• Nenhum resultado encontrado

Para finalizar este capítulo V, levantei as principais ideias analisadas em cada um dos três tópicos, configurando-as em algumas palavras-chave e propus uma reflexão sobre o Mestre de Capoeira, baseada em relações complexas e sistêmicas entre tais constructos.

Este capítulo veio reforçar, o que vem sendo enfatizado ao longo de todo o texto dessa tese, o lugar relevante do Mestre na formação identitária dos praticantes de Capoeira do seu grupo e, até mesmo, de outros capoeiristas que compartilharam da sua convivência e das suas histórias, contadas diretamente ou indiretamente, no processo de reinvenção de tradições, como também na preservação e perpetuação dos fundamentos da capoeiragem (CAMPOS,

2006; HOWBSBAWN, 1984; MATURANA, 2014; MWEWA, 2011). Segundo os relatos aqui interpretados, um bom Mestre deve ser aquele sujeito que inspira confiança e certa coerência nas suas proposições, bem como boas intenções, tornando-se uma referência positiva para outras pessoas. Sua trajetória necessita ser suficiente para semear saberes que o qualificam como um Mestre. A complexidade de elementos que participam desse processo perpassa por atribuições de um guardião de uma ancestralidade que, além de transmitir saberes, envolve relações comunitárias, amizades, negociações, autoridade e o lugar de educador.

Essas responsabilidades, associadas a uma capacidade de liderança de um grupo (às vezes internacionalmente distribuído), ocorrem no convívio prático diário: nas conversas e aconselhamentos; na postura frente às dificuldades, aos desafios e aos objetivos traçados; e no gestual corporal, que, literalmente, „diz‟ muito sobre sua postura – linguagem não verbal, característica típica das manifestações culturais afrobrasileiras (ABIB, 2006a; SODRÉ, 2005; BERGO, 2011; ZONZON, 2007, 2014). Nos três casos, essa „didática‟ da pedagogia do segredo funciona se as relações pessoais dentro de um grupo estiverem permeadas pelos valores anteriormente citados.

A partir dos contextos que acabamos de retomar, fica mais fácil compreender como a história de cada capoeirista se constitui – nas relações com seu Mestre e o grupo. E nas relações, tensas e conflitivas, entre tantas histórias individuais que participam da constituição da história de um grupo de Capoeira – interessante observar a relação sujeito e grupo agindo como uma unidade complexa (MORIN, 1980): características distintas, porém interdependentes e não dicotômicas que podem fortalecer o grupo e seus sujeitos, por meio de mútua ajuda. Com isso, a história da capoeiragem vem sendo escrita ao longo de séculos e entendendo a história como um processo em construção, dinâmico e complexo. Essa história ancestral da Capoeira também influencia diretamente os valores e crenças de cada grupo, de cada capoeira, na constituição individual e coletiva das identidades. Nesse ciclo, o Mestre adquire uma função fundamental, a de mediar as relações coletivas – responsáveis pelos ciclos de inconformação-conformação-formação (MWEWA, 2011) e de conservação e transformação da história (MATURANA, 2014).

A experiência reflexiva „do vivido‟ (ZONZON, 2007) permite, por exemplo, a um Mestre de Capoeira adquirir uma sabedoria de como lidar com algumas situações dentro do seu grupo ou em coletivos mais amplos – a isso, podemos denominar de visão: do presente, do futuro, do passado, da dinâmica social da Capoeira, e do seu lugar na capoeiragem

(ALMEIDA; TAVARES; SOARES, 2012). E com isso, estabelecer as melhores estratégias pensando na tensão entre conformação e inconformação (MWEWA, 2011) ou entre preservação e transformação (MATURANA, 2014) – configurações dialéticas necessárias ao desenvolvimento adaptativo de qualquer fenômeno complexo, como os culturais, a exemplo da Capoeira.

