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Professores atuantes na Educação Infantil: trajetórias de vida, opção e

O que seriam, então, as trajetórias dos sujeitos pesquisados/as? As trajetórias podem nos apresentar “linhas” percorridas por corpos ou sujeitos que se movimentam. Linhas podem simular traços contínuos que separam dois mundos, dois objetos ou podem ser limites. Elas também podem ser conexões que se cruzam, ultrapassam,

combinam, como afirma Heilborn (1998, p. 395) “[...] uma seqüência de experiências vividas, as datas em que estas tiveram lugar e suas circunstâncias, os intervalos e seus desdobramentos [...]” As trajetórias dos sujeitos revelaram múltiplas relações que foram lidas e interpretadas a partir do referencial teórico adotado por mim na condição de pesquisadora. Estas múltiplas relações envolveram sujeitos concretos, que possuem histórias de vida que ora são singulares, ora representam um contexto mais amplo de relações sociais.

A instituição com sua história e dinâmica própria permeada pelas relações entre os/as diferentes protagonistas – professores e professoras, profissionais, famílias, crianças e outros/as – delineiam a “cultura da creche” ou a “cultura institucional”.

Por “cultura da creche” entendo o conjunto de histórias e concepções do passado e do presente dos diversos sujeitos que dela fazem parte. Nesse caso estão presentes os corpos docente e discente, o corpo de funcionários, as famílias, a arquitetura, a administração da creche e do órgão gestor (prefeituras, estados, rede federal, rede privada, redes de assistência etc.), as políticas e a pedagogia implementadas e as possíveis resistências a elas. Tudo que se fala, se pensa, se implementa ou se representa sobre e na creche ajuda a produzir uma cultura própria a este espaço. Ela se expressa nas diferentes formas dos sujeitos interagirem no seu interior, na ocupação do tempo e do espaço, nas rotinas e rituais que aí se desenvolvem, nas concepções acerca do trabalho pedagógico desenvolvido com as crianças e nas concepções de infância presentes, assim como nas formas físicas e simbólicas de expressão do poder.

Para recompor algumas trajetórias, considerei o “tempo” das situações vividas como uma categoria que ajuda a atribuir alguns sentidos históricos aos fatos e ampliar esses sentidos permitindo, baseadas nisso, algumas generalizações.

Também considerei “espaço” como lugares demarcados por relações institucionais entre homens, mulheres, meninos e meninas ampliando assim noções meramente geográficas. Os sujeitos, relembrando seus movimentos, vão atribuindo significados às suas vivências nos tempos e espaços por onde andaram. Assim, os “espaços” ultrapassam uma geografia eminentemente física, pois ganham sentidos, nesse caso, nas relações sociais. Nos tempos e espaços, os sujeitos atribuíram

significados às experiências e repensaram-nas o que permitiu que se colocasse em questão os significados da própria “experiência”.

Compondo o quadro de expectativas sobre trajetórias, Bourdieu (2001) em As

contradições da herança apresenta elementos significativos para problematizarmos as “linhas” traçadas pelos sujeitos. Este autor aborda a questão das trajetórias relacionadas à ordem das sucessões no sentido da perpetuação da linhagem, da gestão da relação entre pais e filhos e de sua herança em sentido amplo. Em parte, porque depende de uma tendência à perpetuação no ser da posição social que ocupam seus antecessores – no caso das sociedades ocidentais especialmente da posição paterna – e, de outro modo, porque a transmissão da herança depende dos veredictos das instituições, representados pela escola.

Para o autor, as trajetórias não são individuais, estão em consonância com o meio social e podem significar ascensão ou não, conforme a continuidade ou descontinuidade entre o projeto que estava inscrito na trajetória dos pais e nas possibilidades futuras aí implicadas.

Velho (1999) sugere que a reconstrução das trajetórias encontra seu sentido na busca da explicação acerca dos comportamentos, preferências e aspirações dos sujeitos. Para esse autor é insuficiente a análise da posição do indivíduo, família ou grupo para tal explicação. É importante não só estar atento para o sentido da trajetória, seu ritmo, direção, e daí extrair conseqüências, mas também procurar perceber a própria trajetória como expressão de um projeto. Ou seja, a trajetória tem um poder explicativo, mas deve ser dimensionada e relativizada com a tentativa de perceber o que possibilitou essa direção particular e não outra.

Com isso o autor admite a existência de processos sociais que condicionam e afetam as opções e escolhas. No entanto, resgato também a participação dos indivíduos que, de fato, interagem, intervêm e têm preferências que podem estar em sintonia com a cultura de uma época ou sociedade, mas não são plenamente determinados por ela.

A idéia de projeto que Velho (1999) toma de Schutz (1971) diz respeito ao espaço possível ou a margens de manobra que existem nas sociedades para a tomada de posições, decisões e alternativas. Nas histórias de vida dos sujeitos alguns

momentos são dramáticos e decisões tomadas são implementadas, escolhem-se caminhos pautados por suas necessidades e desejos.

