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As trajetórias capoeirísticas de cada sujeito se diferencia umas das outras: alguém que „tinha tudo para dar certo na vida‟ e abriu mão das facilidades econômicas e sociais para viver de Capoeira; alguém que também „tinha tudo para dar certo na vida‟ e conseguiu conciliar sua vida pessoal e profissional com a Capoeira; outro que deixou seus familiares e vida pessoal em outra cidade e foi se capacitar profissionalmente na academia do Mestre; outro que também saiu de sua cidade para se capacitar profissionalmente na Capoeira, mas antes disso teve um largo histórico de viagens em busca de uma referência; e por fim, um sujeito que desde adolescente optou por constituir toda sua vida (pessoal e profissional) na capoeiragem. Podemos perceber algumas semelhanças e obviamente diferenças e são essas relações que vamos abordar nas linhas que se seguem.

O discurso dos cinco sujeitos foi permeado pela valorização do Mestre como um líder e, muitas vezes, como um pai, bem como pela visão do grupo como uma família. Todos os entrevistados entendem que o desenvolvimento de um capoeirista é uma construção histórica e cultural (VIGOTSKI, 1996, 2000; REY, 2003, 2005) baseada no envolvimento, na dedicação, na persistência, na abnegação, na força de vontade e na superação de si mesmo. Foi possível identificar na fala de todos eles pontos semelhantes, tais como a confiança, a ancestralidade expressa através da musicalidade, o fazer parte de uma missão coletiva e a figura forte e marcante do Mestre!

Para eles, o contato direto com o Mestre é fundamental para a maturidade do capoeirista, pois ele traz consigo (ou deveria trazer – como adjetivos de um bom Mestre) uma vasta experiência práxis, uma postura de confiança diante da vida e um compromisso com a Capoeira. Por outro lado, para construir e fortalecer a relação com o Mestre é necessária a confiança: criação de vínculos recíprocos constituídos pela oferta de oportunidades e o adequado aproveitamento das mesmas. Essa categoria de análise se apresentou com muita força e densidade denotando em todos os sujeitos entrevistados – independente de geração, nível de experiência e maturidade ou graduação na Capoeira – que, em um grupo de Capoeira, ocorre a construção de sentidos subjetivos em torno da figura do Mestre (REY, 2003, 2005).

Já a musicalidade remete ao aspecto ancestral e místico da Capoeira, quer dizer, responsável pela transmissão de inúmeros saberes – um verdadeiro recurso pedagógico da pedagogia do segredo (SODRÉ, 2005). E, mais uma vez, o Mestre de Capoeira se apresenta como um educador que deve dominar este recurso pedagógico afrobrasileiro. Para todos os participantes da pesquisa, o Mestre pode ser comparado a um „GPS do destino‟ na vida de seus discípulos.

[...] ele sempre me fala boas coisas: de lição de vida, de coisas e experiências que ele já passou (Professor Baleia).

[...] a capacidade de estimular, de cobrar, de orientar, de alertar, de educar em geral, né. [...] é igual a um pai, que vai educar e vai permitir que aquele aluno se torne um ser humano melhor, uma pessoa melhor, um capoeirista melhor (Mestre Antônio Dias).

Você acaba passando experiências pessoais pro aluno e vai é... é formando um conjunto de ensinamentos e aprendizados né, essa parte que eu acho que é da função do Mestre (Mestre Mão Branca).

Por outro lado, conforme comentamos no início deste tópico, os discursos também apresentam pontos distintos e até discordantes, especialmente em relação à figura do Mestre e à constituição da trajetória de um capoeirista. Para os três sujeitos mais experientes na capoeiragem, um Mestre apesar de sua relevância fundamental no processo de preservação dos fundamentos, na disseminação das tradições e rituais e na transmissão geracional dos saberes, além de exercer a função social de líder e educador, não pode ser visto por seus discípulos e por si mesmo como alguém perfeito. Para eles, a maestria ocorre ao longo do tempo, no processo de desenvolvimento pessoal, isto é, contabilizando nessa trajetória os erros e falhas, os maus exemplos e as más escolhas e as distintas fases e momentos da vida, pelas quais todos nós passamos.

[...] a gente não concorda com tudo com ninguém, nem com a gente mesmo. [...] mas é uma pessoa que eu tenho um respeito que o tempo muitas vezes me mostra que muitas das coisas que eu achava que não era bem assim ele estava certo. Hoje eu acho que a gente tem uma relação em que a gente nunca vai deixar de ser Mestre e aluno, né (Mestre Bocão).

