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4 RETÓRICA, IDENTIDADE E POLÍTICA NAS DIUINAE INSTITUTIONES DE

4.1.2 Excursus e silogismos

Embora não seja nosso objetivo estudar minuciosamente a técnica compositiva de Lactâncio, dois recursos utilizados na composição das DI contribuem para identificar seu público leitor. Primeiramente, o uso de excusus, que, em linhas gerais, são hiatos em meio a discussão de um determinado assunto. Alguns desses são tão longos que tornam difícil

222 “Pero quizás alguién considere a Hermes como filósofo – aunque, divinizado, es adorado por los egipcios bajo el nombre de Mercurio –, y no le dé más autoridad de la que se da a Platón y Pitágoras. ”

223 Div. Inst. 2.8.48.

224 Div. Inst. 1.8.3 e 1.11.47. 225 Div. Inst. 1.6.15-16. 226 Div. Inst. 2.16.1.

identificar a sequência de ideias do autor ao longo de um capítulo ou mesmo de um livro, causando a impressão de improvisação (SALOR, 1990).

No Livro II, que trata da adoração politeísta, o retórico indicava que as religiões dos deuses eram falsas por três razões: primeira, esses ídolos eram imagens de homens mortos, sendo incongruente render culto a algo que estivesse morto; segunda, as estátuas seriam inanimadas e careciam de sensibilidade; última, eram os demônios os responsáveis por essas superstições227. Entre os capítulos dois e quatro, o autor recordou as origens da idolatria. Em seguida, nos capítulos cinco e seis, ele abordou a adoração dos homens pelas coisas da natureza, seguindo o esquema apresentado. A partir desse ponto, entretanto, Lactâncio fez um desvio e passou a falar dos milagres atribuídos aos deuses228, oferecendo uma explicação racional para esses prodígios. De repente, interrompendo a discussão, dedicou os seis capítulos seguintes à questão da origem da matéria, da criação do mundo, do dilúvio, até a descendência de Noé229. Finalmente, no capítulo quatorze, retornando ao último ponto de seu planejamento, destacou a criação dos demônios e de sua ação sobre o mundo, concluindo que a religião dos deuses era falsa pela ação desses espíritos230.

Para compreendermos como a técnica retórica empregada por Lactâncio se adequava ao planejamento da obra, precisamos analisar a utilização dos excursus em seu texto. De acordo com Salor (1990), estes podem ser classificados em quatro tipos. O primeiro é o excurso moral, cuja função é levar o leitor a extrair uma lição de determinado assunto. No Livro I, por exemplo, o retor falou das façanhas de Hércules, o homem cuja força era capaz de submeter um leão231. Em seguida, ele inseriu um excurso para falar da força espiritual que devia ter o cristão diante das tentações.

E eis que não deve ser considerado mais forte quem vence a um leão do que quem submete esse monstro interior que é a ira; [...] somente pode ser considerado pessoa íntegra aquela que é equilibrada, moderada e equânime; mas aquele que medita sobre as obras de Deus, considerará desprezível todas as obras que os homens tolos admiram. (LACTANTIUS, Div. Inst. 1.9.5-6)232

227 Div. Inst. 2.17.6-12. 228 Div. Inst. 2.7. 229 Div. Inst. 2.8-13. 230 Div. Inst. 2.17. 231 Div. Inst. 1.9.2.

232 “Y es que no debe ser considerado más fuerte quien vence a un león que quien vence a esa violenta e interior fiera que es la ira; [...] solamente puede ser considerado varón fuerte aquel que es templado, moderado y ecuánime; y que, si alguien medita caules son las obras de Dios, considerará ridículas todas estas obras que los hombres nescios admiran. ”

Na sequência, temos os excursos explicativos, cuja finalidade era esclarecer ou adicionar informações ao texto, tal qual as modernas notas de rodapé. Também no primeiro livro das DI233, ao mencionar os escritos herméticos e sibilinos, o africano ofereceu alguns esclarecimentos ao leitor sobre a origem desses testemunhos: “[...] os escritos sibilinos não são de autoria de uma única Sibila, mas recebem esse nome porque todas as profetizas foram chamadas de sibilas pelos antigos [...]” (LACTANTIUS, Div. Inst. 1.6.7, grifo nosso)234.

Em segundo lugar, temos os excursos expositivos, cuja finalidade é introduzir algo do pensamento do autor ou algum elemento apologético. Tomando mais uma vez a descrição dos feitos de Hércules, o norte-africano apoiou sua narrativa na obra dos poetas. Temendo, contudo, que alguém pudesse questionar a autenticidade desses testemunhos, ele introduziu um excurso onde argumentou em favor de sua validade.

