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Mapa 08: Distribuição dos troncos linguísticos em África

2.1 Concepções de língua e linguagem

2.1.1 Formas de tratamento

2.1.3.2 Norman Fairclough: o poder no discurso

Por sua vez, Norman Fairclough, assumidamente leitor de Michel Foucault, possui, como preocupação central, estabelecer diálogos entre as teorias da linguagem e as teorias sociais críticas. Nesse sentido, sua obra versa sobre o papel da linguagem nas relações sociais e nos processos de mudança e transformações sociais – mais especificamente, seu foco é investigar como a língua atua na constituição de relações de poder e ideologia.

Assim como Foucault, Fairclough (1992/2001b, p.75) assume o posicionamento teórico de que o poder está “implícito nas práticas sociais cotidianas, que são distribuídas universalmente em cada nível de todos os domínios da vida social e são constantemente empregadas”. Esse pesquisador emprega a palavra “implícito” ao se referir a poder por considerar que o sucesso dessa estrutura social, em que ocorre a atuação simultânea de micropoderes, é atribuído ao fato de que ele se dá de forma oculta nos mecanismos sociais. Segundo o linguista, um dos meios pelos quais o poder circula e que gera sérias consequências sociais é pela educação, uma vez que “o sistema educacional reproduz, sem mudança dramática, a divisão social do trabalho vigente e o sistema de relações de classe”55 (FAIRCLOUGH, 1989/2001a, p.54, tradução nossa).

55 “The educational system reproduces without dramatic change the existing social division of labour, and

115 Na perspectiva de Fairclough (1989/2001a), o poder se manifesta “no” discurso ou “por detrás” do discurso. Assim sendo, o poder “no” discurso é entendido como um lugar onde as relações de poder são exercidas e legitimadas e o poder “por detrás” do discurso reflete as formas como as ordens do discurso (vistas como dimensões de ordens sociais) são moldadas e constituídas pelas relações de poder. O autor, baseado no pensamento de Gramsci (1988; 1995)56, defende que, tanto o poder “no” quanto “por detrás” do discurso não são atributos permanentes de uma pessoa ou de um grupo social. Pelo contrário, aqueles que detêm o poder em um momento particular precisam constantemente reafirmar esse poder e aqueles que não o detêm podem a qualquer momento conquistá-lo. Dessa forma, "o poder em todos esses níveis é ganho, exercido, sustentado e perdido no decorrer da luta social"57 (FAIRCLOUGH, 1989/2001a, p.57, tradução nossa).

Em certa medida, Manjate (2010) coaduna com Fairclough (1989/2001a) ao considerar que a comunicação verbal é um meio pelo qual as ideologias são expressas e que, portanto, é o veículo por onde circulam as mais corriqueiras afirmações do senso comum e as manifestações de poder. Segundo a pesquisadora, “o poder está ligado a dimensões práticas” (MANJATE, 2010, p. 167) e se reflete na capacidade de autodomínio das pessoas mais vulneráveis física, psicológica ou economicamente, “por gerarem relações de comando e obediência, nas mais variadas vertentes” (MANJATE, 2010, 167-168).

Da mesma forma, Manjate (2010) também dialoga com Fairclough (1989/2001a) no sentido de que, para ela, a educação formal – ou qualquer outra forma de socialização – constitui um mecanismo de reprodução de poderes estabelecidos. Entretanto, não necessariamente aqueles que exercem ou que são submetidos possuem consciência do exercício do poder, haja vista que os tipos de influência possíveis são manifestos de forma complexa e sutil e “advém de crenças cristalizadas e que se revelam de forma espontânea, assentes em crenças e convicções fortes, marcas de uma mentalidade enraizada” (MANJATE, 2010, p.154).

56 Mais especificamente, Faircloug baseia-se no conceito de poder como hegemonia de Gramsci (1988,

1995) , que é caracteristicamente instável.

116 2.1.3.3 Brown e Gilman: a semântica do poder e da solidariedade

Há ainda mais uma dimensão de poder que precisa ser aqui apontada por estar diretamente relacionada aos objetivos deste trabalho de pesquisa. Trata-se da proposição clássica apresentada por Brown e Gilman, em 1960: “The pronouns of power and solidarity”. Os autores, naquele momento, propuseram um modelo que envolve o uso dos tratamentos correspondentes às duas características principais das sociedades: o poder e a solidariedade. Para estabelecer esse padrão semântico, os autores analisaram a covariação entre a forma de tratamento empregada e o relacionamento objetivo existente entre o falante e o interlocutor ao qual ele se dirige.

