxo histórico moçambicano, entretanto, revela uma contradição. A proposta do governo socialista era enfraquecer as individualidades étnicas a fim de que se elevasse um sentimento de identidade nacional moçambicana. A propagação dessa ideologia se deu por meio da língua portuguesa, pela massificação do ensino nesse idioma, em detrimento do ensino nas diferentes línguas autóctones. Nesse sentido, Dias (2002) reflete acerca das consequências desse fato. Ao se incentivar o advento do ‘Homem Novo’, toda uma geração de jovens foi educada a partir de um comportamento que se difere de seus pais e avós, sobretudo no que se refere ao comportamento linguístico. Essa geração, portanto, passou a se identificar com um sistema globalizado em que o meio de comunicação é a língua portuguesa. Nessa corrente, esses jovens também incorporaram outros valores globalizantes, como o consumismo e o individualismo – matou-se a tribo e construiu-se a nação:

Quero dizer que a educação socialista, ao abrir as portas da educação em todos os níveis desde o primário até ao superior, a todas as classes sociais e ao dar acesso a todos à educação, subsidiando o ensino, sem se aperceber, gerou uma elite e uma classe que reassumiu os valores morais da burguesia. Foi esta classe gerada pela revolução que se virou contra ela e que começou a cultivar o individualismo, o açambarcamento, o nepotismo, o consumismo e que foi aos poucos deixando a ideologia que apregoava e difundia a solidariedade, a igualdade, o espírito de sacrifício, o espírito de economia, o comportamento revolucionário (DIAS, 2002, p.158-159).

Essa elite, a que a professora Dias se refere, aos poucos, assume um apreço pela variedade padronizada e europeia da língua portuguesa, que passa a representar prestígio social. Em contrapartida, as variedades nativizadas do português passam por

73 um processo de estigmatização e “instaura-se nas escolas a paranóia do erro e da seleção. O professor vive procurando erros para punir. Do papel mítico de ‘herói’ que assumiu após a independência, ele passou a ‘algoz’, a punir, a ‘sacrificar’” (DIAS, 2002, p.162).

Paulatinamente, estabelece-se o cenário que ora se percebe em Moçambique quanto à língua portuguesa. Dias aponta a formação de três grupos principais: i) há falantes que a usam apenas como língua de contato, para fins comerciais e sociais; ii) há usuários bilíngues ou plurilíngues que se sentem obrigados a usar o português com mais frequência por conta da escola, do trabalho e de contatos sociais frequentes. Esses falantes podem passar a dominar perfeitamente a língua portuguesa ao longo da vida “ou podem parar em fases diferenciadas de aprendizagem da língua, mantendo em uso uma variedade de língua portuguesa ‘diferente’ (DIAS, 2002, p.175); iii) e, finalmente, há um terceiro grupo que usa o português em seu dia-a-dia de uma forma mais europeizada. Esse cenário é representado pela autora como um ‘continuum linguístico’ “caracterizado por estágios de fluência que vão desde o monolinguismo na língua bantu, passando por oscilações na competência bilíngue, com etapas de dominância na língua bantu ou na língua portuguesa” (DIAS, 2002, p.177).

Angola, por sua vez, apresenta um cenário linguístico com algumas semelhanças em relação a Moçambique, no sentido de que a língua portuguesa também divide espaço com línguas autóctones. Coadunando com Neto (2012, p.43), “o português, é para os angolanos, simultaneamente uma língua materna, segunda e estrangeira”. Para se iniciar essa reflexão, segue uma síntese feita por Pestana (2006, p.145):

Trinta e um anos passados e parece que a questão da língua portuguesa em Angola não é ainda uma questão desapaixonada, pois não faz muito tempo ouvi um líder político referir-se a ela como sendo a “língua dos portugueses”. Muitas referências pejorativas de feição ideológica já foram usadas e outras tantas explicações foram experimentadas. Dois extremos se estabelecem normalmente entre as várias teorias de justificação: os defensores da “nação crioula” e os defensores da africanidade pura.

Desde o processo de luta pela independência, a língua portuguesa era empregada por uma população de assimilados, especialmente em sua capital Luanda, e pelos líderes do MPLA (FONSECA, 2009a). Desde então, o português foi se avolumando pelas localidades do país e adquirindo feições cada vez mais autênticas, pertencendo ao universo da música, literatura, burocracia, governança, comércio etc. Entretanto, ao contactar com as línguas locais, o português passou a adquirir características marcadas

74 por valores sócio-simbólicos, hierarquizando grupos e excluindo falantes não pertencentes à variedade de prestígio.

A partir desse contato do português com línguas angolanas, popularizou-se o ‘calão’. “Assim, o calão se faz presente e é ouvido também na Cidade Alta24, mas de modo informal, no jogo e no gingar das palavras e gestos rápidos que marcam a oralidade angolana” (FONSECA, 2009a, p.118). Ao abordar esse assunto, o renomado linguista angolano António Fernandes Costa (2006, p.49) afirma que esse calão, a que Fonseca se refere, é uma incorporação de marcas de línguas bantu:

Nesta conformidade, uma abordagem da língua portuguesa, em Angola, não deixará de estar centralizada no quadro geral dos contactos em que aparece inserida. Ela contextualiza-se mediante a incorporação na sua estrutura de marcas e traços linguísticos característicos dos idiomas bantu. Este facto explica, em certa medida, o surgimento de uma específica variante dialectal distincta da europeia. Para além das interferências de natureza fonológica como o vocalismo menos reduzido, os traços fonéticos, os traços prosódicos, o ritmo e a entoação, merecem particular atenção as interferências de natureza lógico-gramatical e as do léxico.

Costa (2009) se refere a idiomas bantu. Para explicar esse termo, o Padre Raul Altuna (2006) mobiliza a formação etimológica da palavra. Segundo ele, o radical ‘ntu’ expressa ‘homem, pessoas humanas’ e o prefixo ‘ba’ forma o seu plural. Sendo assim, ‘bantu’ significa seres humanos, pessoas – portanto, expressa a ideia de povo, em um sentido coletivo. Para o autor, “o termo ‘bantu’ aplica-se a uma civilização que conserva a sua unidade e foi desenvolvida por povos de raça negra” (ALTUNA, 2006, p.23).

De acordo com o autor, os bantu viveram em constantes migrações pelo território africano, iniciadas por volta de 400 a.C. e que se prolongaram até o século XIX (cf. mapa 07). Não há precisão histórica sobre o que motivou essas migrações, mas se trata de um fenômeno de grande importância por constituir etnicamente diversos povos da região subsaariana. No entanto, é preciso ter clareza do fato de que “a designação ‘bantu’ nunca se refere a uma unidade racial. A sua formação e expansão migratória originaram uma enorme variedade de cruzamentos. Há aproximadamente 500 povos bantu” (ALTUNA, 2006, p.23). Portanto, não se trata especificamente de uma ‘raça bantu’, mas de ‘povos bantu’, que possuem hábitos culturais semelhantes e línguas que possuem um tronco originário comum. Essas línguas podem ser encontradas

75 em diversos países africanos como Uganda, Quênia, Tanzânia, Burundi, Zâmbia, Moçambique, Zimbábue, África do Sul, Angola, Congo (Zaire), Gabão, Camarões, República do Congo, Malawi, Botswana e Lesoto, totalizando em média 200 grupos linguísticos (cf. mapa 07). Em suma, “um terço da população negro-africana é bantu” (ALTUNA, 2006, p.24).