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5 NÃO BASTA SER MULHER NÃO BASTA GOSTAR DE

5.5 Cuidado é educação? Educação é cuidado?

Quando me referia às atividades relacionadas ao cuidado na Educação Infantil, uma série de significados emanava das entrevistas, observações e dos vídeos que realizei. A análise desse material possibilitou que alguns discursos fossem re- significados, bem como outras perguntas fossem possíveis.

A idéia de cuidado aparecia nas falas de profissionais bastante reforçadas pelos documentos advindos do Ministério da Educação e incorporados pela produção teórica nacional. Parece-me que em todos os cursos de formação de professores e professoras, seja em serviço ou na graduação, o discurso do educar e cuidar virou “chavão”. Era o que de mais avançado tínhamos (ou temos?) para justificar a especificidade da Educação Infantil. Essa afirmação pode ser plenamente ratificada pela fala da maioria dos/as profissionais durante a pesquisa que pareciam policiar-se o tempo inteiro para não dissociar os termos, mesmo quando conversavam informalmente comigo.

É interessante registrar o impacto que causava uma professora da universidade federal entrevistando ou observando profissionais da rede pública. Esses sujeitos, como eles/as próprios alegavam, conheciam as concepções “da federal”, as quais abarcavam, no plano discursivo, a suposta indissociabilidade entre cuidar e educar. Acrescente-se a isso o fato de boa parte das professoras da licenciatura em Pedagogia da UFSC e do CED participarem ativamente de projetos de formação nas unidades ou

junto à Secretaria de Educação, multiplicando largamente o princípio da indissociabilidade mediante cursos, oficinas, palestras e produção bibliográfica.

Essa evidência era manifestada por um dos professores participantes deste estudo que, pensando sobre o tema do cuidado, relembrou sua experiência com os/as pequeninhos/as argumentando como o cuidado estava articulado com a educação. Sua entrevista reproduziu claramente como deve ser a indissociabilidade entre cuidado e educação no plano teórico ou no discurso, tendo em vista que ele afirmava ter sido bastante influenciado pelos conhecimentos obtidos no Curso de Pedagogia da universidade onde se licenciou. Esse depoimento sintetizava, de certa forma, a idéia comum entre os sujeitos da pesquisa de “como” o cuidado deveria estar articulado com educação e ratificava a concepção anteriormente elaborada de que o primeiro está estreitamente ligado às demandas do corpo associadas às trocas afetivas.

[...] na creche onde eu precisei ir para a sala com crianças menores, eu lembrei muito

de estudos que a gente fez na academia sobre o cuidado. Eu não precisei dar banho, mas o banho a gente sabe que não pode ser aquele banho mecânico, coloca na banheira, tira, põe a roupa e coloca no berço e já pega o outro. Porque a criança, a gente tem que desenvolver a fala, tem que estar conversando com ela e trazer ao peito para ela se sentir segura. Não ao peito para dar de mamar, mas para afagar. (risos) Então tudo isso é uma demonstração de carinho para que a criança se sinta segura daquele ato. Porque não é simplesmente o ato de cuidar, é um ato pedagógico

também. (ÂNGELO, PROFESSOR).

No momento em que entrevistava o docente relembrei dos exemplos que são discutidos durante a formação no Curso de Pedagogia. É desta forma que se vê, na universidade e na formação de um modo geral, a indissociabilidade entre cuidado e educação. Quando menciono que há, de fato, uma apropriação do discurso percebo, da parte dos/as profissionais, que o mesmo funde os cuidados com o corpo com uma certa atenção e carinho como sinônimo de afetividade que todos/as acreditavam precisavam ser dispensados às crianças durante as tarefas relacionadas a essas atividades.

Quando se trata de um discurso masculino há que se reconhecer a positividade aí presente no momento em que o professorÂngelo distinguiu que nenhuma ação pode ser realizada de maneira mecânica porque as crianças precisam dos afetos. A

positividade que aponto está atrelada a desconstrução do modelo de masculinidade que o docente coloca em evidência aderindo no discurso ao modelo simbólico e aceito socialmente como feminino: o da ternura e da afetividade associados aos cuidados.

Era notório que idéias tão difundidas do ponto de vista da produção acadêmica fossem incorporadas discursivamente por profissionais que atuam em creches públicas. Um único docente declarou uma visão oposta ao que geralmente prevalecia como representação. Ele afirmava:

[...] nós somos babás de luxo. É isso que nós somos porque a creche não faz

mais nada do que cuidar das crianças, mas as colegas não admitem isso e ainda ficam

indignadas comigo [...] (IVAN, PROFESSOR).

