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Contextualizando e conceituando o “gênero” no movimento feminista,

Os estudos de gênero, para Franchetto, Cavalcanti e Heilborn (1981), nascem sob forte influência do movimento feminista que alcança maior visibilidade no final dos anos de 1960 como produto de lutas sociais, especialmente nos países de capitalismo avançado como Estados Unidos, França, Itália e Inglaterra.

Meyer (2003) baseada na posição de estudiosas do movimento aponta que o mesmo desdobra-se em duas ondas: a primeira está bastante desenhada em torno do movimento sufragista27 que lutava pela concessão do direito de voto para as mulheres, além de outras reivindicações. A segunda onda está caracterizada pelos movimentos ocorridos nas décadas de 60 e 70 do século XX.

Embora reconheçamos hoje que não houve feminismo, mas feminismos28, foi a divisão dos papéis sociais entre homens e mulheres e a reivindicação de uma cidadania feminina em igualdade com a masculina o ponto nodal de aproximação das mulheres que procuraram resgatar a posse de seus próprios corpos e/ou de sua sexualidade como no caso da luta pela descriminalização do aborto e as denúncias contra todas as formas de violência. Elas reivindicavam a comercialização e utilização da pílula anticoncepcional como forma de exercerem o domínio sobre a reprodução, a maternidade e suas conseqüências. Igualmente debateram, de forma ampla, o lugar da mulher na sociedade, as questões trabalhistas, os estereótipos femininos que a mídia, a escola e a religião veiculavam, entre outros temas. Ou seja, as mulheres tornam público que, se elas foram oprimidas durante séculos pelo regime patriarcal, chegou a hora de ocupar espaços públicos exigindo igualdade de direitos com os homens.

27 Movimento originário das lutas feministas do final do séc. XIX e que toma grande impulso em

diferentes países especialmente na primeira metade do séc. XX.

28 Dadas as diferenças sociais e culturais o movimento feminista não teve uma construção homogênea

nos diferentes países havendo, inclusive, pontos de divergência entre suas militantes no interior de um mesmo país. Machado (1997) desenvolveu esta idéia mais profundamente e Sarti (2001) é uma das autoras que contextualizou o feminismo no Brasil.

Tais críticas trouxeram conseqüências políticas, econômicas e culturais percebidas, sentidas e vividas até o momento atual. Em seus primeiros momentos – desde a segunda metade do século XIX e início do século XX, com o movimento sufragista norte-americano e inglês – o feminismo percebeu que enquanto persistissem as desigualdades, os interesses das mulheres necessariamente deveriam ser tratados de maneira específica, o que indicava a conquista de espaços de atuação política e social como movimento organizado.

Estudando esta questão Grossi (1998, p.2) ratifica essas afirmações, pois compreende que os estudos de gênero

[...] são uma das conseqüências das lutas libertárias dos anos 60, mais particularmente dos movimentos sociais de 1968: as revoltas estudantis de maio em Paris, a primavera de Praga na Tchecoslováquia, os black panters, o movimento hippie e as lutas contra a guerra do Vietnam nos EUA, a luta contra a ditadura militar no Brasil [...]

Aspectos interessantes são levantados por Perrot (1995), Soihet (1997) e Grossi (1998) no que concerne à participação das mulheres nesses eventos. Lutando por justiça e igualdade em movimentos de cunho “libertário”, elas reconheceram que, historicamente, assumiam um papel secundário nos mesmos. Não possuindo a direção política que estava nas mãos dos homens, incorporavam tarefas secundárias ou menos nobres em tais movimentos. Isso, de certa forma, possibilitou uma autoconsciência que extrapolou para o coletivo aproximando-as em torno da luta por direitos iguais de participação e reconhecimento social.