Ao optarem, por várias razões, por uma profissão considerada “feminina” os professores fomentam estratégias envolvendo relações que moldam parte de um pacto que consiste na sua “aceitação” como membros do espaço institucional da creche. Tais estratégias são elaboradas e se desenvolvem pelo enfrentamento das diferenças e concepções de gênero e de Educação Infantil, além de elementos objetivos e subjetivos abrangendo os afetos, as emoções, a sexualidade, a raça/etnia e classe social que compõem a identidade do/a profissional.

Os primeiros momentos dos professores e sua chegada na Educação Infantil conformam uma espécie de Ritual de Passagem que demarca, muitas vezes, sua continuidade na profissão ou a busca por alternativas por meio da mudança do projeto profissional inicial.

Parece que ainda temos que percorrer uma longa trajetória quanto ao aprofundamento das questões postas e, pensando nesta pesquisa, concordo com Louro (1992, p. 64) quanto à afirmação de que

[...] sabemos “ler” nos rituais de sociedades antigas processos de masculinização ou feminização dos sujeitos e não somos capazes de perceber nos nossos rituais, nos meios de comunicação, nos atuais guetos profissionais ou escolares esses mesmos processos [...]

Para compreender o momento de chegada na profissão utilizei-me de pesquisas de Segalen (2002) que estuda e problematiza os ritos e rituais contemporâneos. A autora refere o importante trabalho realizado por Douglas (1971) a fim de fazer com que compreendamos a eficácia simbólica dos rituais. Douglas (1971) se interessa pelos sentimentos de mal-estar de que somos acometidos quando percebemos objetos colocados em lugares que simbolizam aspectos de rituais vivenciados. Por exemplo, choca-nos ver um par de sapatos colocados sobre uma mesa porque sapatos não são apropriados para serem colocados neste lugar. A mesa em nossa cultura representa simbolicamente um ritual importante e diz respeito à alimentação. Da mesma forma, panelas quando colocadas em cima de uma cama. Assim, Douglas (1971) estudou os efeitos que os rituais exercem sobre a “modificação da experiência”.

O mesmo choque em relação a objetos deslocados de sua função primeira, que nos desequilibram quando aparecem fora de seu lugar interferindo em nossas estruturas simbólicas, pode acontecer quando identificamos sujeitos que estariam aparentemente fora de seus lugares ou espaços cindidos por gênero. A chegada de um homem num espaço dominado por mulheres e supostamente feminino produz uma sensação de deslocamento, desconfiança e incômodo. Baseada em um estudo de 1959, Willians (1995) constata que os homens que ocupam posições profissionais categorizadas como “femininas” são geralmente vistos como “anomalias”, percepção reforçada pela cultura popular. Além disso, geralmente eles são representados de maneira estereotipada.

Algumas dessas representações são expressas pela indústria cultural, por exemplo, o filme, denominado no Brasil Um tira no Jardim de Infância (1990), no qual o musculoso Arnold Schwarzenegger, antes um competente detetive, se vê forçado a trabalhar com crianças de cinco anos e é completamente dominado por elas. O filme sugere que Schwarzenegger é completamente incapaz de ser professor de crianças pequenas. Seus músculos indicam que ele é um “homem de verdade” o que seria incompatível com sua adesão a uma profissão feminina. As pessoas ainda se perguntam porque um “homem saudável e inteligente” trabalharia por vontade própria numa “ocupação feminina”?

O ingresso de professores numa profissão na qual há uma composição majoritária de mulheres pode modificar a experiência que profissionais, crianças e familiares de Educação Infantil vivenciam nas diferentes instituições porque o ritual e a cultura existente no interior da creche em alguns aspectos são alterados. Tem-se em vista aqui a afirmação de Willians (1995): o local de trabalho não é neutro em relação ao gênero.

Ao interpretarmos os ritos algumas estruturas simbólicas são elaboradas e evidenciadas. O ritual é, para Segalen (2002, p.31),

[...] um conjunto de atos formalizados, expressivos, portadores de uma dimensão simbólica. O rito é caracterizado por uma configuração espaço- temporal específica, pelo recurso a uma série de objetos, por sistemas de

linguagens e comportamentos específicos e por signos emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de um grupo [...]

As contribuições teóricas expostas até o momento deram a necessária sustentação para o modo como apreendi as trajetórias de vida dos docentes atuantes na Educação de zero a seis anos, sua opção pela carreira, formação profissional. A seguir, elas são expostas e detalhadas algumas características de cada um dos professores em sua atuação docente. Quanto aos professores que “desistiram” do magistério na educação infantil, descritos após os atuantes, também considerei algumas experiências de vida, a chegada na educação infantil e as razões para a desistência da profissão.