Para Brown e Gilman (1960/1972), poder é o relacionamento não recíproco que se estabelece entre, no mínimo, duas pessoas, no sentido de que elas não podem ter poder na mesma área de comportamento. Dessa forma, o poder semântico revela formas de tratamento típicas da relação entre um superior e um inferior, demonstrando que existe contextualmente uma estrutura social que define hierarquias de poder para cada indivíduo. Essa hierarquização pode ter diferentes bases de acordo com os valores sociais vigentes, que vão desde a força física, a riqueza, a idade e o sexo, até os papéis institucionalizados no estado, na igreja, no exército e dentro da família. Assim, a primeira experiência de subordinação de um indivíduo ao poder acontece no seio de sua própria família, na relação reverencial com seus pais. Posteriormente, a norma vigente que prevê o tratamento assimétrico é transferida para as demais relações sociais, como a que se estabelecesse entre patrão e empregado, por exemplo.

Em contrapartida, Brown e Gilman apontam a existência de relações interpessoais estabelecidas a partir de um padrão de reciprocidade. Esse tipo de relação revela uma maior complexidade, se comparada às relações de poder, pelo fato de que a maior probabilidade de ocorrer uma relação simétrica, no sentido mais estrito da palavra, se dá no tratamento que dois irmãos gêmeos58 podem empregar mutuamente ou com um

58Brown e Gilman (1960/1972), a fim de referirem-se à raridade do tratamento categoricamente simétrico,

usam como ilustração o caso de irmãos gêmeos que, por ocuparem teoricamente a mesma posição social – ao se ter como ponto de referência a sua idêntica relação fraternal – não poderiam demonstrar poder por meio das formas de tratamento. Assim sendo, os autores preveem uma relação de igualdade entre irmãos gêmeos. Esse ponto de vista é o inverso do que Lévi-Strauss noticia acerca dos povos ameríndios. Segundo o antropólogo, o sistema dualista, que tem nos gêmeos um de seus exemplos fundamentais, não pode ser estável, uma vez que a “identidade constitui um estado revogável ou provisório” (LÉVI- STRAUSS, 1993, p.208). Nesse sentido, as relações sociais têm como princípio uma posição egocêntrica, que confere à dualidade e à simetria um valor negativo – ou seja, são entendidos como positivos os valores associados à dimensão da diferença (irmão/irmã, mais velho/mais novo etc.). Dessa forma, para estabilizar essa relação, os mitos ameríndios atribuem conceitos antitéticos aos irmãos gêmeos: um é bom

117 homem conversando e atribuindo um tratamento para si mesmo. Apesar da dificuldade de se estabelecer relações em que não haja nenhuma denotação de poder, os autores preveem que pode haver relações menos assimétricas entre pessoas que frequentam a mesma escola, que compartilham da mesma profissão, ou demais atividades diárias. Há, ainda, a possibilidade de se estabelecer relações solidárias pela frequência do contato entre duas pessoas ou a partir de similaridades objetivas. Entretanto, a frequência do contato não faz com que, necessariamente, essas pessoas passem a empregar os tratamentos considerados solidários – isso só ocorre após o estabelecimento de uma relação mais íntima, a partir de uma confluência de opiniões, que resultou desse contato.

De forma geral, os tratamentos que expressam relações interpessoais de poder e solidariedade são denominados pelas iniciais V e T, em referência ao pronome de 2ª pessoa do plural vos e 2ª do singular tu do latim, respectivamente. V define tanto relações de reverência, quanto de formalidade e T envolve a semântica da condescendência e da intimidade. Entre essas duas formas existe um limite tênue que se consolida por meio da generalização do poder semântico. Assim, o poder superior pode ser solidário – como ocorre nas relações entre pais e filhos ou entre irmãos mais velhos – ou não solidário, se se tratar da relação entre oficiais, por exemplo.