Para ilustrar tal condição, Soihet (1997) lembra que a Revolução Francesa29 foi um importante palco para o reconhecimento dos direitos humanos, mas representou um retrocesso para as mulheres porque, apesar de desenvolverem papéis importantes no movimento, quando da instalação da nova ordem e sob o argumento de sua natureza diversa ficaram alijadas da cidadania política e civil.

No final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970 do século XX, as mulheres questionavam mais firmemente o pensamento social dominante: a representação

29 O tema também foi desenvolvido por: Elisabeth Badinter no livro Palavras de homens: Condorcet,

Phudhomme e Guyomar..., publicado em 1991; Joan Scott, no livro A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem, publicado em 2002 e Michelle Perrot, Mulheres públicas, texto de 1998.

iluminista de um homem universal que englobava o feminino. Nessa época, o movimento pretendia também problematizar/divulgar a idéia de uma mulher universal, entendendo que isso as aproximaria entre si na luta contra o androcentrismo e contra o patriarcado ainda tão presentes.

Nesse debate não pode ficar secundarizada a ampla divulgação do livro O

segundo sexo, de Simone de Beauvoir, publicado na França em 1949, que marcou de

forma decisiva a questão feminista porque divulgou amplamente a idéia do “ser mulher” como uma construção social e, não, como um dado natural. Perguntas surgiram: há universalidade na subordinação feminina? Quais suas causas e raízes? Haveria sociedades que se organizassem de maneira diferençada?

Seria possível categorizar a discussão que se colocava até então mediante posições ou abordagens descritas a seguir. Porém, cabe considerar que, mesmo situando historicamente tais concepções, elas ainda coexistem e se afirmam e reafirmam pela produção teórica ou por idéias incorporadas social e historicamente.

a) concepção essencialista: compreende que as mulheres possuem uma essência feminina diferente da masculina representada pela capacidade de reproduzir a espécie pela maternidade. Nessa compreensão, há um suposto universal feminino que parte da diferença sexual. Ou melhor, o sexo é a origem de todas as outras diferenças e justifica ações a favor das diferenças.

b) concepção racionalista: abrange a idéia de que os seres humanos são iguais e o sexo não predetermina as diferenças porque são provenientes de construções culturais. Portanto, o fim da dominação patriarcal e da discriminação sexual a ela intrínseca eliminaria as diferenças sexuais.

Boa parte da discussão que se desenvolveu nos últimos trinta anos polarizou ou problematizou as diferentes questões que envolviam o gênero tomando como eixo essas duas principais concepções. Portanto, o próprio conceito de gênero vai sendo ampliado e modificado como produto do debate que faz avançar o conhecimento. Aqui no Brasil, consideradas as singularidades que o movimento feminista possui, há uma assimilação da produção teórica internacional que contribui largamente para avançar o conhecimento no campo com base em diferentes olhares.

Quanto ao conceito de gênero Sorj e Heilborn (1999) destacam que o mesmo tem claramente uma origem anglo-saxã, pois pesquisadores/as franceses/as não incorporaram essa categoria, utilizando o similar “relações sociais de sexo”30. De forma geral, é possível sintetizar que na década de sessenta do século passado a expressão mais utilizada era “estudos sobre a mulher”. A partir dos anos oitenta, Sorj e Heilborn (1999) e Grossi (1998) observaram um declínio do termo mulher utilizado como categoria empírica/descritiva, paulatinamente substituído pelo termo gênero (KOFES,1993) muito embora ambos coexistam nos dias atuais.

Essa mudança de certa forma favoreceu a crítica ao determinismo biológico que estava implícito na utilização dos vocábulos “sexo” ou “diferença sexual” os quais eram defendidos pelas teóricas essencialistas e sublinhou os aspectos relacionais e culturais da construção social do masculino e do feminino. Por esta razão, os homens foram incluídos como categoria empírica passível de ser investigada, o que comumente se denominou de estudos de masculinidade.

