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7. POR UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA DO DISCURSO

7.2. O logos: o raciocínio como representação da realidade

7.2.4. Contradição e incompatibilidade

No intuito de comprovar o discurso híbrido e contraditório utilizado pelo JMN, recorremos, nesse caso, à noção de contradição preconizada por Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005). Segundo esses autores, a contradição faz cair por terra qualquer argumento. Com outras palavras, poderíamos dizer que a asserção, dentro de um mesmo sistema, de uma proposição e de sua negação, ao tornar explícita uma contradição que ele contém, torna o sistema incoerente e, com isso, inutilizável. “Trazer a lume a incoerência de um conjunto de proposições é expô-lo a uma condenação inapelável, é obrigar quem não quer ser qualificado de absurdo a renunciar pelo menos a certos elementos do sistema”. (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 221).

Charaudeau (2009, p. 216) faz referência a um modo de raciocínio denominado de associação

dos contrários. Tal raciocínio faz parte dos procedimentos da lógica argumentativa e visa

muito mais à sedução que à persuasão. O autor cita o seguinte exemplo: “Se você não sabe ganhar dinheiro com as mãos, saiba, pelo menos, gastá-lo com os pés.” (CHARAUDEAU, 2009, p. 217). O que pretendemos mostrar em nossa análise, no entanto, é uma contradição não proposital, ou seja, apresentada inconscientemente pelo enunciador, o que provoca uma desqualificação do seu próprio discurso, justamente porque ela seria fruto das necessidades do jornal de se adaptar a dois auditórios presumidos diferentes, cada qual com suas expectativas sociais muitas vezes diversas na prática: o estado enquanto poder constituído, e a sociedade civil. Desta feita, a dedução, enquanto mecanismo de raciocínio, pode ser feita pelo leitor real ou pelo próprio analista do discurso.

O editorial do JMN de 12 de março de 2008 (ANEXO 08, p. 255) traz, já no seu título, um juízo de valor por demais explícito: “A delinquência do MST”. O texto denuncia a “invasão com um padrão de violência insana” a propriedades de empresas privadas como a Vale do Rio Doce e a Monsanto. No primeiro enunciado do texto, pode-se perceber, através da seleção lexical, o uso do termo “invasão” ao invés de “ocupação”, termo geralmente utilizado pelos integrantes do MST. Tal escolha reflete nitidamente os pontos de vista sobre os quais cada uma das partes constrói sua argumentação. Percebemos, aqui, que o jornal tenta adaptar-se ao preconceito e às crenças da sociedade civil sobre o MST, criando um ethos favorável diante dos consumidores do jornal.

O editorial continua denunciando que o MST não sofre nenhuma repressão por parte da polícia, sendo abastecido for financiamentos governamentais, o que estaria caracterizando uma ação terrorista institucional. Acusa o movimento de estar produzindo atentados contra a democracia e a ordem estabelecida com a conivência do Estado. Por fim, afirma que o movimento se posiciona na contramão da história ao se dizer contrário às pesquisas sobre melhoramento genético e que a produção de alimentos nos assentamentos é ínfima.

Em vez de ser punido e alijado, o MST segue cevado por verbas oficiais dos programas de reforma agrária. Irrigada com dinheiro público, sua cultura de violência e confronto com a legalidade se espalha por assentamentos, nos quais se produz mais uma ideologia carcomida e fracassada do que alimentos e outros produtos agrícolas. Há nos assentamentos pouco produtivos evidentes fiascos na lavra da terra. (ANEXO 08, p. 255)

Mesmo conhecendo a forte ligação política e ideológica que historicamente foi estabelecida entre o MST e o PT, que ocupava então o governo do estado, do qual o jornal é aliado, o enunciador não se esquiva em manifestar o seu ponto de vista pautado nas ideias da extrema direita. Tal circunstância enunciativa aparece como oportunidade de construção de uma suposta imparcialidade no tocante à notícia. Ao referir-se de forma tão ríspida a um “aliado” do PT, o enunciador pretende criar um ethos de isenção, algo extremamente importante no meio midiático. O efeito de sentido pretendido pode resumir-se no velho jargão: “falamos sempre a verdade, doa a quem doer”.

Há que se compreender ainda que o contrato de prestação de serviços entre o então governo do estado e um veículo de imprensa se estabelecia em torno de um fato concreto: uma campanha publicitária, eventos como inauguração de obras, dia do Piauí etc.39 Não havia, obviamente, qualquer menção acerca da postura do jornal em relação ao MST ou qualquer outro movimento social. Assim, o jornal segue com um discurso protecionista em relação ao governo do estado, porém, com uma postura de contraposição a qualquer outra ideia que possa ter ligação com a esquerda. O governo do estado passou a ser tratado, então, como uma

ilha de progresso em meio ao oceano retrógrado da esquerda.

