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4 RETÓRICA, IDENTIDADE E POLÍTICA NAS DIUINAE INSTITUTIONES DE

4.2 A reação de Lactâncio contra o pensamento helenístico e a construção de uma nova

4.2.3 Contra a falsa piedade: Lactâncio e a moralidade helenística

Nos livros anteriores de sua apologia, o retórico refutou os fundamentos do politeísmo e da filosofia, afirmando que a verdadeira religião, aquela que contemplava o conhecimento de Deus, era o cristianismo. Nesse momento, ele esclareceu o que significava ser um converso, partindo da contraposição entre os valores morais expressos pela tradição clássica e a conduta adotada pelos seguidores de Cristo. O intuito era convencer seus leitores de que somente a piedade cristã poderia conduzir a uma vida justa.

Ao contrário do que aconteceu em seu último trabalho, em DI, Lactâncio não mencionou qualquer autoridade imperial em suas acusações, haja vista o momento em que escreveu. Apesar disso, suas críticas tinham em vista as ações de Diocleciano e seus associados no sentido de retomar as medidas vexatórias contra os adeptos do cristianismo.

Ao se convencerem de que os seguidores de Cristo são maus, repetem os atentados de épocas passadas, quando as crenças e costumes dos cristãos eram considerados

296 No original: “Puede suceder que todos hayan errado en parte y hayan acertado en parte. ” 297 Div. Inst. 3.3.8.

298 “[...] cuando Dios quiso descobrir al hombre la verdade, quiso que nosotros supiéramos sólo aquello que interessa al hombre para conseguir la vida; pero no dijo, como secretos que eran, aquellas cosas que responden al profano afán de curiosidade. ”

299 “No se debe aceptar ninguna religión que no vaya acompanhada de saber, ni se debe aprobar ningún saber que no vaya acompanhado de religión. ”

perigosos. Aos que seguem o caminho da verdade lhes repudiam e desferem seu ódio, tratando de persegui-los a fim de eliminá-los. (LACTANTIUS, Div. Inst. 5.9.1)300

Valendo-se dos recursos da retórica, o autor cristão se esforçou para descrever a crueldade dos inimigos da religião. Como de costume, ele recorreu a citações de autores clássicos, como Virgílio: “Por todas as partes, pavor e cruel desolação. Tudo, tudo é morte” (Ene. 2.368-369)301. Em outro momento, parafraseou a descrição da terrível besta do livro de Daniel302: “[...] este enorme animal que, a partir de um só lugar, se assanha por toda a Terra com seus dentes de ferro, e não apenas devora os membros dos homens, mas consome seus próprios ossos, enfurecido sobre suas cinzas, para que não haja sepultura” (LACTANTIUS,

Div. Inst. 5.11.6)303.

A atitude dos perseguidores foi tomada como uma consequência da piedade politeísta, que contrastava com o ideal cristão de amor ao próximo. No mesmo sentido, o retor evocou um exemplo paradigmático de devoção entre os latinos. Eneas, que fundara a primitiva Alba Longa, precursora da polis romana, fora apresentado como um homem virtuoso: “Jamais se viu varão mais íntegro e de maior bondade, cuja perícia na guerra e no manejo das armas superava qualquer outro” (VERGILLIUS, Ene. 1.544-545)304. Não obstante, Lactâncio tomou a própria narrativa virgiliana para apresentar o herói como um indivíduo iniquo: “[...] e atadas as espadas às mãos, os prisioneiros, vítimas destinadas a morte por derramarem seu sangue sobre as chamas da fogueira” (Ene. 11.81-83)305. “Quem mais clemente e piedoso que um homem que imola vítimas humanas aos deuses e alimenta o fogo com sangue como se fosse azeite? ”, questionava ironicamente o retórico (Div. Inst. 5.10.4)306. A verdadeira piedade, afirmava, está naqueles que desconhecem a guerra, que mantêm a paz, que amam a todos como irmãos e que são capazes de reprimir sua ira. Quanto aos deuses, ou melhor, os homens divinizados, afirmava que Júpiter desterrara seu pai, Saturno; este, diante da profecia de que um de seus filhos tomaria seu poder, passara a devorá-los um a um à medida que nasciam; Hercules, por sua vez, fora

300 “A veces, sin embargo, se dan cuenta de que son malos, añoran la situación de épocas passadas y reconocen que sus costumbres y méritos no son buenos: y al que sigue el caminho recto no sólo no le aceptan ni reconocen, sino que incluso le odian ferozmente, le perseguen y tratan de eliminarle. ”

301 “Por todas partes cruel desolación, pavor por todas partes. Todo, todo es hechura de la muerte. ” 302 Dn. 7:7.