Brown e Gilman fundamentam essa proposta de análise do sistema de tratamentos em estudos históricos que revelam um conjunto de correspondências entre o poder semântico e o sistema feudal, por revelar sociedades estáticas, em que o indivíduo garantia o poder pelo seu nascimento sem muitas possibilidades de redistribuições desse poder. Entretanto, os pesquisadores acreditam que a base histórica do poder semântico tem mudado de direção nas sociedades modernas, por identificarem um aumento do T mútuo entre os membros de uma mesma comunidade (colegas de classe ou de trabalho, membros de um mesmo grupo político, pessoas que compartilham um hobby ou fazem uma viagem juntas etc.) a partir da comparação dos dados de seus informantes (compostos por universitário europeus), que apontaram para a variação existente entre a preferência de tratamentos caracterizados por V pelas pessoas mais velhas e por T pelas mais jovens. A justificativa dessa nova tendência está pautada nas novas associações entre ideologia e pronome semântico:

e o outro ruim, um esperto e o outro tolo etc. Em função dessa ótica prevista por Lévi-Strauss, portanto, não caberia usar como exemplo de simetria tratamental irmãos gêmeos, como feito por Brown e Gilman, cujo referencial de análise é ocidental e, particularmente, europeu.

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Pelas nossas considerações sobre a evolução semântica geral dos pronomes, nós identificamos um estágio em que a regra da solidariedade foi limitada para o tratamento de pessoas de poder equivalente. (...) Nós acreditamos, então, que o desenvolvimento de sociedades abertas, com uma ideologia igualitária aja contra o poder semântico não recíproco e a favor da solidariedade. É nosso palpite que as grandes mudanças sociais criem uma aversão à expressão face a face de diferenciação de poder (BROWN; GILMAN, 1960, p. 269, tradução nossa).59

Diversos pesquisadores seguem o viés defendido por Brown e Gilman ao analisarem os seus objetos de estudo. Nesse rol de estudiosos, é relevante a colocação de Biderman (1972-73):

Brown e Gilman apresentam uma visão da sociedade como polarizada em duas forças: o poder e a solidariedade. Para eles o poder foi a força dominante das formas de relações sociais do passado. Nos tempos modernos essa força se estaria enfraquecendo, substituída por um novo ideal: a solidariedade. (...)

As sociedades fechadas do passado morosamente se transformaram nas sociedades abertas do presente. A força de expansão da solidariedade derrubou, ou pelo menos está tomando de assalto, os baluartes do poder (BIDERMAN, 1972-73, p. 339).

Fairclough (1989/2001a) também se posiciona a esse respeito, afirmando: "Mais recentemente, no entanto, tem havido uma mudança em direção a um sistema baseado na solidariedade, em vez de poder: tu é usado para tratar as pessoas, de alguma forma, mais próximas (amigos, parentes, colegas de trabalho, etc.), e vous é usado quando há ‘distância’ social”60 (FAIRCLOUGH, 1989/2001a, p.59, tradução nossa). Segundo o autor, essa mudança de direcionamento no comportamento linguístico – movendo-se do poder para a solidariedade – é justificada pela gama de mudanças que estão ocorrendo em várias línguas, no sentido de, cada vez mais, tornarem as marcas de poder menos explícitas. Contudo, Fairclough (1989/2001a) faz a ressalva de que esse tipo de mudança não se implementou decisivamente em todas as situações comunicativas dessas línguas, haja vista que, com facilidade, é possível encontrar relações marcadas pelo poder – mas já se aponta para uma tendência importante acentuada nessas últimas três décadas.

59 “In our account of the general semantic evolution of the pronouns, we have identified a stage in which

the solidarity rule was limited to address between persons of equal power. (...) We believe, therefore, that the development of open societies with an equalitarian ideology acted against the non-reciprocal power semantic and in favor of solidarity. It is our suggestion that the larger social changes created a distaste for the face-to-face expression of differential power.”

60 “More recently, however, there has been a shift towards a system based upon solidarity rather than

power: tu is used to address people one is close to in some way (friends, relations, co-workers, etc.), and

119 Para que a compreensão acerca dessa mudança de estratégia linguística se amplie, o pesquisador britânico faz o seguinte questionamento: "Será que esta tendência significa que as relações desiguais de poder estão em declínio?"61 (FAIRCLOUGH, 1989/2001a, p.59, tradução nossa). Para responder a essa questão, ele é enfático ao dizer que, nesse caso, a expressão linguística não tem direta conexão com as relações sociais, uma vez que ainda há, em diversos lugares do mundo, desigualdades sociais muito severas, explicitadas pela má distribuição de riquezas, aumento da pobreza nos anos 1980, desigualdades no acesso aos serviços de saúde, educação e habitação, desigualdades relativas à perspectiva de emprego, entre outras. Além disso, ”nem é crível que aqueles com poder iriam desistir dele sem nenhum motivo aparente”62 (FAIRCLOUGH, 1989/2001a, p.60, tradução nossa).

