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5 NÃO BASTA SER MULHER NÃO BASTA GOSTAR DE

5.8 Um limite para o cuidado: a metáfora da mãezona

O modelo “mãezona”, superprotetora, não parece ser o estilo mais aceito entre os grupos pesquisados e é tema de constantes conflitos. Uma diretora se posicionava

contrária ao ideal da superproteção e a um excesso de “feminilidade” expresso por seu chamado de atenção às profissionais que, segundo ela, exageravam nos cuidados. Nessa situação, eles eram sinônimos de restrição dos movimentos corporais que impediam as crianças de se movimentarem, brincarem em espaços mais amplos e mais desafiadores com certa liberdade e autonomia. Algumas profissionais não entendiam como poderia alguém questionar uma atitude “tão positiva”? Se, por um lado, o modelo “mãezona” é criticado por um segmento do grupo, por outro, é valorizado.

Às vezes uma chamada de atenção num aspecto que parece tão positivo e que se tu chamas a atenção para aquilo ali, tu és carrasca. Como tu estás criticando uma pessoa por ela ser assim? Se ela é tão boazinha, se ela protege tanto? Às vezes a proteção atrapalha também. Eu faço algumas restrições ao trabalho da mãezona, por

ser protetora demais porque a proteção demais também não dá. (LIA, DIRETORA).

O tema da “superproteção” aparece representado como feminino e como sinônimo de privação do movimento imposto pelas mulheres adultas às crianças. Nesse caso, um excesso de cuidados com a proteção e a segurança do corpo, segundo essa diretora, limita demais as propostas apresentadas pelo/as professor/as. Essas representações aparecem de diferentes maneiras e o papel da mãe “exagerada” como metáfora da profissional superprotetora no que concerne ao excesso de atenção é criticado. De fato, cuidados com o corpo implicam numa certa proteção, dado que muitas crianças ainda são, de certa forma, dependentes dos adultos. Como sugere Giddens (2002, p. 62),

[...] o corpo não é apenas um meio localizado de ação. É um organismo físico que deve ser cuidado por seu possuidor; é sexuado; é uma fonte de prazer e dor. Um aspecto fundamental da condição humana é que os seres humanos não podem tomar conta de si mesmos nos primeiros anos de vida. As rotinas de cuidados são parte elementar das circunstâncias da confiança na vida da criança; os adultos responsáveis são também os provedores [...]

Está em jogo uma medida para o cuidado e a proteção. Como foi alertado, alguns modelos desvalorizados para uns/as são super valorizados/as por outros/as. Neste caso, uma menor proteção ou ações que permitam mais liberdade de movimento fazem parte da imagem de um professor que educa e/ou cuida bem das crianças, segundo a concepção da diretora que afirma:

[...] diferentemente do modelo mãezona [...], o Ernani proporciona um trabalho mais

livre com as crianças. Ele deixa subir no morro, subir em árvore e eles adoram. Porque as crianças querem é fazer isso. Criança não quer ficar sentadinha, quietinha na sala fazendo coisinhas bonitinhas e ele proporciona melhor essas coisas. Tem mulheres que até conseguem fazer isso e eu acho que é aí o trabalho. Essa coisa de muito proteger... é claro que tem que cuidar. Mas tem gente que cuida

demais. O que eu acredito que é o importante, não é importante para outro. (LIA,

DIRETORA).

Considerando esta referência acerca do trabalho docente de um professor, é interessante atentar para que não ocorra uma transposição linear da análise, reducionista, levando-nos a supor que a simples presença de homens no exercício do cuidado/educação das crianças pequenas viabilizaria ações em que a liberdade de movimento é tornada possível às crianças. Incorporada às práticas e experiências que Ernani possibilita aos meninos e meninas, está subjacente uma concepção de criança, de infância e de Educação Infantil, na qual o modelo escolarizante perdeu sua força em direção às necessidades expressas pelos/as pequenos/as. Com isso talvez seja possível pensar não em práticas pedagógicas determinadas por homens e mulheres, mas em práticas pedagógicas nas quais as crianças vivenciam modelos masculinos e/ou femininos.