Retomando, a questão do sentido prático e vivencial explorados na Capoeira representa um marcador importante do diferencial pedagógico de uma manifestação cultural de matriz africana, o qual se distingue do modelo logocêntrico de origem europeia e colonial (BHABHA, 1998). Esse aspecto desenvolve uma característica ontológica do ser humano o qual se constitui por laços sociais – a dimensão histórica e cultural o situa como sujeito em conjunto com outros sujeitos (VIGOTSKI; LURIA, 1996). É somente pertencendo a um grupo de capoeiragem que um capoeira pode percorrer o caminho da maestria. Para Vigotski (1993, 1996) e Rey (2003, 2005), esse pertencimento vai além do „fazer parte de‟, tornando um „ser parte de‟: minha história contribui para a história do grupo que contribui para a minha história.

Neste momento, cabe fazer um contraponto: a maestria representa um processo, uma construção contínua, não linear e conflitiva e que só ocorre pelas interações sociais que se dão no interior dos grupos de Capoeira (ZONZON, 2007). Com a prática (treinos, rodas e eventos), se adquire a experiência e a maturidade necessárias para se consagrar na maestria. Só assim, a Capoeira pode ultrapassar as barreiras da escravidão, do Império, da República, da ditadura, do preconceito, da perseguição, das inúmeras tentativas de silenciamento e extinção e, nos dias de hoje, ainda vislumbrar um horizonte promissor. Reconhecer a figura de um Mestre, dentro da cosmologia afrobrasileira, se distingue da relação imposta por um senhor patriarcal. Essa mudança de paradigma estabelece a configuração de um lugar diferenciado para os praticantes da capoeiragem, embora o sistema hegemônico sempre tente impingir seus valores e visão de mundo.

Ainda há o último constructo, a confiança. Essa possibilidade humana de fiar junto (con-fiar) um projeto de vida, e porque não, uma comunidade, que se configura pela postura do Mestre de Capoeira – o qual está sempre conectado aos princípios ancestrais – representa o cerne da existência e permanência do grupo, mesmo que algum dia ele se desfaça e outros grupos se constituam.

Como consideração final deste item, proponho uma analogia, baseada na premissa de Abib (2006a) sobre a ideia de um pertencimento permeado pela práxis cotidiana. A história

da Capoeira é um registro de uma história oral, no qual cada capoeirista se torna personagem e autor, já que escreve parte dessa história com sua própria história. O Mestre de Capoeira, também personagem e autor, assume mais uma função, a de narrador – ou griô: guardião das memórias e disseminador das tradições (para as culturas africanas e afrobrasileiras de tradição oral). Assim, as futuras gerações de novos capoeiristas tem a possibilidade de acesso a essa „literatura escrita com o corpo‟ („escrita por corpos em movimentos‟), passando a fazer parte dela – como personagem e autor. Mesmo que, nos últimos tempos, se produza registros escritos em formato acadêmico, tais escritos nunca traduzirão a expressão manifesta na bateria da roda, no Axé, na mandinga, na malemolência, nas cantigas, na corporalidade e na oralidade dos seus ancestrais.

7 O APRENDER FAZENDO

Jogar Capoeira é escrever a história com o corpo (autor desconhecido).

Este capítulo se refere às interpretações e reflexões desenvolvidas a partir de uma das categorias produzidas por este estudo, que representou um núcleo de análise relevante para a compreensão dos processos constitutivos da Capoeira: o aprender fazendo na capoeiragem. As aprendizagens processadas nos diferentes contextos, como nas rodas de Capoeira e através da musicalidade, serão tópicos deste capítulo por serem indicadores que participam da configuração dessa categoria. De acordo com Souza (2016, p.100), na Capoeira “[...] aprende-se pelo contato, pela experiência direta e não apenas pela via abstrato- conceitual, o saber iniciático é introjetado pelos músculos do corpo”.

A intenção neste último capítulo foi compreender como se dão as experiências vividas pelos sujeitos nas interações compartilhadas na capoeiragem, durante sua formação como capoeirista, e discutir a complexidade do aprender fazendo, ou seja, de um modo afrobrasileiro de aprendizado acerca da e para a vida (CAPOEIRA, 1996; SOUZA, 2016; ZONZON, 2014). De um modo articulado, trago temas já discutidos nesta tese, tais como o Mestre, a historicidade, a oralidade, o misticismo e a hierarquia, os quais são reintegrados para abranger este viés educacional da nossa matriz ancestral africana; sem perder de vista os sujeitos atores desta tese.