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4 RETÓRICA, IDENTIDADE E POLÍTICA NAS DIUINAE INSTITUTIONES DE

4.2 A reação de Lactâncio contra o pensamento helenístico e a construção de uma nova

4.2.2 Contra a falsa sabedoria: Lactâncio e a filosofia

A filosofia dos gregos desenvolveu-se com base no espírito de racionalização aplicado à investigação das coisas da natureza. Sócrates, por sua vez, utilizou-se da razão para tratar de temas morais e foi seguido por seu proeminente discípulo Platão. Com o passar do tempo, esclarece Casey (1965), em certa medida, a filosofia desviou-se de sua proposta inicial de liberdade e espontaneidade de pensamento para se tornar um cânon rígido de dogmas primariamente designados como um guia de vida moral. Algumas escolas, como o estoicismo e o epicurismo, passaram a se preocupar com temas religiosos, interpretando os mitos como alegorias. Lactâncio se colocaria contra essa tendência280.

No segundo século da era cristã, a teoria platônica era tomada como referência para temas de origem religiosa. Até mesmo autores cristãos, como Orígenes de Alexandria, valeram- se dessas ideias para dar suporte à sua teologia. De acordo com Casey (1965), graças à influência do neoplatonismo, o pensamento filosófico na época de Lactâncio estava permeado de misticismo e dogmatismos. Diante desse quadro, a atitude do retor foi de questionamento. Para ele, a filosofia não era incompatível com a doutrina cristã, pelo contrário, o cristianismo era a consumação de toda a sabedoria humana281. Ele louvava os esforços daqueles que, pelo caminho da racionalidade, teriam buscado responder aos grandes questionamentos existenciais e entendia que a razão pela qual não teriam alcançado a verdade era seu desconhecimento dos preceitos divinos282.

Naquele momento, o objetivo do retórico foi demonstrar a superioridade do cristianismo sobre a filosofia helenística, da mesma forma que fizera em relação ao politeísmo nos dois primeiros livros de sua apologia: “Agora tenho diante de mim uma batalha muito mais dura e importante com os filósofos, cujos conhecimentos e eloquência se põem diante de mim como se fosse um gigante” (LACTANTIUS, Div. Inst. 2.19.2)283. Mesmo demonstrando seu respeito

278 “’Del hombre piadoso, en efecto, no se apodera ni el mavado demonio ni el destino. Y es que Dios protege de todo mal al piedoso. El único y excusivo bien en los hombres es la piedad’. ”

279 No original: “’La piedad es el conocimento de Dios’. ” 280 Div. Inst. 1.1.17.

281 Div. Inst. 7.7.7. 282 Div. Inst. 3.26.1.

283 “Ahora tengo delante una lucha mucho más importante y más difícil con los filósofos, cuyos enormes conocimientos y elocuencia se me ponen en frente como si de una mole se tratase. ”

pelos filósofos, não deixou de refutá-los e em alguns momentos até de satirizá-los284. Segundo ele, a falta mais grave desses homens tinha sido a vaidade em não admitir seus equívocos.

No início do Livro III, o retórico questionou a investigação filosófica, afirmando que esta não passava de um conjunto de conjecturas285. De acordo com a concepção cristã da época, nem todo conhecimento era passível de ser adquirido mediante o exercício da razão: “A ciência não provém de nossa mente, nem é alcançada pelo pensamento, já que a posse intrínseca do conhecimento pertence somente a Deus” (LACTANTIUS, Div. Inst. 3.3.2)286. Além disso, as contradições entre as distintas correntes de pensamento faziam da filosofia uma falsa sabedoria: “Assim, pois, se cada escola é considerada falaciosa segundo o julgamento uma das outras, temos de concluir que todas são falsas. A partir disso, a própria filosofia se consome e elimina a si mesma” (LACTANTIUS, Div. Inst. 3.4.10)287. Nos capítulos seguintes, ele elencou as principais doutrinas filosóficas do mundo greco-romano, como os pitagóricos, os acadêmicos, os estoicos e os epicuristas. Da mesma forma, elegeu alguns teóricos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, de modo a questionar alguns de seus posicionamentos. Como não podemos aqui aprofundar a análise de todos esses casos, tomamos a concepção estoica de morte autoinfligida e a teoria de organização social expressa em A República (Πολιτεία) de Platão para ilustrar o embate de Lactâncio contra a filosofia.

