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C APÍTULO 3 A TELEVISÃO

3.2. Contra a televisão

A tradição crítica dos media é bastante anterior ao aparecimento da televisão, e, como seria de esperar, quando o pequeno ecrã se foi progressivamente instalando na sociedade moderna, não lhe foram poupados nem reflexões críticas, nem ataques ferozes. Na esteira da crítica das indústrias culturais empreendida pela Escola de Frankfurt, da condenação da “sociedade do espetáculo” realizada por Guy Debord (2006), e ainda mais recentemente da denúncia de uma “sociedade do simulacro” perpetrada por Jean Baudrillard (1981)10, muitos

autores escolheram a TV como o alvo predileto das acusações contra uma sociedade de elevado consumo mediático, empobrecida pelos simplistas clichés televisivos, embrutecida pela absorção contínua de uma fast culture, anestesiada pelos sentimentalismos vazios do fait divers, dominada pela eficaz manipulação ideológica das agendas noticiosas.

Nas suas lições Sobre a televisão (1997), livro que se divide em duas lições de Bourdieu apresentadas no Collège de France, o autor critica a televisão por esta ser um meio de comunicação muito pouco autónomo (Bourdieu, P., 1997). De facto, a televisão está sempre dependente de inúmeros factores, que impedem os seus programadores de criar de modo livre. De entre todos esses factores, a concorrência é sem dúvida o mais forte e talvez o mais limitador. A televisão não vive sem audiências e é nelas que é obrigada a pensar quando cria um novo programa. Por outro lado, os próprios jornalistas que trabalham em televisão também são obrigados a alterar o seu modo de apresentar os conteúdos à luz das leis do pequeno ecrã. Os próprios investigadores, cientistas e até artistas sofreram também claramente a influência da televisão. A este propósito, Bourdieu refere que “o fenómeno mais importante, e que era de previsão bastante difícil, foi a extensão da influência da televisão ao conjunto das actividades de produção cultural, incluindo as de produção científica e artística” (Bourdieu, P., 1997: 35). Com efeito, o modo como se cria, se produz, se age nos mais variados domínios da cultura - da arte, à literatura, às ditas ciências ‘duras’, à filosofia e à política - é alterado em função da omnipresença da televisão e será impossível aferir com

10 Débray (1992) apresenta, a nosso ver, uma distinção clara entre a sociedade do espetáculo e a sociedade do simulacro. O autor enuncia

três idades do olhar, associando a última idade ao aparecimento da televisão a cores e da Internet, e ressalvando que a sua distinção não comporta um caráter cronológico, podendo existir um convívio, uma simultaneidade das três idades num mesmo período de tempo. A videoesfera seria a era da ‘imagem-visual’. Nesta idade, em vez de olharmos para a imagem, estaríamos dentro dela, deixaríamos a sociedade do espetáculo (Debord, 2006), onde havia ainda uma separação entre o palco e a plateia, para entrarmos na sociedade hiper-real (Baudrillard, 1981). Neste contexto, os ecrãs do computador transformar-se-iam na única realidade, não havendo mais fronteira entre ela e o

objectividade o impacto desta alteração. Em primeiro lugar, isto acontece porque o pequeno ecrã parte da reivindicação que o conhecimento esteja acessível a todos, seja qual for o preço a pagar... Ora, o artista, o político e o cientista, assim como as suas criações, ideias ou descobertas, quando são enquadrados por este meio de comunicação de massas, têm de se exprimir de modo a que todos possam compreender, o que muitas vezes resulta numa simplificação reducionista. Em segundo lugar, a questão das audiências também obrigou a televisão e os agentes das diferentes áreas de conhecimento, que pretendiam divulgar o seu trabalho na TV, a estudar pormenorizadamente os padrões de gosto do telespectador e a adaptar-se incondicionalmente a eles, tentando seduzi-lo. Assim, como já alertavam Popper & Condry (1999:9), a televisão, sendo “filha do progresso tecnológico, mas também da liberdade”, acaba por perversamente se tornar num “obstáculo primordial” a um mundo melhor, com uma arte verdadeiramente criativa, uma ciência inovadora e uma política mais comprometida.

