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Conversas, postura e gestual: mediações de uma permanente alternância

Quando se discute acerca dos processos de aprendizagem, constata-se que vários aspectos participam de forma concomitante na produção de novos saberes e da demarcação de identidades e subjetividades que estão envoltas na sua configuração pedagógica. A importância das diferenciadas formas de linguagem, incluindo os gestos, na interseção com o pensamento, articulados com níveis emocionais e simbólicos, dentro de um contexto histórico-cultural, representou uma preocupação permanente de Vigotski (1987, 1993, 1996), nos seus estudos acerca da formação social do sujeito. Essa condição de aprendizagem, pode ser observada nas relações estabelecidas entre os capoeiristas pesquisados, bem como nos seus depoimentos, principalmente considerando a matriz africana dessa forma de ensinar tão demarcada pela utilização da corpo-oralidade (a oralidade articulada ao corpo e vice-versa).

Daí ele olhou pra mim com um olho assim... ele tem um olho fixado e falou pra mim „aqui, você decide meu filho, se você quiser entrar com ele também tá em casa, tá tudo certo; você que sabe‟. Ele só falou isso e saiu andando aí eu falei „pô, esse aí que tem que ser o meu Mestre mesmo porque ele é bem igualzinho eu ou é oito ou oitenta‟. Se você quer, quer, se não quer não quer (Contramestre Farinha).

[...] eu fiquei sete anos fora da academia do Mão [...] E um dia eu chego e está o Mão Branca sentado na minha porta. [...] E eu tava fazendo dez anos de Mestre né, isso foi em 2005. [...] Aí ele falou assim „não, porque você... é, vou fazer a festa agora. O Antônio e o Railson que formaram junto com você vão ganhar, eu quero que você vá‟. [...] E o Mão me deu o cordel e eu voltei no mesmo dia a conviver com todo mundo e tal (Mestre Bocão).

Cada um age de uma forma e você tem que absorver aquilo ali e aprender com eles também que estão na caminhada, na trajetória da Capoeira a muitos anos (Professor Baleia).

Para Bakhtin (1992), enquanto formas de linguagem, tais gestos e expressões devem trazer em si (em seus significados) um conteúdo ideológico e vivencial e, com isso, uma postura ou uma expressão corporal do Mestre – como nos exemplos citados acima – os quais passaram a fazer sentido para cada um deles. Desse modo, o aprendizado, nessa relação Mestre e discípulo, necessita ser contextualizado dentro de uma cosmologia que se distingue da tradicional matriz eurocêntrica fundadora da cultura escolar que conhecemos com os colonizadores (SODRÉ, 2012). Sendo assim, a perspectiva histórico-cultural contribuiu para que eu ficasse atento a essa contextualização dos sujeitos que estavam envolvidos numa prática cultural distinta do padrão hegemônico (VIGOTSKI, 1993, 1996, 2000). Por outro lado, me provocou a tentar compreender suas significações e sentidos através da episteme da Capoeira (MIGNOLO, 2008).

É evidente que a partir de um determinado momento na vida, os Mestres adquirem esta consciência (da sua liderança) e passam a se policiar em relação à postura e gestual. Esse momento tem a ver com a questão da maturidade, desenvolvida no tópico anterior e que nos remete a uma mudança de posicionamento e de modo de encarar a vida mesmo:

[...] ah se eu não concordo eu falo e tal, mas na hora eu acabo fazendo por conta de um coletivo realmente porque existe um objetivo que eu entendo que com esse objetivo a gente abre mão. E no pesar da balança vai ser positivo para nós, nós vamos ganhar por conta disso (Mestre Antônio Dias).

Na Capoeira, assim como em outros coletivos que são suportados por uma lógica afrobrasileira, a exemplo do samba, da Umbanda e do Congado (ABIB, 2006a; BERGO, 2011; FERREIRA; MAHFOUD; SILVA, 2011), a postura não é algo abstrato e teórico (uma regra social); ela é viva, no sentido de ser experienciada na prática – a postura passa por „ser e não ter‟; „para convencer, tem de ser‟ (BERGO, 2011). Um aluno não vai seguir um Mestre porque ele lhe diz para fazer algo ou seguir por um caminho; ele vai confiar no Mestre e trazê-lo em sua vida como referência porque ele faz aquilo que diz e segue pelos caminhos que orienta! Na pedagogia do ensinar fazendo (SOUZA; NETO; SILVA, 2011):

Ele sempre tem aquela perseverança, ele parece que sabe o além daquilo, ele sabe a parte que eu não passei, ele sabe... ele é, acaba me dando um suporte muito grande com isso (Contramestre Farinha).