O estoicismo surgiu da influência do pensamento socrático sobre Zenão (336-264 a. C.), tradicionalmente considerado como o fundador da doutrina. A escola pode ser dividida em três fases distintas: a primeira, que vai de sua fundação, em torno do ano 300 a. C., até finais do século II a. C; a segunda, que avança até meados do último século antes de Cristo; e a última, que coincide com a época imperial de Roma (SEDLEY, 2006). É difícil avaliar a atividade estoica no século III, particularmente na segunda metade. Isso se deve ao fato de as fontes da época não mencionarem nenhum filósofo posterior ao século II. Apesar disso, a doutrina continuou exercendo considerável influência entre os setores educados da sociedade, pelo menos até o ressurgimento do platonismo em meados do terceiro século, tornando-se o modelo predominante de pensamento não cristão pelos séculos subsequentes (SPANNEUT, 1957 apud CASEY, 1965 e GILL, 2006).

284 Div. Inst. 3.28.11; 2.5.10; 3.15.8-21; 3.18.5 e 3.14.12. 285 Div. Inst. 3.3.1.

286 “La ciencia no puede nascer de nuestra mente, ni puede ser conquistada mediante la actividad del pensamento, ya que la posesión interna de una ciencia propia pertence, no al hombre, sino a Dios. ”

287 “Así pues, si cada una de las sectas es convicta de estolidez según el juicio de las otras muchas, hay que concluir que todas son vanas y vacias: de esta forma, la propia filosofia se consume y elimina a sí misma. ”

A influência das ideias estoicas sobre o pensamento de Lactâncio se deu, principalmente, por meio de Cícero e pode ser exemplificada pelas noções de divindade, providência, imortalidade da alma e virtude. Todas foram discutidas no terceiro e quarto livros. Entre as críticas feitas à escola, uma se refere à questão do suicídio, ilustrada por meio de uma citação de Lucrécio (1985, p. 74), que descreve o fim da vida de Demócrito (460-370 a. C): “[...] depois que a madura velhice lhe mostrou que se retardavam no espírito os movimentos da memória, de livre vontade foi ao encontro da morte e lhe apresentou a cabeça”. Para o autor cristão, não pode haver nada mais pecaminoso que a morte autoinfligida e compara o filósofo pré-socrático a um homicida e assassino. De acordo com a concepção do cristianismo, os sofrimentos da vida deviam ser suportados com paciência, visto que, da mesma forma que o ser humano não nasce por vontade própria, também não pode decidir a hora de sua morte288. Já no caso do estoicismo, como atesta Marco Túlio em Sobre as Leis, a morte era vista como um bem, uma vez que eliminava os flagelos existenciais.

Regozijemos, afinal a morte ou nos concederá uma existência melhor que a que temos na terra, ou ao menos nos trará uma que não seja pior. Poderemos alcançar uma condição em que a mente esteja livre do corpo e ainda conserve seus poderes, como um deus; ou, de outra forma, se não tivermos nossa consciência, ainda assim estaremos eximidos de todo mal que pode se abater sobre nós. (De leg. frag. 5.1)289

Lactâncio, admitia o discernimento do filósofo republicano sobre a questão da imortalidade da alma; contudo, propunha outro entendimento do assunto: “Conclusão perspicaz, segundo creem os estoicos, como se não pudesse haver nenhuma outra explicação” (Div. Inst. 3.19.3)290. Partindo da proposição cristã de que a vida após a morte estava condicionada à existência temporal, o retórico afirmava que aquele que tirasse a própria vida pecaria contra Deus e, por essa razão, o suicídio não traria nenhum bem, mas levaria a um sofrimento ainda maior.

Assim, se nos perguntam se a morte é um bem ou um mal, respondemos que depende da maneira como se viveu, porque, da mesma forma que a vida é um bem se conduzida virtuosamente ou um mal se desperdiçada em meio aos vícios, assim também é a morte, que deve ser avaliada em função dos atos praticados durante nossa experiência neste mundo. (LACTANTIUS, Div. Inst. 3.19.9)291

288 Vid. Div. Inst. 3.19.

289 “Let us deem ourselves happy that death will grant us either a better existence than our life on Earth, or at least a condition that is no worse. For a life in which the mind is free from the body and yet retains its own powers is god-like; on the other hand, if we have no consciousness, at any rate no evil can befall us. ”

290 “Aguda conclusión, según ellos creen; como si no pudiera haber ninguna outra conclusión. ”