Os canais de televisão, públicos e privados, estão dependentes do seu público e também dos lucros da publicidade. O público deverá assim consumir quer os produtos publicitados quer os próprios conteúdos televisivos que são no final o produto que a televisão coloca à venda. Apesar de os conteúdos televisivos serem pensados para o público, a verdade é que é muito difícil que uma televisão consiga agradar à população de modo unânime. No caso da televisão estatal, as decisões relativas à programação tornam-se ainda mais difíceis. Por um lado, coloca-se o imperativo de prestar um serviço público, seguindo orientações deontológicas ligadas à área da comunicação; por outro lado, as audiências são necessárias e indispensáveis à sobrevivência de um canal televisivo. De modo mais ou menos fervoroso, todos nós alguma vez já criticamos os conteúdos televisivos que estão à nossa disposição. O conjunto ao qual podemos chamar “nós” é o termo mais geral para fazer referência ao público. Ora, os conteúdos televisivos são decididos no calor da constante luta por audiências e nessa luta, quem manda é o público. Assim,

“recorre-se ao sistema de dar ao público aquilo que este deseja. Origina-se assim um ciclo vicioso sem saída aparente. (...) Programando conforme as audiências, relegam-se os programas minoritários para os piores horários da programação, pelo que estes acabarão sempre por obter piores níveis de audiências...“ (Ferres, J., 1994: 40).

Este ciclo vicioso tem realmente dificuldade em quebrar-se. A partir do momento em que determinado programa alcança níveis de audiência consideráveis, independentemente da sua qualidade, esse programa transforma-se num sucesso e ocupa lugar de destaque na programação. Por outro lado, se um programa indiscutivelmente informativo e dito “de qualidade” não alcança um grande número de pessoas, passa a ocupar um lugar menor na grelha de programação alcançando consequentemente um público mais reduzido.

A publicidade, enquanto parte integrante da grelha de programação de qualquer canal televisivo, é criada para o público e consumida de modo mais ou menos consciente e com efeitos mais ou menos fortes, dependendo de cada telespectador. No entanto, ao compará-la com outros programas, a publicidade integra uma característica muito particular e determinante nos seus efeitos – o seu caráter repetitivo – “fica mais facilmente gravada na memória do que o desfile de imagens á volta dela” (Joly, M., 1993: 9). Neste sentido, é importante perceber qual o papel que a publicidade assume no “quotidiano televisivo” do cidadão. Os efeitos da publicidade não são raras vezes assumidos como pouco benéficos na educação de crianças, jovens e adultos. Joan Ferrés (1994) fala-nos da televisão como um agente de consumo. De facto, não só através da publicidade como dos mecanismos de “espectacularização” e de “ficcionalização” transversais a toda a programação referidos por Joly (1993:10), a televisão dirige-se a um público consumidor: nas palavras de Ferrés, J., (1994: 37) “incita al consumo”. Além de todos os programas televisivos serem constantemente interrompidos para passar publicidade, a própria televisão é o reflexo de uma sociedade consumista. Desta forma, a televisão provoca sentimentos, emoções e desejos no indivíduo e exerce um poder invisível muito forte no seu dia-a-dia. Mesmo sem o desejarmos, somos diariamente invadidos por publicidade nas mais variadas formas. Na televisão, essa invasão é difusa e por isso determinante. No pequeno ecrã, criam-se objetos de desejo e cada indivíduo lida diariamente com as pequenas frustrações de não poder alcançar determinado produto ou certo estilo de vida que vê retratados na TV constantemente.

Com um poder significativo na nossa cultura, na nossa vida quotidiana, nas nossas experiências e o no mundo interior daí resultante, a televisão torna-se por isso mesmo um potencial perigo em todos estes âmbitos, ameaçando, em última instância, a nossa condição histórica. No que respeita ao ócio/lazer, a televisão é muitas vezes uma resposta fácil e por isso mesmo um obstáculo à imaginação, enfraquecendo recorrentemente a dimensão ativa e o olhar crítico do espectador: como menciona Dulce Maria Magalhães a este propósito, “a

inércia pacífica do ‘não-sei-que-fazer’ não se coaduna com a apreciação crítica que presidiria a uma seleção prévia” (Magalhães, D. M., 1991: 173).