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2 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS IDEIAS DE CRISE NA ANTIGUIDADE E O

3.2 Os escritos

3.2.3 Escritos controversamente atribuídos a Lactâncio

Além dos textos mencionados por Jerônimo, outros podem ter sido produzidos pelo retor africano. Presume-se que o primeiro deles tivesse o título Contra os Judeus. Os que acreditam nessa hipótese baseiam-se em uma passagem das DI na qual o autor revelou sua intenção de escrever contra os adeptos do judaísmo: “Mas minha polêmica contra os judeus será tema de uma obra diferente em que rechaçarei seus crimes e erros” (LACTANTIUS, Div. Inst. 7.1.26)128. Ademais, McGuckin (1980) considera a possibilidade de o retórico ter redigido mais um livro: ‘Contra os Hereges’. Ele baseia sua argumentação em outro trecho das DI, no qual o autor fez referência a alguns movimentos do cristianismo primitivo como os montanistas e valentinianos129. Muito embora não haja evidências de que essas obras tenham sido ortografadas, as menções que lhes foram feitas indicam que talvez tenham existido.

Outro escrito por vezes atribuído a Lactâncio recebe o título de Aenigmata e seria uma parte perdida de seu Symposium. Segundo Monceaux (1905), trata-se de uma falsa atribuição, já que o título do trabalho do retórico fora equivocadamente tomado em lugar do nome do verdadeiro autor, chamado Symphosius. No passado, costumava-se atribuir ao retor latino os textos De Resurrectione, cuja autoria é de Fortunato, e De Pasione Domini, provavelmente

126“El contacto continuo com la leyendas y el pasado de Roma llevaba a los rétores a uma identificación casi total

com las virtudes y los ideales aristocráticos que se remontavan a laviejas tradiciones republicanas. ”

127“Una vez terminada esta duríssima guerra, Constantino es recebido con enorme satisfacción por el Senado y el

pueblo de Roma [...] el Senado concedió a Constantino, en virtud de los méritos contraídos, el título de primer Augusto [...]”

128“Pero mi polémica contra los judíos será materia de una obra distinta en la que rechazaré sus errores y crímenes.

redigido durante a Renascença. No último caso, é possível que o engano tenha sido fruto de uma compilação descuidada em que o poema devocional fora inserido junto às demais composições do autor africano em suas primeiras edições (McGUCKIN, 1980 e MONCEAUX, 1905).

Por último, mencionamos o poema Sobre a Ave Fênix (De Ave Phoenice), referente à lendária ave que renascia de si mesma. Esse mito foi apresentado por diversos autores, desde Heródoto (484-420 a. C.) até os da Renascença130. De acordo com Anfruns (1984), a fábula da Fênix encerra dois pontos essenciais: em primeiro lugar, o pássaro renasce em virtude de sua morte; em segundo, quando sente que o fim de sua vida se avizinha, a ave se põe a recolher plantas aromáticas de modo a edificar um ninho. A interpretação desses elementos deu origem a diferentes tradições na Antiguidade; uma delas fundava-se em três aspectos fundamentais: a morte da Fênix se dava em um ninho de plantas aromáticas construído por ela mesma; o renascimento do novo animal ocorria a partir dos restos mortais da anterior e a nova Fênix levava o cadáver do qual se originou à cidade egípcia de Heliópolis, depositando-o no altar do deus Sol. Segundo a tradição mais comum, na hora de sua morte, Fênix se queimava junto às plantas aromáticas a partir dos raios solares. Das cinzas, então, originava-se a nova ave. É impossível determinar qual das duas versões é mais antiga, assim como não se pode dizer se ambas tiveram sua gênese nos escritos de um único autor (ANFRUNS, 1984). No caso do poema atribuído a Lactâncio, notamos elementos de ambas as vertentes. Segundo o autor dos versos:

A fênix, em seguida, constrói seu ninho e sua sepultura. Recolhe para si na fertilíssima floresta a seiva e as plantas aromáticas [...] no ninho assim construído, coloca imediatamente seu corpo vacilante e seus cansados membros sobre o leito da vida. Com seu bico, esparge a seiva ao redor de seus membros, dispondo-se, assim, a morrer sobre seus próprios restos [...] o corpo destruído por uma morte regeneradora se aquece e esse mesmo calor anima a chama e faz com que o fogo se acenda com a distante luz do éter. Arde o corpo e uma vez queimado se desfaz em cinzas, com as quais o líquido forma uma espécie de massa que ao fim vem a ser como sêmem (De ave 79-100)131.

Em outra altura do poema, lemos:

130 Sobre o mito da ave Fênix nos escritos de outros autores da Antiguidade, vid. ANFRUNS, 1984, p. 23-30 e 133-184.

131La fénix se construye luego su nido y sepulcro. Para elle recoge en la fertilísima selva los jugos y las plantas

aromáticas [...] en el nido así construido coloca inmediatamente su mudable cuerpo y sus cansados miembros en el lecho de vida. Con su pico rocía luego sus miembros con unos jugos alrededor y por encima, disponiénse así a morrir en sus proprios restos [...] el cuerpo destruido por una muerte generadora se calienta y el mismo calor hace que prenda la llama y que el fuego se encienda con la lejana luz del éter. Arde el cuerpo y una vez quemado se deshace en cenizas, con las que el líquido forma una especie de masa que cuando termina de formarse viene a ser como sêmen. ”

[...] inicia imediatamente um vôo de volta a sua morada; mas, antes, guarda todos os restos de seu corpo, ossos e cinzas com um unguento de bálsamo, mirra e incenso desvanecido. De tudo isso, faz uma esfera com o bico em cumprimento de seu dever religioso e se dirige à cidade do sol levando esta carga em suas garras. Chegada ali, pousa sobre o altar e coloca o fardo no templo sagrado [...] o milagre de sua tão grande aparição também vem ao Egito e a multidão saúda com honras a rara ave (De ave 116- 153)132.

Além de discorrer sobre a morte e o renascimento de Fênix, o compositor dessas estrofes dá detalhes de sua aparência133, sua morada celestial134 e seus hábitos135. No tocante à atribuição do texto a Lactâncio, Anfruns (1984) esclarece que suas fontes mais importantes são três manuscritos dos séculos IX e X., além de aproximadamente outros trinta mais recentes, produzidos entre os séculos XII e XV. Quanto aos manuscritos mais antigos, dois deles indicam o nome do retórico cristão no título. Já o terceiro, ainda que conte com a alcunha do africano, apresenta sinais de mutilação, indicando que o autor foi inserido posteriormente. A tradição dos manuscritos mais recentes não é unanime em conferir o escrito a Lactâncio, contudo, os primeiros editores de suas obras não hesitaram em inserir AP entre seus trabalhos. A partir do século XIX, a autoria do norte-africano passou a ser contestada. Os especialistas começaram a realizar análises internas em seus demais escritos, procurando estabelecer correspondências entre eles e o poema. Em uma avaliação desses estudos, Anfruns (1984) conclui que nenhum deles apresenta uma evidência conclusiva de que o mestre dos séculos III e IV tenha escrito esses versos.