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2. ARGUMENTAÇÃO E DISCURSO: UM AMÁLGAMA

2.2. Aristóteles e suas provas retóricas

2.2.1. Logos: a fusão entre a palavra e a razão

Tendo em vista que o objetivo principal do nosso trabalho é o de analisar as estratégias argumentativas constantes nos editoriais do JMN, colocamos em evidência a noção de logos, entendendo que a mesma constitui-se na espinha dorsal de nossa pesquisa. Assim sendo, passamos a apresentar os fundamentos teóricos nos quais se assenta essa noção.

O logos é a prova de persuasão através da qual o orador demonstra ou tenta demonstrar a verdade pelo discurso, ou seja, usa a razão para fundar sua proposição. Dessa maneira, impõe suas conclusões racionalmente, lançando mão de premissas que poderão ser admitidas como verdadeiras pelo auditório; constrói raciocínios lógicos ou inferências, e os expressa no discurso: “[...] persuadimos, enfim, pelo discurso, quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que parece persuasivo em cada caso particular.” (ARISTÓTELES, 1998, p. 50)

Considerando-se, portanto, o logos como integrante de uma dimensão técnica, podemos afirmar que o mesmo se refere ao domínio da palavra, aos conteúdos transmitidos, às figuras de estilo, aos recursos oratórios, à argumentação propriamente dita do discurso:

as provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no

caráter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio

discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar (ARISTÓTELES, 1998, p.

96, grifo nosso).

Nessa mesma linha de raciocínio, o logos constitui uma prova persuasiva que se concretiza através da demonstração real ou aparente tal como, por meio da indução (exemplo), ou do silogismo (entimema). O orador (sujeito falante) racionaliza sua tese, apoiando-se em preceitos de ordem técnica, tendo em vista fazer com que o auditório (sujeito interpretante) compreenda sua opinião e as justificativas nas quais ela se assenta. No entanto, não se trata apenas do conteúdo dos argumentos, mas também da forma como eles se relacionam, cujo resultado pode produzir uma conclusão plausível.

O raciocínio pelo exemplo é caracterizado através da demonstração de que algo é assim por conta da existência de muitos casos semelhantes. Já o entimema consiste na demonstração de certas premissas que podem levar a uma proposição nova e diferente considerando o fato de que elas podem ser sempre ou quase sempre verdadeiras. Aristóteles salienta que os dois tipos de argumentos são importantes e cada orador (sujeito falante) usa, com mais maestria, um ou outro.

Menezes (2004, p. 110) segue a mesma direção de Aristóteles ao caracterizar o conceito de

logos como razão demonstrativa retórica, uma vez que, nele, os raciocínios usados pelo

orador são colocados em ação para convencer o outro:

Esta prova realiza-se pelo que chamamos anteriormente de razão demonstrativa retórica, ou seja, o entimema e o exemplo, num quadro próprio de racionalidade coordenado pelo que é verossímil. (...) A virtude, neste caso, relaciona-se à capacidade para a deliberação adequada sobre os assuntos relativos à felicidade.

Conforme salienta Reboul (1998, p. 5), Górgias tinha uma visão peculiar sobre o logos, de certa forma até um pouco utópica, uma vez que acreditava em determinado poder encantatório da palavra. Já o filósofo romano Cícero (1956), por sua vez, entendia o logos como a dimensão da palavra, da eloquência, da arte de convencer pela oratória. Assim, enfatizava o

ethos retórico. A relação entre orador (sujeito falante) e auditório (sujeito interpretante) devia

envolver eloquência e capacidade de interpretar os desejos dos auditórios (sujeitos interpretantes), mas devia também subordinar-se a valores éticos, a deveres morais, segundo o filósofo.

As várias concepções acerca da palavra e dos vários modos de raciocínio a ela relacionados provocaram o surgimento de uma Retórica estreitamente ligada ao uso e abuso da persuasão, vista, ao mesmo tempo, como arte e necessidade humana. Era comum o uso exagerado das figuras de estilo e do discurso vazio. Isso se prolongou até a Idade Média, o que desacreditou fortemente a Retórica e os retóricos, levando a um movimento de rejeição, embora Aristóteles (1998) tenha mostrado não só a importância do logos, mas também do ethos e do pathos no ato argumentativo.

No decorrer do século XX, no entanto, pesquisadores como Toulmin (1958), Habermas (2003) e Perelman (2004) retomaram os estudos retóricos, associaram-nos à argumentação e lhes conferiram um caráter ético e natural, sem os rebuscamentos e o vazio sofístico que lhes eram característicos. Esses autores se fundamentaram em um “modelo” de argumentação judicial que se contrapõe ao modelo matemático e lógico e às limitações e incapacidade deste em refletir a complexidade do real humano com os seus valores e liberdades. Perelman, em seus estudos sobre a Retórica, salientou que o logos é uma categoria importante à argumentação, mas essa não se resume àquele:

[...] somente as palavras não podem garantir uma compreensão, sem falhas, da mensagem, é preciso procurar fora da palavra, na frase, no contexto, verbal ou não, naquilo que se sabe do orador e do seu auditório, suplementos da informação, permitindo reduzir o mal-entendido, compreender a mensagem de uma maneira adequada à vontade daquele que a emite (PERELMAN, 2004, p. 245)

De acordo com a compreensão de Perelman (2004), se o processo argumentativo se dá entre dois sujeitos (orador e auditório), ou seja, de forma restrita, o auditório (sujeito interpretante) configura-se como ad hominem, o qual é estruturado em um discurso persuasivo, pautado no apelo às paixões e à emoção do auditório. No entanto, é preciso ressaltar que, para Perelman, o pathos é prejudicial a uma boa argumentação.

Com base em todas essas considerações teóricas, compreendemos o logos, neste trabalho, como uma categoria imbuída de dupla carga semântica. Por um lado, é palavra, discurso, e sua dimensão argumentativa está ligada à significação inerente à linguagem, com todos seus atributos: léxico, sintaxe, fonética, marcadores como ritmo, entonação, pontuação etc. A orientação argumentativa do discurso tem base, então, nas seleções linguísticas realizadas para a elaboração do mesmo. Por outro lado, é raciocínio, entendimento (razão), e direciona a plateia para as ferramentas de demonstração da verdade aparente por meio de uma sucessão – lógica – de raciocínio. De tal forma que essa dupla vertente da categoria logos faz com que a

palavra nos reenvie ao conteúdo interno, morfossintático do discurso propriamente dito;

enquanto o termo raciocínio remete às relações de causa e consequência, antítese, oposição, deduções, induções, relações de contiguidade e tudo que possa ser associado a operações mentais.

Nos estudos sobre argumentação, o logos já foi bastante privilegiado por análises estritamente lógicas, de conteúdo proposicional, voltadas para a estrutura linguística, sem dar conta da conjuntura psicossociocultural. Para efeito de apreensão do logos, utilizaremos como ferramenta de análise o modo de organização discursivo argumentativo de acordo com Charaudeau (2009) tendo em vista que o mesmo permite apreender a razão demonstrativa retórica do discurso por tratar dos modos de raciocínio e encadeamento. Em nossa análise, consideraremos fenômenos como a descrição narrativa, a reversibilidade de sentidos, a refutação por antecipação e a contradição aparente. Passemos, então, à outra prova retórica igualmente importante para os nossos estudos: o ethos.