[...] fala no Antônio Dias, ele pensa o que? [...] na seriedade, na credibilidade. O que faz procura ser bem feito, procura ser honesto (Mestre Antônio Dias).

[...] viajando com o Mão para batizado, pra dormir em rodoviária, dormir no chão (Mestre Bocão).

[...] é igual o Mestre sempre cobra né, a postura sempre tem que prevalecer. Independentemente de onde você estiver, você... não é uma graduação que vai te tornar Professor ou uma graduação que vai fazer você ser Mestre, é a sua postura. De como você se posiciona na roda, de como que você age e suas atitudes ali em volta da roda (Professor Baleia).

Até aqui, possibilitamos uma maior visibilidade do corpo enquanto linguagem, inclusive para a demonstração de posturas e códigos de convivência social. No entanto, não podemos esquecer a forte presença da oralidade nesse modo de educação afrobrasileira (SODRÉ, 2005; ABIB, 2006a), já que representa um importante recurso de preservação e disseminação da matriz africana. A palavra tem o poder de orientar, de estreitar vínculos de confiança, de transmitir experiências e auxiliar na tomada de decisões. Seguem alguns exemplos, relatados por alguns entrevistados.

[...] tem situações difíceis, de decisões, de encruzilhadas que o Mestre vai sentar e vai conseguir dar uma palavra calma que abre... „eu não enxerguei isso‟, aí você vai e mostra para ele, né. E mostra tudo isso que eu falei aí dessa complexidade de relacionar, os momentos de crise pessoal. Aí a palavra de um Mestre que vai te dar um conforto, vai te fazer entender né, o incentivo, a cobrança, o estímulo, né (Mestre Antônio Dias).

[...] tem alunos que as vezes ele vem confidenciar com você coisas que ele não vai falar com o pai e com a mãe dele (Mestre Mão Branca).

[...] batendo um papo, tomando um café. Você vai estar contando um caso. É um aprendizado. O cara nem viveu aquilo, mas ele está ouvindo da boca de quem viveu né, uma história que ele pode passar um dia pra frente. Ele vai ter uma experiência diferente do que ele ter sido pego de surpresa. Nunca ouvi essa história, mas eu já ouvi essa história que o Mestre me contou... (Mestre Mão Branca).

Talvez o fator mais relevante da oralidade seja sua função de perpetuar os segredos, os rituais, as tradições e os fundamentos da cultura afrobrasileira, em especial a Capoeira, entre as gerações. Na verdade, a oralidade representa um princípio fundamental milenar entre os povos antigos, como os africanos – berço da humanidade (SODRÉ, 2005; ABIB, 2006a). E a próxima fala retrata com riquezas de detalhes este poder da oralidade na transmissão dos saberes de uma prática de matriz africana:

Então esse ensinamento vem com o Mestre nesse bate papo. Ele fala: „meu filho eu participei disso, na minha época era assim, era assado... cuidado com isso, cuidado com aquilo‟. Você vai dando aqueles toques ali. Vai...‟berimbau você armou assim, mas não é assim que é legal; essa posição de armar é melhor‟. Entendeu, „oh, você está afinando o berimbau a afinação dele não é assim também, não está boa‟. O atabaque tá puxando demais o coro. „Oh, para o couro não estourar você passa um sebo no coro e bota no sol, não deixa secar só no sol porque resseca o couro, na hora que você bater o couro está ressecado e pode estourar‟. Então são segredos que você vai passando pro aluno devagarzinho ele vai pegando, né... „olha essa traçada ai oh, esse nó aí está errado. O nó é assim, oh. Não é que está errado, mas esse nó aqui, bacana, é melhor‟. Então são segredos que você vai dando para o cara no dia a dia que contribui na formação dele para que ele seja um bom profissional no futuro (Mestre Mão Branca).

Por fim, vou me valer de uma fala do Mestre Mão Branca, que coroa as reflexões aqui abordadas a respeito da influência da figura do Mestre de Capoeira, levando-se em conta sua postura, seu gestual e as conversas e aconselhamentos com seus alunos:

Eu tenho que passar pra alguém porque se você não envelhecer você vai morrer, e aí o mundo continua seguindo, cara (Mestre Mão Branca).