303 “[...] esta enorme bestia que, afincada en un solo lugar, se ensaña por todo el orbe com sus dientes de hierro y no sólo destruye los miembros de los hombres, sino elimina los propios huesos y se ensaña con las cenizas, para que no exista ningún sepulcro. ”

304 “Jamás lo hubo más recto ni de mayor bondad, ni más grande en la guerra y el manejo de las armas. ”

305 “[...] atadas a la espada las manos, los cautivos, víctimas destinadas a las sombras por rociar las llamas de la pira con su sangre. ”

306 “¿Qué más clemente, en un hombre piadoso como éste, que imolar víctimas humanas a los muertos y alimentar el fuego con sangre humana, como si fuese aceite? ”

adúltero e estuprador. Segundo o autor cristão, não se poderia esperar que os homens fossem virtuosos a ponto de se tornar modelos perfeitos de conduta307.

O primeiro princípio da moralidade cristã, portanto, seria conhecer e amar a Deus: “Pois não pode ser considerado como homem aquele que desconhece a Deus, que é o doador de sua alma; este é um pecado gravíssimo. Tal ignorância, é a razão pela qual os indivíduos adoram outros deuses, a mais criminosa ação que se possa praticar” (LACTANTIUS, Div. Inst. 6.9.1)308. Em seguida, apresentava o sentimento humanitário dos seguidores de Cristo. Distanciando-se da concepção de abnegação apregoada pelas escolas filosóficas, que a entendiam omo uma virtude dentro de um processo de disciplina e autodesenvolvimento (VEYNE, 1995), os cristãos valorizavam a ação em favor do próximo: “[...] porque quem faz o bem a outro sem esperar nada em troca está fazendo o bem a si mesmo, pois será recompensado por Deus” (LACTANTIUS, Div. Inst. 6.12.2)309. Esse tipo de atitude era estranho à piedade helênica. Mesmo homens virtuosos, como Marco Túlio, aconselhavam no sentido contrário: "Ao tratar com uma pessoa ilustre, convém ser liberal ao se dar e complacente ao reclamar suas dívidas [...] pois renunciar uma parte do que lhe é de direito não somente é generoso, como pode lhe trazer vantagens” (De off. 2.64)310. O cristianismo deslocava a questão da recompensa para o mundo espiritual e transformava em pecado a iniciativa do homem em prol de si mesmo. Ao longo do livro quinto, o retor seguiu contrapondo os valores helenistas à moral cristã. O medo, que, segundo os filósofos, era um vício, ele o apresentava como uma virtude: “Ninguém duvida que é próprio dos covardes ter medo da dor, da carestia, do exílio, do cárcere ou da morte; quem não se horroriza diante dessas coisas é considerado muito valente. Agora, quem teme a Deus não se assusta diante de nenhuma dessas ameaças” (LACTANTIUS, Div.

Inst. 6.17.5-6)311. O temor a Deus, segundo o africano, dispensava quaisquer outras apreensões, e fora graças a ele que, em tempos de perseguição, homens e mulheres se entregaram voluntariamente à morte em nome de suas crenças312.

307 Div. Inst. 5.10.15-17.

308 “Y es que no puede ser considerado como hombre quein desconoce a Dios, que es el padre de su alma: este es un pecado gravíssimo. Esta ignorancia es la que hace que sirva a otros dioses, lo cual es la acción más criminal que se puede cometer. ”

309 “[...] porque quien hace un favor a outro sin esperar recompensa de él se está haciendo un favor a sí mismo, porque recibirá la recompensa de Dios. ”

310 “It will, moreover, benefit a gentleman to be at the same time liberal in giving and not inconsiderate in exacting his dues [...] for it is not only generous occasionally to abate a little of one’s rightful claims, but it is sometimes advantageous. ”

