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PARTE II: CAMPOS E LINGUAGEM

2. SUJEITOS COLETIVOS E INSTITUIÇÕES

2.3. CONTORNOS DE AUTONOMIA: EPIGÊNESE DE UMA LINGUAGEM SIMBÓLICA

No entender ambiental que vimos propondo, sempre buscamos enfatizar o constante tensionamente entre sujeito e ambiente, sempre considerando a ideia de um sujeito que ‘se dilui’ no ambiente para deste emergir em momentos específicos. A partir desta perspectiva, como podemos entender a linguagem e suas funções?

Primeiramente, uma vez que propomos um sujeito que, pelo menos em certos momentos, se confunde (sem, no entanto se perder ou se obliterar) com o ambiente, faz-se necessário reconsiderar certas premissas, em geral tidas como auto evidentes, como por exemplo, que o ato de comunicação se dá exclusivamente entre sujeitos. Para incorporar a linguagem aos princípios ambientais que vimos deslindando, precisamos deslocar o nexo comunicativo do espaço intersubjetivo e realocá-lo no nexo sujeito e ambiente. Podemos ver a linguagem servindo a dois propósitos, por um lado, estabelecer a comunicação entre sujeito e meio (estando, neste aspecto, ligada à autotranscendência e aos pontos de contato); por outro, estabelecer a coesão interna do sujeito (ligando a comunicação à autoafirmação e à estrutura). Assim, passamos do nexo intersubjetivo para os nexos intra e extra subjetivos.

Haja vista a necessidade de o sujeito coletivo garantir o influxo de insumos que permite sua existência – e, de forma concomitante, satisfazer o télos que, porventura, tenha coevoluído a partir de suas interações com o ambiente – torna-se útil, ou mesmo necessário, ao sujeito desenvolver mecanismos que permitam coordenar as ações dos sujeitos cognoscentes. As linguagens, especialmente as linguagens verbais, são os instrumentos que melhor propiciam tal função - aqui podemos perceber como diferentes aspectos do sujeito podem se manifestar mesmo entre animais não- humanos – diversos animais utilizam formas não verbais de comunicação para coordenar suas ações; mas, em se tratando de sujeitos humanos, as linguagens mais facilmente identificáveis são as verbais.

Enquanto não nos propomos presentemente a explorar as teorias acerca das forças evolutivas que moldaram as linguagens humanas – tarefa hercúlea que muito escaparia do escopo da presente tese – é possível estabelecer com alguma confiança que a utilização de linguagens verbais (comparativamente) complexas facilitou a passagem de informações entre os sujeitos, sendo de nosso particular interesse, nesse primeiro momento, as informações relativas aos processos que garantiam a subsistência dos sujeitos coletivos. Assim, seja no caso de sociedades caçadoras ou agriculturais, a utilização das linguagens verbais auxiliou (senão permitiu) aos sujeitos coordenarem suas ações, seja traçando estratégias de caça ou construindo barragens em rios ou ainda, no caso de sociedades mais recentes, estabelecendo regras de trânsito.

A relevância da linguagem para coordenar as ações de diversos sujeitos já foi amplamente explorada e dificilmente pode ser negligenciada (HABERMAS, 1985, p. 6, tradução do inglês nossa): “Sinais estão entremeados em contextos de interações de tal forma que eles sempre servem para coordenar as ações de diferentes participantes”. Ou ainda (idem, p. 5): “Em ação comunicativa, além da função de alcançar entendimento, a linguagem cumpre o papel de coordenar as atividades orientadas-para-um-fim de diferentes sujeitos”.

Já o aspecto da linguagem que atua mantendo a coesão interna dos sujeitos não é tão facilmente percebida. Quando sujeitos coletivos desenvolvem uma ‘identidade’ que lhes garanta contornos de autonomia, há uma tendência a desenvolver-se uma linguagem simbólica que opera como um jogo de linguagem10 e propicia a autoafirmação do sujeito coletivo.

10 Nossa inspiração para falar de jogos de linguagem vem de Wittgeinstein. Apesar de autor, seguindo a logicidade de sua filosofia tardia, não definir explicitamente o conceito, ele nos oferece indicações de como o entende (WITTGEINSTEIN, 2009, p.8, tradução nossa): “Nós também podemos pensar na integralidade do processo de usar palavras em (2) como destes jogos pelo meio dos quais crianças aprendem sua linguagem nativa. Chamarei tais jogos de ‘jogos de linguagem e por vezes falarei de uma linguagem primitiva como um jogo de linguagem” ou ainda (idem, p. 56): “Nossos claros e simples jogos de linguagem não são estudos preliminares para um futuro regimento da linguagem – aproximações iniciais, por assim dizer, ignorando fricção e resistência do ar. Em lugar disso, os jogos de linguagem restam como objetos de comparação, os quais, pelas similaridades e dissimilaridades, propõem-se a lançar luzes sobre as características de nossa linguagem”. Ademais, e atinando aos princípios ambientais os quais vimos delineando, propomos interpretar os jogos de linguagem como parte de um

Ao cumprir esta função, há um desequilíbrio no vocabulário da linguagem, de forma que certos termos (ou complexos de termos) possam ter um acumulo de sentidos e carga emotiva, eventualmente culminando em dogmas que – no entender do núcleo duro do sujeito coletivo – deve ser aceito como pré-requisito para a própria participação no sujeito coletivo. Nesse aspecto, a função simbólica da linguagem se contrapõe a sua função coordenativa, uma vez que esta última demanda um maior grau de precisão e clareza. O quão preciso deve ser o vocabulário é também uma reação ao meio; se o télos do sujeito coletivo assim demandar, a linguagem pode ser extremamente exata, como no caso, para citar um exemplo concreto, de operadores de tráfego aéreo, que se utilizam de um código extremamente específico que visa evitar quaisquer ruídos na comunicação.

Já em sua função simbólica, a linguagem pode mesmo se beneficiar de certa imprecisão. Isto porque, já que serve para ampliar a coesão do sujeito, as proposições externadas pela linguagem simbólica associam-se fortemente à própria identidade do sujeito coletivo, tornando-se pernicioso encontrar falhas em tais proposições. Logo, proposições fecundas de possíveis interpretações são preferíveis, pois deixa margem para que estas sempre estejam corretas, o que contribui à autoafirmação do sujeito.

Outro fator a considerarmos é a tendência de termos na linguagem simbólica desenvolverem certo grau de ‘viscosidade’, pelo que queremos dizer que os termos se tornam mais dependentes do contexto nos quais são expressos e tendem a se agrupar em máximas ou dogmas. Tais dogmas, no entanto, não precisam se limitar a proposições, podendo se condensar em imagens (tais como, por exemplo, bandeiras) ou nomes de pessoas (líderes, mártires ou doutos).

Nos casos nos quais ambas as funções sejam efetuadas por um único sistema linguístico (ou por sistemas relativamente similares) podem se manifestar

continuo (ou uma sucessão de jogos inter-relacionados, ligados pelo sujeito que os joga), de forma que a linguagem simbólica possa se tornar mais ou menos densa, conforma as demandas ambientais se transformam.

tensionamentos internos ao sujeito que oponham o valor simbólico à sua utilidade coordenativa.