291 “Así, pues, si alguien nos pregunta si la muerte es un bien o un mal, responderemos que su cualidad depende de la forma de vida, ya que, de la misma forma que la vida es un bien si se vive virtuosamente, y un mal si se vive entre crímenes, así también la muerte debe ser avaluada en función de los hechos anteriores de la vida. ”

No tocante ao modelo de sociedade platônico, Lactâncio criticava a proposta do filósofo grego, segundo a qual, em uma comunidade ideal, ninguém seria detentor dos próprios bens, exceto para coisas de primeira necessidade. Platão propunha que não existiriam residências ou construções de qualquer tipo que não fossem de acesso público. Os víveres de que os soldados necessitariam seriam fornecidos pelos demais cidadãos, como pagamento por seus serviços de vigilância e proteção. Isso, respondia o retor cristão, seria impossível, uma vez que os cidadãos não seriam capazes de tamanha abnegação. Quanto à questão do matrimônio, lemos em A

República (Πολιτεία): “Que estas mulheres todas serão comuns a todos esses homens, e

nenhuma coabitará em particular com nenhum deles; e, por sua vez, os filhos serão comuns, e nem os pais saberão que são seus próprios filhos, nem os filhos os pais” (Rep. 457d).

Replicando essas ideias, o norte-africano indagava sobre os conflitos que poderiam ser desencadeados por conta da competição de vários homens por uma só mulher. De forma sarcástica, ele afirmava que tais desentendimentos só poderiam ser evitados se os homens fossem tão pacientes quanto os filósofos e esperassem por sua vez como se estivessem em um bordel292. E o que dizer dessas cidades que seriam governadas por filósofos como se fossem reis? Questionava o mestre cristão, referindo-se à proposta platônica de que os praticantes da filosofia seriam os administradores da Res Publica por conta de seu conhecimento293. Para o retor, esse modelo de governança seria mais iníquo que o dos próprios tiranos, já que feriria o princípio da justiça ao tirar os bens de uns à força para distribuir a outros, além de transformar as mulheres em prostitutas da polis.

Ao mesmo tempo em que questionava o valor da sabedoria humana, o retórico lançava os fundamentos da doutrina cristã. Tendo mostrado os equívocos do politeísmo, ele considerava que a verdadeira religião seria aquela que sustentasse a existência da Divina Providência294. De acordo com Lactâncio, os filósofos tinham falhado em alcançar o ‘sumo bem’, pois o procuraram nas virtudes dos homens quando só poderia ser encontrado no conhecimento de Deus: “[...] o sumo bem é a imortalidade, já que não pertence a nenhum outro ser vivo e nem a carne. Este não pode ser alcançado por ninguém sem a inteligência e a virtude, isto é, sem o conhecimento de Deus e de sua bondade” (LACTANTIUS, Div. Inst. 3.12.18)295. Não obstante, não exclui o esforço dos filósofos em sua tentativa de chegar ao conhecimento das coisas

292 Div. Inst. 3.21.4. 293 De Rep. 473 D. 294 Div. Inst. 2.8.51-52.

295 “[...] el sumo bien es sólo la immortalidad, ya que no pertence a ningún outro ser vivo, ni al corpo, ni puede obtenerla nadie sin la ciencia y la virtude, es decir, sin el conocimiento de Dios y sin la bondad. ”

divinas: “Ocorre que todos se equivocaram em algumas partes mas acertaram em outras” (LACTANTIUS, Div. Inst. 3.3.12)296. Dessa forma, embora ele não rejeitasse a ciência dos homens, colocava-a em seus próprios termos. Apontava a diferença entre o que é passível de ser alcançado pelo intelecto e o que é perscrutável somente a Deus, sendo que qualquer esforço nesse campo resultaria em mera especulação297: “[...] quando Deus se propôs a revelar ao homem a verdade, quis que nós nos acercássemos apenas do que interessa à nossa existência; mantendo em segredo aquelas coisas que correspondem à nossa profana curiosidade” (LACTANTIUS, Div. Inst. 2.8.70)298.

Buscando a conciliação entre o conhecimento mundano e a revelação divina, o retor concluiu que a verdade seria alcançável pela união dos esforços humanos, expressos por meio da filosofia e da religião cristã, que considerava como sumo bem a imortalidade. Nesse sentido, a máxima do pensamento de Lactâncio era: “Não se deve aceitar nenhuma religião que não venha acompanhada de saber, nem se deve aprovar qualquer saber que não venha acompanhado de religião” (Div. Inst. 1.1.25)299.