É insuficiente supor que a liberdade de se movimentar e brincar permitida pelo professor se concretiza dessa forma porque advém da intencionalidade educativa de um homem, senão que esse “homem-professor de crianças pequenas” permite que meninos e meninas vivenciem aspectos mais próximos do modelo de masculinidade contribuindo para a construção das suas identidades. Da mesma forma o inverso também poderia se constituir. Vejamos estes dois exemplos que evidenciam posturas diferenciadas em professores diferentes:

João organiza um trabalho com as crianças que consiste em desenhar e pintar. Entrega as folhas em branco e os lápis coloridos a elas que estão sentadas, em geral, em grupos de quatro. Após a entrega do material, porém, passa em todas as mesas e arruma a postura dos meninos e meninas. Diz que precisam primeiro aprender a sentar para depois pintar. Aqueles que estão sentados sem a postura

ensinada por ele ouvem: isso é postura para sentar? Arruma as pernas, encosta as costas na cadeira Ninguém se joga por cima da mesa são ordens dadas pelo docente. (Registro em vídeo, março de 2002)

Nesse caso, o docente incorpora o ethos masculino de sua origem como monitor de Educação Física e menospreza a proposta feita – desenhar e pintar – valorizando a postura, o controle e a disciplina do corpo. “Primeiro é preciso aprender a sentar”. Outro professor em uma proposta de trabalho semelhante permite que as crianças se organizem de outra forma:

Todas as mesas e cadeiras são retiradas para um corredor que localiza-se em frente a entrada da sala. As crianças estão dispersas e sentadas pelo chão da sala. Algumas estão no banheiro e outras ajudam Simone a guardar alguns objetos. Logo após são distribuídas algumas folhas para desenho e pintura. Meninos e meninas acomodam-se de bruços e outros sentam-se no chão para iniciarem seu trabalho. Alguns, quando se deitam olham para trás cuidando para não baterem com as pernas em ninguém. A, um menino que exigia constante controle e atenção dos dois profissionais empurra com sua perna I., um menino que está deitado ao seu lado e que logo reclama do empurrão sofrido. Ernani pega A. no colo e diz que ele pode ocupar um lugar onde tem mais espaço já que precisa disso e sugere um outro lugar na sala. (Diário de Campo, abril de 2002)

Observando as duas ações confirma-se a representação de que o gênero não é o único demarcador das práticas, sejam elas concebidas como cuidado ou como educação. Operam, nesse caso, as diferenças entre concepções de criança, infância e papel da Educação Infantil como definidora de posturas e ações pedagógicas na instituição. Não há, portanto, nem uma adesão inconteste a um modelo feminino “maternal” e sequer uma universalidade em que representações simbólicas de masculino sejam hegemônicas porque os professores são homens. Com uma certa autonomia docente é possível perceber um maior ou menor disciplinamento do corpo e dos cuidados para com ele.

Considerando tais aspectos, o depoimento de Ernani ajuda a refletir sobre a complexa dimensão que envolve a associação dos dois termos: cuidado e educação.

Acho que tem a questão do cuidar de uma forma mais paternal, de colo, o que também faz parte. Acho que tem uma pequena confusão da proteção, a superproteção que daí

talvez as pessoas chamem de cuidar, de superproteção e do educar porque, muitas vezes a superproteção não está educando. De certa forma, não deixa de estar, mas essa superproteção dificulta muito mais o processo educacional o que de certa forma é entendido como não-educação no sentido mais amplo da palavra. Acho que a

grande confusão é nesse sentido. (ERNANI, PROFESSOR).

É evidente que o professor tinha clareza acerca de sua concepção de Educação Infantil; no depoimento acima aparecem nitidamente os impasses acerca das distinções/ambigüidades entre cuidar e educar. Ou seja, se na prática a posição está clara, no momento em que o professor reflete sobre ela o problema volta à tona. Até que ponto determinadas ações dos adultos educam ou não-educam? Constituem-se como cuidado ou não?

