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O Contramestre Farinha, no momento da entrevista tinha 40 anos de idade (12 de outubro de 1976), sendo 27 anos dedicados à capoeiragem. Ele representa alguém que pautou por uma „formação livre‟ na capoeiragem, ou seja, buscou conhecimento com a diversidade (diferentes Mestres, grupos, eventos e rodas), treinou sozinho (e ainda o faz) e escolheu ele mesmo um Mestre para si, um grupo para fazer parte. Pode-se dizer que ele foi, efetivamente, sujeito da própria história. O mais interessante é o discurso dialético da busca, da liberdade, e da autonomia em contraposição à necessidade do outro (de fixação, de „fincar raízes‟), quer dizer, o „espírito aventureiro‟ foi um meio para se chegar ao „porto seguro‟: academia do Mestre Mão Branca – onde também morou no alojamento anexo ao espaço do grupo. De acordo com o seu depoimento: [...] eu estava procurando lugar para mim entrar. Aí você começa a viajar, você vai viajando atrás de roda, é... procurando Mestre [...].

Ao longo do tempo ele se consolidou dentro do grupo e tem respaldo do seu Mestre. Para ele, a autoconfiança, a necessidade de ter um Mestre e fazer parte de um grupo são fundamentais na constituição identitária de si mesmo.

A narrativa com o Contramestre Farinha gerou um discurso cuja predominância foi o da busca permanente pelo autoconhecimento, de sair „das zonas de conforto‟ para conhecer, ganhar experiência e, com isso, adquirir conhecimento para escolher e definir. Por outro lado, essa „liberdade‟ gerou conflitos, tais como: refletir se está no caminho certo, se as

escolhas são adequadas e quando devemos nos fixar num determinado grupo. O discurso imprime a importância da aquisição de experiências, mas também leva à reflexão de que não basta acumular conhecimento, e sim, como saber utilizá-lo e para qual finalidade. Daí a necessidade de um Mestre como orientador dos saberes:

[...] seguir um Mestre. Eu acho que dentro da Capoeira isso faz muita falta, isso precisa muito. [...] Você seguir uma ideologia é... um sistema, você ter uma linha de pensamento, uma linha de raciocínio, alguma coisa que você acha que tem a ver com você, para você chegar a algum lugar, senão você vai acabar se perdendo no meio do caminho.

5.2.1 Diálogos estabelecidos com os indicadores levantados pelo Contramestre Farinha

Mais uma vez, a figura do Mestre foi citada como um elemento organizador de referência para a configuração identitária de um capoeirista. Ou seja, não é possível ser capoeira sem Mestre. O lugar da figura do Mestre representa aquele que aconselha, orienta e indica caminhos. Essa relação afetiva e também profissional se espelha na experiência do mais vivido, daquele que trilhou os caminhos que quero seguir. Um gesto simbólico, como um conselho, uma orientação e uma conversa ou um olhar, uma postura e até mesmo uma estratégia corporal são definitivos da figura do Mestre na constituição identitária de seus discípulos.

Como dito anteriormente, a confiança e a oportunidade constituem o princípio básico desse processo que vai se constituindo no decorrer da formação do ser capoeirista. A ideia do capoeirista ter de ser um caminhador, quer dizer, ter que viajar, „rodar‟ para conhecer pessoas novas e, assim, treinar e vadiar com capoeiristas de diferentes estilos e com distintas percepções da Capoeira, são movimentos que fazem parte do mosaico constitutivo da Capoeira. O conceito de humildade, tão difundido entre os capoeiristas, se pauta pelo princípio de que quanto mais se sabe sobre um assunto mais se tem a necessidade de buscar, ou ainda, conforme a sabedoria popular da velha guarda da capoeiragem belo-horizontina, “quando o capoeirista descobre que não sabe nada, é que ele começa a aprender”. Portanto, a sabedoria capoeirística se constrói com o tempo de prática e convivência com a capoeiragem, articulando seus fundamentos e preceitos, conforme a ancestralidade.

Essa história – de cada capoeira – não é construída sozinha, mas também pela trajetória de inúmeros outros capoeiristas que tocam (corporalmente e psiquicamente), e que o capoeira define como seus referenciais, de forma consciente e/ou inconsciente. O importante da história é aquilo que de proveito se tira das experiências passadas (nossa e dos outros) para

contribuir nas decisões do presente e na construção do futuro. Essa é uma postura ativa e reflexiva do sujeito em relação à construção dialética da sua própria trajetória (LEONTIEV, 1978; REY, 2003, 2005). Há uma relação dialógica entre dois processos, na qual Mestres e discípulos se constituem mutuamente, de um modo complementar e antagônico. Outra ideia interessante (e real) é a de que se aprende muito quando se ensina. É a concepção de educação enquanto uma relação social heterárquica e complexa (MORIN, 2005, 2014), uma via de mão dupla entre Mestres e discípulos.

A roda de Capoeira como um mundo paralelo que, apesar de ter conflitos e tensões, é onde cada um pode se encontrar (à sua maneira, com suas limitações e potenciais, sem a obrigatoriedade de agradar ao outro para ser aceito). Obviamente, o principal aprendizado na roda ocorre, também como indica Zonzon (2007), na interação com os outros: com quem está jogando; quem está tocando/conduzindo; quem está cantando; quem está presente.

E nada disso é visível, quer dizer, mais uma vez é a pedagogia do segredo de uma manifestação cultural que educa sob um modelo pedagógico afrobrasileiro. A musicalidade da bateria presente nas rodas, integra esse mosaico formativo que permite ao sujeito emanar boa energia e, com isso, doar o melhor de si; muitas vezes até sem consciência do que fez. Uma conexão invisível entre o ancestral, o passado e o presente; entre os antepassados e o sujeito; entre o real e o imaginário. A magia, o mistério, a mandinga, os rituais, os segredos – tudo aquilo que é invisível a „olho nu‟ (para um observador leigo ou um iniciante) faz todo sentido, um sentido subjetivo, para o capoeirista (REY, 2003). Todo esse processo não ocorre sem a coletividade, que se fortalece a cada presentificação de sua reedição ancestral (SOUZA, 2016).