O que pensa que mentem os poetas que nos apresente outros autores nos quais possamos crer, que nos explique quem são esses deuses, como e de onde vieram, qual sua força, seu número, seu poder, o que há neles que seja digno de admiração, de adoração, e qual é, finalmente, o modo correto de cultuá-los. Certamente que não nos apresentará nenhum. (LACTANTIUS, Div. Inst. 1.9.9)235

Como elemento apologético, podemos mencionar o capítulo dez do Livro V, contendo uma discussão sobre a maldade dos pagãos enquanto perseguidores dos cristãos236. Nesse excurso, o autor retomou a discussão feita nos Livros I e II sobre a falsidade da adoração aos deuses para afirmar que qualquer pessoa que tomasse parte nesses cultos, por mais honrada que fosse, não podia ser piedosa: “[...] ao adorar os deuses, cujos ritos ímpios e profanos o verdadeiro Deus odeia, se apartaram da autêntica justiça e piedade” (LACTANTIUS, Div. Inst. 5.10.14)237.

O último tipo de excurso é o não estruturado: o retórico cristão escreveu livremente, sem se preocupar com a ordem do pensamento. Ao recordar que Júpiter se absteve de tomar Tétis, devido ao presságio de que seu filho seria mais poderoso que seu progenitor238, Lactâncio descreveu os presságios da debilidade dos deuses e de suas promessas, assim como dos

233 Div. Inst. 1.6.1-6 e 7-14.

234 “[...] los libros sibilinos no son de una sola Sibila, sino que reciben la denominación única de sibilinos porque todas las profetizas fueron llamadas sibilas por los antigos [...]”

235 “El que piense que éstos mienten, que nos presente otros autores en los que podemos crer, que nos enseñe quiénes son estos dioses, como y de donde han salido, cuál es su fuerza, su número, su poder, qué hay en ellos digno de admiración, qué digno de culto, y cuál es, en fin, su rito certo e verdadero. No nos presentará ninguno. ” 236 Div. Inst. 5.9 e 5.11.

237 “[...] al adorar a los dioses, cuyos impíos y profanos ritos odia al verdadero Dios, se alejan de la auténtica justicia y piedad. ”

juramentos que lhes faziam os homens, em uma sequência não ordenada de ideias, dispostas sem qualquer preocupação com a linearidade.

Assim como os excursus, o silogismo também foi um instrumento retórico largamente utilizado por Lactâncio em suas DI. Em alguns momentos, é possível identificar a presença de todos os seus elementos, a saber: uma premissa maior, uma menor e a conclusão239. A utilização desse recurso apelava ao raciocínio lógico dos leitores, familiarizados com a leitura dos filósofos. Tomemos como exemplo o seguinte silogismo, empregado a fim de confirmar a unicidade de Deus: “Tudo aquilo que se divide participa necessariamente da morte; a morte é algo desconhecido de Deus; Deus, portanto deve ser uno” (LACTANTIUS, Div. Inst. 1.3.9)240. Em sua teoria do silogismo, disposta em Primeiros Analíticos (Αναλυτικων πρότερων), Aristóteles define que a premissa maior, que ele chama de dialética, é um enunciado afirmativo ou negativo de algo a respeito de algo. Segundo ele, a proposição dialética pode ocorrer de três formas: universal, quando algo se dá em todos ou em nenhum; particular, quando se dá ou não em algum (s), mas não em todos; e a indefinida, que pode se dar ou não, sem que se saiba se é algo universal ou particular241.A segunda proposição, a demonstrativa, é a afirmação de um dos lados da contradição apresentada na asserção dialética, embora o filósofo admita que na formação do raciocínio de cada um dos axiomas haja um posicionamento242. Por último, a conclusão, que é o discernimento a que se chega com base na soma das duas premissas.

No silogismo apresentado por Lactâncio, a proposição dialética é que tudo o que é divisível, entenda-se aqui o ser vivo que é originado como parte de outro ser vivo, morre. Já a premissa demonstrativa, atesta que Deus não morre, uma vez que é incorruptível e imortal. Conclui-se, portanto, que, se Deus não morre, deve ser indivisível.

De acordo com Aristóteles, o silogismo é considerado perfeito quando não há a necessidade de mais nada, além do que é proposto nas premissas, para se chegar à conclusão. No caso dos imperfeitos, são necessárias adições para além dos termos estabelecidos para que se chegue a uma conclusão, que nesse caso pode estar ausente.

