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PARTE I: CONCEITOS E PARES CONCEITUAIS

5. PROBLEMAS AMBIENTAIS E PROBLEMAS AMBIENTALISTAS

“Como um observador comentou incisivamente, um sociólogo é um sujeito que gasta 100.000 dólares para descobrir o caminho de uma casa de tolerância”.

Berger

Um fato que se perde ao entender-se um campo de conhecimento como uma abstração desligada do pesquisador o constitui – ou pretende vir a constitui-lo – é que não se leva em conta as aspirações que motivaram e motivam tais indivíduos a dedicarem-se à pesquisa acadêmica. E seria ingênuo considerar que tais motivações não se manifestariam no processo de produção de conhecimento. Não se faz necessário recorrer às teorias psicanalíticas para reconhecermos a complexidade das motivações humanas e fugiria ao escopo deste estudo explorar os fatores psicológicos por trás destas decisões; no entanto, faz-se necessário reconhecer que diferentes pesquisadores têm diferentes percepções e entendimentos acerca da função e construção da pesquisa acadêmica.

Para entendermos como um campo constitui-se a partir do sujeito cognoscente, faz-se mister que não desconsideremos tais desconcordâncias, mas, ao contrário, tornemo-las centrais em nossa epistemologia descritiva. Assim, a ideia força deste item é questionar qual o télos da pesquisa. Frisemos que não é nossa intenção – como amiúde ocorre – declarar qual deveria ser este télos, mas sim explicitar algumas possibilidades dentre as que são apresentadas nas práticas acadêmicas, mas que, em geral, não recebem um tratamento atento.

Talvez o ponto mais premente que precisamos delinear seja definir a qual espécie de problemas (o pesquisador entende que) a pesquisa deve dirigir-se. Resta claro haver, pelo menos, dois tipos de problemas aos quais chamaremos de ‘problemas ambientais’ e ‘problemas do campo ambiental’. De ‘problemas ambientais’ chamamos o que amiúde entende-se por situações ou fatos cuja permanência geram ou podem gerar (ou acredita-se que geram ou podem gerar) prejuízo a alguém; trata-se, por exemplo, da contaminação de um rio, da emissão de gases de efeito estufa, da

exclusão de determinado grupo, etc. Já por ‘problemas do campo ambiental’ entendemos os problemas de caráter acadêmico e teórico, muitas vezes sem ‘aplicações práticas’.

Deve-se atentar, no entanto, que apesar de distintos, as duas espécies de problemas estão interligadas: assim, se chamamos de problema ambiental, a emissão de gases que contribuem ao aquecimento da temperatura global; chamaremos de problema do campo ambiental a buscar entender quais os vetores que influenciam, ou buscam restringir, tais emissões. Note-se que, enquanto tais questões são distintas, elas têm ponto de contato, sendo possível utilizar o conhecimento das causas e fatores que influenciam uma dada situação concreta como subsídio para uma ação visando restringir ou incentivar esta situação.

Nossa inspiração para propor esta distinção vem de Berger (1986, p. 46 e 47): Talvez já esteja claro que os problemas que interessarão ao sociólogo não são necessariamente aquilo que outras pessoas possam chamar de “problemas” [...] Geralmente se diz que existe um “problema social” quando alguma coisa na sociedade não funciona como deveria funcionar segundo as interpretações oficiais. Nesse caso as pessoas esperam que o sociólogo estude o “problema”, como definido por elas, e que talvez até apresente uma “solução” que resolva o assunto à sua conveniência. Contrariando esse tipo de expectativa, é importante compreender que um problema sociológico é uma coisa muito diferente de um “problema social” nesse sentido [...] O problema sociológico é sempre a compreensão do que acontece em termos de interação social. Por isso, o problema sociológico consiste menos em determinar porque algumas coisas “saem erradas” do ponto de vista das autoridades do que conhecer como todo o sistema funciona, quais são seus pressupostos e como ele se mantém coeso. O problema sociológico fundamental não é o crime, e sim a lei, não é o divórcio, e sim o casamento, não é a discriminação racial, e sim a estratificação por critérios de raça, não é a revolução, e sim o governo.