[...] pra mim a gente passa por alguns períodos. Né, o período do professor e Mestre. O período do professor que só ensina. Você está ali só ensinando. Então nada que o aluno apresente a você é importante naquele momento, que é o momento que você tem que se auto afirmar como professor, né. Depois você entra no período que começa a achar que o período da mestria mesmo, que é o período de você saber aprender com o aluno, né (Mestre Mão Branca).

Essa temática foi recorrente na fala dos três Mestres, mas não foi abordada pelos outros sujeitos do estudo. Enquanto essa capacidade de percepção não se desenvolve de forma evidenciada, apenas as características positivas tendem a ser consideradas, podendo criar um falso mito do Mestre „super herói‟, quase uma entidade.

A partir do momento em que se consegue refletir sobre críticas construtivas ao Mestre – desmitificando seu personagem heroico e aproximando-o do humano – os vínculos entre Mestre e alunos e discípulos se fortalecem e se tornam mais estreitos, produzindo laços de confiança, corroborando com as análises de Geeverghese (2013) sobre afetividade e interação nas relações entre Mestre e discípulo. Inclusive favorecendo uma maior aproximação do Mestre de Capoeira a um processo de paternagem. Aqui se observa um modo de educar da matriz africana, que se encontra imbricado na pedagogia do segredo (SODRÉ, 2005), a qual necessita ser mais explorada nas pesquisas no campo da capoeiragem e demais matrizes socioculturais afrodescendentes.

A análise das discordâncias e similitudes entre as falas dos cinco sujeitos entrevistados permitiu captar a lógica das relações coletivas que acontecem num determinado grupo de Capoeira. Ao longo do tempo, diferentes gerações de capoeiristas foram constituídas dentro do Grupo Capoeira Gerais. Com isso, algumas características da práxis em cada contexto provocaram sentidos subjetivos em cada sujeito/geração. E essas experiências reais, carregadas de significados afetivos e emocionais se revelam através da oralidade (ex: troca de experiências; musicalidade), mas não podem ser experienciadas por outros sujeitos, principalmente em temporalidades distintas. Por outro lado, apesar das diferenças históricas e culturais (individuais; de mundo; de concepções de Capoeira; nível de maturidade – inclusive do próprio Mestre, dentre outros), alguns padrões culturais e ritualísticos vem sendo preservados, indicando a manutenção de tradições e a perpetuação de fundamentos. Dito de outro modo, um grupo de Capoeira, por meio das suas tradições, produz efeitos adaptativos nos sujeitos que o constituem. E estes, através dos seus corpos, também ressignificam as tradições em um grupo de capoeiragem (ZONZON, 2014).

Até aqui foi possível compreender que a história do Grupo Capoeira Gerais, dos seus membros e do Mestre Mão Branca não é linear. E essa configuração dinâmica de um grupo de Capoeira que se constituiu ao longo do tempo, permeado pela dialética entre continuidade e descontinuidade, conservação e transformação (MATURANA, 2014), ajuda a desvelar a Capoeira como um fenômeno complexo (MORIN, 2005, 2014), que deve ser

sentido para ser compreendido. Nos dois capítulos que se seguem buscamos ampliar a visibilidade a respeito dessa complexidade.

6 A FIGURA DO MESTRE

Jogar Capoeira é escrever a história com o corpo (autor desconhecido).

Este capítulo se propôs a analisar e refletir acerca do lugar da figura do Mestre de Capoeira, no processo de aprendizagem de sua prática e de seus ensinamentos. Enquanto categoria de análise central, emergida no percurso da construção desta tese de doutorado, a figura do Mestre mereceu este capítulo à parte, no qual seus três indicadores constitutivos (sua influência e liderança; conversas, postura e gestual; historicidade) serão abordados sob a forma de tópicos desse capítulo.

Nesse aspecto, o Mestre Xaréu, após analisar e refletir sobre vários depoimentos para a sua tese de doutoramento, destacou como a figura do Mestre é forte e marcante na vida de seus alunos e discípulos, como também essencial à conservação e perpetuação da Capoeira através dos tempos:

[...] essa experiência [relacionamento com o Mestre e sua contribuição na

formação pessoal de cada um – grifo meu] modificou esses capoeiristas, pelos

depoimentos para melhor, considerando os aspectos que eles relataram como a questão da disciplina, da tolerância, do carinho, da segurança, da autoconfiança, do despertar para a questão cultural e, sobretudo, do respeito (CAMPOS, 2006, p.226).

Deste modo, o objetivo nos próximos tópicos que se seguem foi discutir esse tema complexo, envolto a uma figura mística, tomando por base o referencial histórico-cultural abordado neste trabalho e a literatura apropriada ao longo do percurso de construção da tese, sempre priorizando os sujeitos como atores desta tese.