Além de compor silogismos, Lactâncio se dedicou a refutar os de seus adversários, mediante a negação de algum de seus axiomas. Assim ocorre no Livro II, onde apresentou o seguinte silogismo utilizado pelos estoicos: “É impossível que aquele que gera a partir de si mesmo seres sensíveis não possua sensibilidade; o mundo gerou o homem, o qual está dotado

239 Vid. Div. Inst. 1.3.23; 1.7.13; 1.11.16 e 2.18.1.

240 “Y es que todo lo que se divide participa necessariamente de la muerte; y como la muerte es algo que está muy lejos de Dios, porque éste es incorruptible y eterno, hay que concluir que el poder divino no puede dividirse. ” 241 Ana. prim. 1.1.

de sensibilidade; portanto, o mundo é sensível” (LACTANTIUS, Div. Inst. 2.5.29)243. Em sua análise, o retor concluiu que a premissa dialética era verdadeira, pois: “[...] é sensível aquele que gera algo dotado de sensibilidade; e tem sensibilidade aquele que vem de algo sensível [...]”244. Apesar disso, negou a expositiva: “[...] nem o mundo gera o homem, nem o homem é parte do mundo” (LACTANTIUS, Div. Inst. 2.5.31)245. Nesse caso, a conclusão era falsa.

Outro silogismo empregado pelas escolas de retórica era o sorites o acervum (SALOR, 1990), que nada mais era que um acúmulo de argumentos, com base nos quais, a partir de uma concessão preliminar, era possível chegar a várias conclusões. Um exemplo conhecido desse tipo de silogismo é o desenvolvido por Cícero: “’O que é bom é para ser desejado; o que é para ser desejado é para ser buscado; o que é para ser buscado é louvável’ [...] ‘tudo o que é louvável é honesto; logo tudo que é honesto é bom’” (De fin. 4.50)246. Lactâncio se valeu desse recurso algumas vezes247. A fim de demonstrar que os deuses são mortais, ele empregou o seguinte

storites:

Se os deuses possuem dois sexos, podemos concluir que se unem; se se unem devem ter casas, já que não são como os animais que se relacionam em público; se têm casas, devem ter cidades [...] se têm deuses domésticos, também têm campos. Quem não percebe quais as consequências disso? Se aram e cultivam, o que fazem para se alimentar, logo são mortais. ” (Div. Inst. 1.16.11-13)248

Os excursus e os silogismos foram os recursos retóricos mais utilizados pelo africano, contudo, não foram os únicos. Ele se valeu ainda de dilemas, entimemas, que são silogismos truncados nos quais falta uma das premissas249, interrogações, exclamações e figuras de linguagem. Embora não seja possível abordar todos esses modelos, podemos, a partir dos casos analisados, afirmar que a utilização da retórica é um recurso empregado pelo autor cristão para aproximar os leitores familiarizados com o estilo dos clássicos dos princípios cristãos que são apresentados como uma filosofia.

243 “No puede suceder que carezca de sensibilidad lo que engendra a partir de sí mismo seres sensibles; es así que el mundo engendra al hombre, el cual está dotado de sensibilidad; luego el mundo es sensible. ”

244 “[...] es sensible lo que engenra algo que esta dotado de sensibilidad, y tiene sensibilidad aquello parte de cual tiene sensibilidad [...]”

245 “[...] ni el mundo engendra al hombre, ni el hombre es parte del mundo. ”

246 “’what is good is to be wished; what is to be wished is desirable; what is desirable is praiseworthy’ [...] ‘happiness is a thing to be pround of, whereas it cannot be the case that anyone should have good reason to be pround without Moral Worth. ’”

247 Div. Inst. 1.16.13-14; 2.5.25-28; 2.8.39 e 7.6.1.

248 “Si son dos los sexos de los dioses, hay que concluir que se unen; si se unen, han de tener necesariamente casas: y es que no carecen de virtude y pudor como para hacer esto en promiscuidad y publicamente, que vemos que hacen los mudos animales; si tienen casas, hay que concluir que tienen también ciudades [...] si tiene penates, tendrán también campos. ¿Quién no ve ya caules son las consecuencias que siguen? Aran y cultivan campos, oficio que hacen para alimentarse; luego son mortales. ”

4.2 A reação de Lactâncio contra o pensamento helenístico e a construção de uma nova