O inusitado, porém, acontece em dois editoriais que circularam no ano de 2009. O primeiro deles, publicado no mês de janeiro, tem como título Fruticultura irrigada (ANEXO 13, p. 260). O segundo aparece no mês de dezembro do mesmo ano, tendo como título Lições de

39 Informação fornecida pelo editor do JMN em entrevista pessoal.

uma festa (ANEXO 18, p. 265). Nas duas ocasiões, o JMN foi contratado para dar cobertura

ao Festival da Uva realizado no município de São João do Piauí, na região sul do estado. O evento, realizado duas vezes no mesmo ano, só teve razão de acontecer graças à grande produção de uva colhida justamente num assentamento do MST, o Marrecas. Observa-se, a partir de então, um redirecionamento do raciocínio e da postura ideológica do jornal, passando a enaltecer o processo de reforma agrária. Muito embora omita a sigla do MST no decorrer do texto, o produto discursivo apresenta-se de forma contraditória e incompatível com os discursos anteriores, adaptando-se, porém, às crenças ideológicas do governo petista. Temos aqui um típico exemplo do argumento contraditório, segundo Perelman. Vejamos o fragmento abaixo:

Guardadas as proporções, possivelmente pode-se estar assistindo ao surgimento de um empreendimento novo no Piauí, incentivado por uma ação simbólica do estado: a produção de uva no semiárido, num assentamento de reforma agrária (Marrecas) em São João do Piauí, onde o Governo do Estado e a prefeitura local patrocinarão o Festival da Uva, algo impensável meia década atrás. (ANEXO 13, p. 260)

A atitude do enunciador em considerar num determinado momento os assentamentos como produtores de ideologia e não de alimentos, além de representarem um fiasco na lavra da terra e, posteriormente, considerá-los como exemplos de produtividade agrícola revelam uma contradição argumentativa explícita, uma vez que as premissas não apresentam um sentido unívoco. Pelo contrário, são alteradas de acordo com as circunstâncias enunciativas, pelas condições de produção do discurso, adquirindo uma roupagem específica de acordo com as conveniências políticas.

Encontramos outro exemplo de contradição discursiva, desta vez, no interior de um mesmo texto. Trata-se do editorial constante no anexo 11, publicado em 7 de setembro de 2008. O referido texto aborda a temática do piso salarial nacional para o professor do ensino básico. Logo no início, o enunciador se posiciona favoravelmente ao mesmo, enaltecendo, sobretudo, o seu alcance social e o seu caráter pedagógico.

Além de ter avançado no rumo de padrões mínimos para o bom exercício do magistério, a lei que fixou em R$ 950 o piso nacional para o salário de professor do ensino básico é pedagógica em mais de um aspecto. (ANEXO 11, p. 258)

Curiosamente, no parágrafo seguinte, ao se referir à reação dos prefeitos que alegam a inconstitucionalidade da referida lei, o enunciador argumenta que “deveriam ter agido desde logo contra o que pode se caracterizar em ofensa ao princípio da autonomia federativa de estados e municípios.” (ANEXO 11, p. 258). Ora, ao enunciar a importância social de uma lei e, em seguida, caracterizá-la como uma ofensa à autonomia de estados e municípios, temos, no mínimo, uma contradição discursiva ou um raciocínio defeituoso.

Mais adiante, o enunciador se mostra novamente indignado com a referida lei, considerando que a mesma desencadeia um conflito de competências ao determinar que um terço da jornada de trabalho do docente seja reservado para atividades extraclasse. Percebe-se que, estranhamente, há um gradativo distanciamento da proposição enunciada no início do texto.

Não há motivo para uma norma federal descer a tal pormenor. Só as redes locais, estaduais e municipais, reúnem condições legais e materiais de decidir quanto tempo seus docentes dedicarão a preparar aulas, corrigir provas, atualizar-se na carreira etc. (ANEXO 11, p. 258)

Por fim, o enunciador chama a atenção para as consequências danosas da referida lei que pode provocar um desequilíbrio nas contas públicas de estados e municípios, uma vez que, ao ser aprovada, criará um efeito cascata no cálculo de benefícios para a categoria de professor. O desfecho revela, portanto, a razão da relutância do enunciador: a lei acarretará responsabilidades financeiras que o estado não pode ou não deseja possuir.

A medida ameaça criar, na prática, uma série de indexações em cascata na carreira – pois é comum que benefícios adicionais sejam calculados a partir do piso – com consequências financeiras danosas para estados e municípios. (ANEXO 11, p. 258)

Um efeito de sentido possível para essa cenografia é o de que o enunciador possui um raciocínio dividido entre a pressão social que exige melhor remuneração para os profissionais da educação e a impossibilidade (real ou aparente) do seu aliado em atender essa demanda financeira. A argumentação, portanto, se divide entre reconhecer a necessidade do avanço dos padrões mínimos de remuneração para o magistério e, ao mesmo tempo, ponderar a respeito da suposta inconstitucionalidade da lei, não pelo seu caráter social e pedagógico, mas pelo possível conflito de competências que ela poderá gerar. Novamente, o discurso do jornal tenta

chegar a um denominador comum para ser bem avaliado pelos dois leitores presumidos: governo e sociedade. Daí advêm as contradições. Elas são indícios, em termos de logos, dessa dupla tentativa de se adaptar a destinatários distintos. Trata-se, portanto, de uma disputa de sentidos, cujos meandros só são passíveis de percepção quando se reconhece o caráter psicossocial da linguagem, tarefa a que se propõe a Semiolinguística enquanto teoria do discurso.

Cabe ressaltar aqui que todos esses fenômenos citados e argumentados pelo logos estão longe de abarcar toda a complexidade e abrangência dessa prova retórica, razão pela qual não temos a pretensão de exauri-los nem elucida-los em sua plenitude, visto que os aspectos relacionados ao logos dizem respeito à estrutura linguística em sua completude. Procuramos apenas chamar a atenção para os aspectos lógico-verbais capazes de desvelar as relações estabelecidas entre o JMN, o governo do estado do Piauí e a sociedade civil. À medida que abordarmos, na sequência, o ethos e o pathos, outros aspectos do logos certamente virão à tona.