311 “Nadie duda de que es propio de los tímidos y débiles tener miedo del dolor, de la escasez, del destierro, de la cárcel o de la muerte; quien no se horroriza ante estas cosas es considerado como muy valiente. Ahora bien, qeien teme a Dios no teme a ninguna de estas cosas. ”

As paixões, que, da mesma forma, eram vistas como uma fraqueza pelos adeptos da filosofia, podiam ser uma qualidade do cristão, sempre que voltadas às questões celestiais. Aos estoicos, que afirmavam que para alcançar a virtude bastava a vontade, Lactâncio respondia que, para ser investido da imortalidade não bastava ao homem o querer, pois: “muitos, em verdade, querem, mas quando a dor atinge a sua carne, sua vontade esmorece, restando apenas a paixão; para aquele que consegue depreciar todas as coisas que os demais almejam, essa se converte em uma grande virtude [...]” (Div. Inst. 6.17.11)313. O prosélito de Cristo também é aquele se furta aos prazeres dos sentidos. Assim, como fazia algumas vezes ao longo de suas obras314, o retor diferenciava o homem dos demais animais por conta de sua racionalidade, cuja postura ereta lhe permitia contemplar as coisas do alto. O pecado, entretanto, desvirtuara a obra prima da criação, fazendo com que sua natureza, sensível aos prazeres, fosse suscetível aos vícios. A visão, por exemplo, da mesma forma que permitia a contemplação das belezas do céu e da terra, também podia desvirtuar o caráter por meio da apreciação dos espetáculos. Nesse ponto, o retórico fazia uma crítica aos jogos, em particular aqueles que envolviam mortes, como os combates de gladiadores: “Quem considera como um divertimento ver como um homem, ainda que merecidamente condenado, é decapitado mancha sua própria consciência, como se fosse expectador e cúmplice de um homicídio cometido secretamente” (LACTANTIUS, Div.

Inst. 6.20.10)315. Ao ser humano, portanto, convinha fazer bom uso de suas faculdades, pois de nada serviria atentar para os eloquentes discursos dos filósofos e ignorar a mensagem das Escrituras, ou empregar suas mãos para uma boa obra se o fizesse por concupiscência.

Deus concedeu ao homem a virtude para que enfrentasse e derrotasse as paixões, não permitindo que estas o impedissem de viver piedosamente. Ele não quis que sua graça fosse legada a seres incapazes, que cativados pelos vícios estivessem condenados à morte eterna. (LACTANTIUS, Div. Inst. 6.20.5)316

Ainda que a transformação do caráter, segundo a concepção do cristianismo, se desse por meio de um processo de conversão pessoal, não podemos nos esquecer de que a moralidade cristã era proselitista. Como portadores da verdade, os adeptos da religião tinham a obrigação

313 “Muchos, en evecto, quieren, pero cuando el dolor llega a sus entrañas, su voluntad cede, quedando sólo el deseo; si éste consegue que sean despreciadas todas las cosas que los demás apetecen, se convierte en una gran virtude [...]”

314 Div. Inst. 3.8.3-4 e 3.20.11-12; De opf. 8.2; 10.26 e 19bis.10; De ira 7.5; 14.2 e 20.10.

315 “Y es que quien considera como un placer el ver como un hombre, aunque condenado merecidamente, es degolado, mancha su propia conciencia de la misma forma que si fuera espectador y partícipe de un homicídio cometido lejos de la vista de otros. ”

316 “Dios concedió al hombre la virtud para que asaltara y derrotara al placer y para que, si éste se salía de los limites que se le han dado, lo retuviera dentro de lo permitido, con el fin de que no sometiera a su império al hombre embobado y cautivado por sus atractivos y no le condenara a una muerte eterna. ”

de disseminá-la entre seus desconhecedores. Igualmente, não deviam responder às injúrias nem se vingar das más ações praticadas contra eles, uma vez que a justiça que esperavam não era a dos homens, mas a de Deus: “[...] o justo nunca desperdiçará a oportunidade de praticar um ato de misericórdia, não sendo prejudicado quando por isso deixar de obter alguma vantagem, pois conseguirá que essas atitudes sejam consideradas como boas obras” (LACTANTIUS, Div. Inst. 6.18.9)317.