Tal professor insistia que isso era o que boa parte do pessoal da rede pensava, mas não tinha coragem de expressar. Remontando à história brasileira, na qual “babás” sempre foram consideradas uma ocupação de status inferior, compreendo porque o docente afirma que “não faz mais nada do que cuidar as crianças”. Articulando suas declarações com as práticas que o mesmo desenvolvia foi possível perceber o quanto “cuidar” representava uma quase total ausência de propostas elaboradas por ele com e para as crianças. Elas passavam manhãs e tardes inteiras brincando sozinhas, faziam as refeições e o contexto permanecia quase sempre o mesmo: conflitos, lutas, disputas por espaço e materiais, gritos e ofensas. Enquanto isso, alguns recebiam especial atenção como colo, carinho, alimentação diferenciada, entre outros cuidados.

Sempre muito espirituoso em suas colocações, o professor Ivanafirmava que, pelo fato de ser muito crítico e, em contrapartida, muito criticado, estava executando a “lei do silêncio” em seu cotidiano na unidade porque verdades como a expressa em “nós somos babás de luxo” não poderiam ser alardeadas, considerava ele. Esse depoimento me foi concedido logo ao início da pesquisa, o que possibilitou uma investigação mais detalhada do mesmo. Tentei, então, olhar mais minuciosamente a questão e, por isso, me ative aos aspectos ligados ao corpo. Também pelas afirmações como aquelas apontadas pelo docente, senti-me mais à vontade para dicotomizar, para efeitos analíticos, cuidado de educação. Passei a estranhar cada vez mais o que aparentemente estava incorporado ao discurso, mas que poderia se apresentar de modo diferenciado quando analiticamente pensado. Tentei confrontar mais detidamente o

significado de expressões correlatas ao tradicional “cuidar e educar caminham juntos”59 presente nas falas dos/as profissionais com as práticas observadas, os discursos emitidos tentando captar os matizes de gênero, as omissões e indefinições que o objeto abarcava.

5.6 “Eles não dão conta do recado”: apostando na incapacidade dos professores

Os modelos socialmente construídos de mulheres “cuidadoras” e homens “provedores” talvez tenham contribuído para gerar nas profissionais a aposta de que os docentes “não dariam conta do recado”, tendo em vista que são elas que historicamente e desde a infância aprendem “como cuidar”. Ou seja, parecia haver uma legitimidade nas práticas exercidas pelas mulheres ratificadas pelo argumento da feminilidade como características inatas em face de seus antecedentes como mães ou como “cuidadoras” de outras crianças no âmbito doméstico ou mesmo em experiências anteriores em instituições educativas para a infância. Paralelamente e situando o caso dos professores, essa concepção apontava que o cuidado e a maternagem não poderiam ser “aprendidos”. Eram capacidades inatas, o que enfatizava o desconhecimento ou a negação de que toda e qualquer aprendizagem é socialmente construída ratificando, por essa via, a concepção essencialista sublinhada neste texto.

Se bem que não tenham experimentado situações de cuidado, os homens poderiam aprender – e de fato aprendem – sobre os cuidados infantis e, talvez, como afirmava Badinter (1993), desde que as mulheres próximas tenham disposição para deixá-los aprender. Algumas das entrevistadas relataram que

A gente achou que ele ia apanhar. Mas, no começo a gente foi ensinando as fraldas, tudo. Até porque ele tinha um sobrinho que ele cuidava quando era pequeno então ele já sabia mais ou menos como era. Para ele não houve muito problema. (SIMONE, DIRETORA, SOBRE IVAN).

Outra profissional destacou que

No sentido de professor, no sentido de que a gente mulher por mais que a gente diga que não faz diferença entre eles e nós, a gente faz sim. Mas ele se saiu super bem. Deixou todo mundo de bobeira, deu um olé em todo mundo como se diz. Quando ele foi trabalhar no berçário é que a coisa ficou assim: -será que isso vai dar certo? Será que essa coordenação não está maluca? E deu muito certo. (SILVIA, AUXILIAR, SOBRE ERNANI).

Como é possível depreender desses depoimentos e de outros, há uma aposta inicial, parte do Ritual de Passagem, na incapacidade dos professores de exercerem o cuidado com os/as pequenos/as. Ao mesmo tempo, isso leva a crer que feminino e masculino estão naturalizados nas representações das profissionais. Ou seja, os homens “não sabem como cuidar” e quando eles desempenham bem tais tarefas a partir do conceito e dos critérios femininos evidencia-se uma certa surpresa.

5.7 Cuidado para as famílias e educação para os/as profissionais: os