A partir desse ponto de vista, de que não foram as mudanças no panorama social que levaram a uma mudança de postura linguística, Fairclough (1989/2001a) busca justificativas históricas para as manifestações linguísticas cada vez mais pertencentes ao eixo semântico da solidariedade, em detrimento do poder. Segundo ele, o declínio das marcas de poder deve ser interpretado como uma concessão que os detentores do poder foram obrigados a fazer em função do “empoderamento” das classes trabalhadoras e das minorias sociais, a partir do final da década de 1970, haja vista que elas conquistaram mais abertamente o direito a manifestarem-se e, consequentemente, o acesso a direitos trabalhistas e civis fundamentais. No entanto,

isso não significa que os detentores do poder se renderam, mas simplesmente que eles foram forçados a formas menos diretas de exercício e de reproduzir o seu poder. Também não é uma tática meramente cosmética: por causa das restrições sob as quais eles foram obrigados a operar, há problemas graves de legitimidade para os detentores do poder63 (FAIRCLOUGH, 1989/2001a, p.60, tradução

nossa).

Refletindo acerca das dinâmicas sociais que se estabelecem em uma interação comunicativa e que são manifestas por meio do sistema de formas de tratamento, Kerbrat-Orecchioni (2011) propõe a existência de três dimensões relacionais que

61 “Does this trend mean that unequal power relationship are on the decline?” 62 “Nor is it credible that those with power would give it up for no obvious reason.”

63 “This does not mean that the power-holders have surrendered power, but merely that they have been

forced into less direct ways of exercising and reproducing their power. Nor is it a merely cosmetic tactic: because of the constraints under which they have been forced to operate, there are severe problems of legitimacy for power-holders.”

120 organizam a interação e que estão em acordo com a proposição clássica de Brown e Gilman (1960/1972). São elas:

a) “Eixo ‘horizontal’: os dois interlocutores podem instaurar entre eles uma distância maior ou menor, e em primeiríssimo lugar, as formas de tratamento (pronominais e nominais) contribuem para demarcar essa distância. Elas permitem, inclusive, que se estabeleçam, nesse nível, distinções finas ou sutis, como por exemplo, entre dois tipos de proximidade: a familiaridade (que pode chegar à intimidade) é marcada pelo nome e não pelo sobrenome, pelo diminutivo ou por palavras afetivas; ao passo que a solidariedade (filiação ao mesmo grupo ou clã) é marcada preferencialmente pelos termos relacionais:

collègue (colega), confrère (confrade, irmão, companheiro) etc.

b) Eixo ‘vertical’: os dois interlocutores podem instaurar entre eles, por meio da forma de tratamento, uma relação de igualdade ou, ao contrário, de hierarquia.

c) Eixo definindo o caráter consensual ou, ao contrário, conflitual da relação interpessoal” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2011, p.25).

Um dos aspectos que demarcam as dimensões relacionais propostas por Kerbrat- Orecchioni é a formalidade existente nas relações sociais. A esse respeito, Fairclough (1989/2001a) argumenta que a formalidade é uma propriedade comum a muitas sociedades e que determina o prestígio social e a restrição de acesso a determinadas esferas, já que implica em saber reconhecer essas restrições e atendê-las convenientemente: “também pode servir para gerar temor entre aqueles que são excluídos por ela e intimidados por ela”64 (FAIRCLOUGH, 1989/2001a, p.54, tradução nossa).

Conforme o exposto, as formas de tratamento são componentes integrantes do sistema linguístico, que possuem a função imediata de demarcar a nuance semântico- discursiva em que a interlocução se dará. Por meio desse item linguístico, portanto, o poder e a solidariedade são expressos e, por vezes, negociados.

Ao se considerar o longo caminho teórico percorrido por esse trabalho, é possível vislumbrar muitas mudanças de direção e recomeços. Todo o estudo das formas de tratamento – tanto as nominais como as pronominais, tanto pelo viés sociolinguístico quanto pelo pragmático – e a consideração sobre o poder regendo as relações sociais ainda não dão conta das necessidades teóricas para realizar a contento essa análise do sistema de formas de tratamento em língua portuguesa praticado por brasileiros, moçambicanos e angolanos. Há ainda uma lacuna teórica que precisa ser

121 preenchida com mais alguns passos nesse caminho e que constitui uma formidável contribuição da antropologia: a teoria do parentesco.