Enquanto nos parece que a distinção proposta por Berger oferece um forte ponto de apoio sobre o qual podemos iniciar nossas considerações, há duas considerações às quais Berger não faz referência e que podem representar limites a seu entendimento. O primeiro ponto é relativo à tensão entre o que interessa às ‘outras pessoas’ e aos ‘sociólogos’. De acordo com o trecho citado, Berger indica haver tal tensão, mas não leva em conta que os grupos ‘sociólogos’ e ‘não-sociólogos’ não são

estanques ao longo do tempo. De fato, todos os membros daquele grupo foram, em algum momento, membros deste.

Daí se percebe que, se as ‘interpretações oficiais’ indicadas por Berger forem, em alguma medida, abraçadas pela sociedade, ocorrerá que tais interpretações poderão infiltrar o campo sociológico, internalizando, assim, a tensão que Berger vê (correta ou incorretamente) como externa. Em outras palavras, Berger propõe haver uma tensão entre o campo e o ambiente (sociólogos e não-sociólogos). Haja vista que há uma transferência de sujeitos entre estes grupos (há trocas entre campo e ambiente) novos sujeitos recém-aderidos ao campo trarão contaminações ambientais (referentes nesta situação concreta, a qual deve ser o télos do campo) que alterarão a constituição do campo. Assim, supondo adequada a descrição de Berger para o momento no qual descrevia o campo, eram externos os vetores que pretendiam que o télos da sociologia fosse dar conta dos ‘problemas sociais’, enquanto vetores internos resistiam-lhe e propunham como télos dar conta de problemas sociológicos. Com o passar do tempo, no entanto, conforme novos sujeitos ‘contaminados’ aderem-se ao campo, novos vetores internalizam-se, passando a haver uma disputa de sentido acerca do télos do campo sociológico. Ou seja, pesquisadores do campo trazem ‘de fora’ o entendimento de que o sociólogo pode sim (e talvez deva) dar conta também (ou exclusivamente) de problemas sociais. Este é um exemplo concreto – e bastante evidente – do que chamamos de coevolução entre sujeito e campo.

Note-se que o fato de haver uma disputa de sentido acerca do télos do campo, não significa necessariamente que haja uma disputa acerca da distinção proposta entre problema social e problema sociológico (ou, correlativamente, entre problemas do campo ambiental e os problemas ambientais), mas apenas que há uma tensão acerca de a qual destes deve ou pode o sociólogo (ou pesquisador ligado ao ambiental) dar conta.

Berger (1986, p. 13 e 14), por um lado, entende que apenas os problemas sociológicos podem ser objeto de pesquisa do sociólogo:

Normalmente o sociólogo defenderá muitos valores como cidadão, pessoa, membro de um grupo religioso ou como adepto de alguma corrente de

pensamento. Entretanto, dentro dos limites de suas atividades como sociólogo só existirá um valor fundamental — a da integridade científica. É claro que, mesmo aí, como ser humano, o sociólogo terá de levar em conta suas convicções, emoções e seus preconceitos. Mas faz parte de seu treinamento intelectual tentar compreender e controlar essas coisas, como prevenções a serem eliminadas, na medida do possível, de seu trabalho. É escusado dizer que isso nem sempre é fácil, mas que não é impossível.

Parece-nos que, no Campo Ambiental, a disputa de sentidos (BOURDIEU, 2006) centra-se e inicia-se a partir desta dicotomia entre uma pesquisa voltada para a ação e outra para o entendimento (as consequências epistêmicas e metodológicas desta escolha serão exploradas mais adiante).

Por outro lado, um campo de conhecimento não se constitui nem pode se constituir apenas por disputas de sentido. Há, também, a necessidade de mecanismos de convivência e consenso (mesmo que parcial) para que o campo se mantenha vivo e integro. Se a tensão entre possíveis télea se torna tão forte a ponte de suplantar a resistência dos pontos de contato, o campo tenderá a sua dissolução ou, talvez, a uma cisão.