É perceptível na produção teórica brasileira ao longo dos últimos anos uma interlocução paralela entre o campo americano dos women`s studies e dos gender

studies com a produção francesa das pesquisas feministas, pesquisas sobre as mulheres, estudos femininos e estudos sobre as relações sociais de sexo, segundo Machado, (1997, p.102). Há ainda interfaces do campo com os Estudos Culturais e, mais recentemente, com a agenda que versa sobre o movimento queer31– incluindo-se aí os estudos sobre lésbicas, gays, bissexuais, transexuais – e também com o multiculturaismo e a interculturalidade.

Além disso, e não havendo consenso quanto aos aspectos políticos e teóricos em relação ao termo, as acadêmicas feministas utilizavam “gênero” como uma

30 A expressão é cunhada a partir da publicação do trabalho de Nicole Mathieu, L`anatomie politique.

Catégorisations et idéologies du sexe, em 1992.

31 A teoria queer critica as oposições binárias homem/mulher; heterossexual/homossexual como

categorias centrais que organizam as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre as pessoas transbordando o terreno da sexualidade. Segundo Louro (2001, p.552) a teoria queer incita uma reviravolta epistemológica porque provoca e perturba formas convencionais de pensar e de conhecer. No âmbito da educação, segundo a autora, a pedagogia queer “sugere o questionamento, a desnaturalização e a incerteza como estratégias férteis e criativas para pensar qualquer dimensão da existência”. Em sentido geral, queer significa colocar-se numa postura contrária a normalização, seja ela qual for. Ele se contrapõe à heteronormatividade compulsória e, igualmente, à estabilidade e normalidade da identidade homossexual.

categoria de análise que objetivava criticar os pressupostos inerentes aos principais paradigmas da teoria social. Com isso, buscavam compreender como o conceito de gênero afetava as práticas sociais e acadêmicas e a produção do conhecimento nas Ciências Humanas e Sociais.

De início, é na Antropologia que a incorporação da categoria gênero se dá de maneira mais intensa. Especialmente pela natureza do objeto de estudo da Antropologia – que focaliza o comportamento humano nas diferentes culturas –, esta disciplina se constituiu como um campo no qual o estudo sobre as mulheres foi absorvido talvez com mais organicidade. Para Franchetto, Cavalcanti e Heilborn (1981) a Antropologia constituiu-se em um campo fértil para o gênero quando o movimento pergunta: o que significa ser mulher?

Do ponto de vista da história, Scott (1995, p. 117, grifos nossos) salienta que especialmente nas últimas décadas

[...] os Estudos de Gênero criaram um paradigma metodológico no que tange a ruptura com o sexo biológico e com a dessubstancialização das categorias naturalizadas de homens e mulheres. Afirmaram a primazia metodológica de investigar as relações sociais de gênero sobre a investigação das concepções de cada um dos gêneros; afirmaram a possibilidade cultural de um número indefinido de gêneros; afirmaram a possibilidade dos processos de diferenciação e indiferenciação de gênero Apontaram a primazia da diferenciação sobre as diferenças construídas, isto é, a primazia das relações entre os gêneros sobre as concepções de cada um dos gêneros [...]

A despeito de algumas disciplinas terem sofrido mais influência dos estudos sobre as mulheres e dos Estudos de Gênero, um aspecto interessante a ser destacado, segundo Costa (1996), é o fato de a categoria gênero ter como ambição maior uma interrogação sobre os campos disciplinares dispensando ou não reivindicando um território próprio. Para a autora, gênero como categoria atravessa os campos disciplinares como um instrumento de crítica, desconstrução e reconstrução dos conhecimentos e saberes reivindicando um estatuto de interdisciplinaridade.

Nessa direção, o estudo da bibliografia nacional e estrangeira permite perceber que o gênero vem sendo utilizado baseado em diversos matizes teóricos, por estudiosas marxistas, psicanalistas, funcionalistas, construtivistas, pós-estruturalistas, feministas, masculinistas, e tantas outras.