Um outro ponto de vista pode ser considerado no caso do depoimento de Daniela exposto abaixo. A auxiliar elabora uma reflexão sobre o menino que estava com febre e um profundo mal estar. De fato, havia necessidade de que ela tomasse a dianteira de muitas ações com o grupo de crianças porque o professor não demonstrava vontade nem interesse em envolver-se em algumas situações. Muitas profissionais naquela instituição sabiam dessa postura do professor e tentavam compensá-la de algum modo visando o bem estar dos meninos e meninas. Percebi então que, de alguma maneira, o docente se acomodava à situação e, em contrapartida, as profissionais sobrecarregavam-se em face de sua indiferença em assumir algumas tarefas. Porém, não identifiquei, durante o tempo em que desenvolvi a pesquisa, qualquer debate acerca dessa específica questão na creche, a não ser algumas piadas e comentários que não eram explicitados diretamente ao docente. Elas ficavam como “conversas de corredor”. A auxiliar elabora a seguinte reflexão:

Tem casos assim que eu tomo a dianteira. Às vezes parece que é manha, mas eu acho que independente de ser manha, essa criança tem que ser olhada. Se tem alguma coisinha a mãe tem que ser comunicada, não é que a mãe tem que vir aqui buscar a criança cedo, mas não custa nada ela saber que a criança está passando um pouquinho mal, se ela tem oportunidade de vir mais cedo, melhor. Eu já tomo a dianteira, se a criança está quietinha, alguma coisa ela tem. Se fosse um filho

meu...como mãe eu jamais gostaria de que um filho meu não tivesse uma atenção.

(DANIELA, AUXILIAR DE SALA).

Nessa situação, a auxiliar coloca-se explicitamente “no lugar da mãe” para refletir sobre os fatos. Ongari e Molina (2002) enfatizam que a experiência feminina relacionada à maternidade é um elemento crucial, mas nem sempre considerado nos percursos das profissionais. Elas justificam que não há uma relação totalmente linear entre a experiência como mães e como educadoras. No caso colocar-se “no lugar da mãe” implica ativar uma espécie de sentimento característico da maternidade ligado ao zelo, à proteção. Esses fatores para as autoras, se adequadamente reconhecidos, podem trazer elementos significativos para a profissão, o que parece estar presente no depoimento de Hilma.

Em outras situações registradas no caderno de campo também percebi que a tomada de decisões acerca de alguns cuidados corporais eram iniciativas das auxiliares que desconsideravam de, certa maneira, a autoridade do docente legitimando um poder feminino que elas tinham neste campo.

C. passava insistentemente sua mão na virilha e fazia uma expressão de dor. Depois de algum tempo, Malu, a auxiliar perguntou: Por que estás te puxando tanto? E o menino respondeu: Não sei tem uma coisa aqui. Ela começou a examinar o menino e, como eu estava bem perto, falou: acho que ele está com uma íngua e pediu que eu examinasse também. O menino sequer se importou. Malu levantou-se e disse para mim. Vou levar no Posto de Saúde aqui do lado. Pegou o menino pela mão e somente comunicou ao professor que ia ao Posto levar o C.. (Caderno de Campo, novembro de 2001).

Também em outra situação:

Na sala, E. chorava muito. Parecia expressar uma tristeza imensa. Quando as crianças do grupo foram brincar na varanda para aguardar o almoço, ela sentou- se em uma cadeira e continuou chorando. O professor passou e comentou: mas é uma manheira esta M.! Além de manheira, chorona. A auxiliar ouviu o comentário, pegou a menina no colo e começou a acariciá-la. E. recolheu-se no peito de R. assumindo uma posição confortável em seu colo e em poucos minutos parou de chorar. A auxiliar comentou comigo enquanto segurava a menina: Eu sei porque ela está chorando. Ela sente dor no peito. É cardíaca. E, bem baixinho

para que M. não ouvisse, sussurrou em meu ouvido: a mãe não leva ao médico e ela sente muita dor (Caderno de Campo, outubro de 2001).

Tais situações são exemplos de que meninos e meninas necessitam da atenção dos adultos, mesmo que a distância. Elas não precisam estar com qualquer problema de saúde para serem cuidadas. Às vezes só querem que as olhemos com atenção. Em outras, estão correndo algum risco e o cuidado, nesse caso, é um dever ético de qualquer profissional.