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Contrapontos da democracia: da Antiguidade à Modernidade

Na Grécia antiga, com a democracia direta, era o povo6 que governava a partir das assembleias que decidiam sobre quais deveriam ser as políticas principais. A democracia era concebida como “consequência natural da política”, tendo sido constituída como a forma de governo de um povo com o próprio povo administrando os interesses públicos a partir de decisões coletivas. De acordo com Klein (2006), as assembleias populares eram realizadas em local público, aberto, com duração aproximada de um dia e se estruturavam em reuniões, com ampla participação dos cidadãos.

As suas reuniões, dez por ano, contavam com trinta encontros extraordinários, três para cada reunião e com um quorum de 6.000 cidadãos7, número mínimo de pessoas cuja presença era requerida para a execução adequada ou válida das transações (KLEIN, 2006, p. 20).

Nas reuniões, os cidadãos votavam as leis para a cidade ou polis, com plena liberdade de uso da palavra, como principal modo de deliberação (idem.). A

eclésia ou ekkésia – como eram chamadas as assembleias – tomava decisões relativas especificamente ao processo legislativo - referentes a criação de novas leis ou anulação de leis existentes -, mas os debates envolviam, também, questões sobre guerras, relações de paz ou o estabelecimento/rompimento de alianças. As questões legais sobre a ordem pública na polis estavam quase sempre vinculadas às finanças e ao controle econômico – sobretudo, às taxas diretas. Entretanto, discutiam-se questões diversas, de menos relevância, que se sobressaiam entre os embates, levantadas por minorias, subgrupos. Outro aspecto importante das

6

O termo “povo” não designava “toda a população”. 7

O número estimado de cidadãos não é compatível com o número provável de habitantes, ou seja, nem todo habitante era considerado cidadão.

assembleias estava no fato de que as discussões buscavam decisões unânimes8

respeitando o pensamento divergente, identificado por argumentação e contra- argumentação9 (KLEIN, 2006).

Sabe-se, igualmente, que somente os cidadãos eram os que tinham direito à democracia direta. A participação na democracia era vetada aos estrangeiros (conhecidos como metacas), às mulheres e aos escravos que pertenciam ao “montante dos excluídos da cidadania” (MEDEIROS, 2002, p. 22), evidenciando que a democracia dos gregos era para um grupo de indivíduos e não para todos: “[...] era uma democracia seletiva, excludente, injusta, e negava as oportunidades e igualdade para todos” (ibidem.). A igualdade perante a lei e a liberdade – princípios e valores democráticos - eram prerrogativas apenas dos cidadãos.

Nos moldes atenienses, a democracia perdurou – com oscilações visíveis ao longo da história – desaparecendo na Idade Média - até que no final do século XVIII, a “Modernidade” implementa uma “nova forma de democracia”, chamada de “indireta” ou “representativa”. Da democracia direta dos gregos, resta-nos, ainda, o voto, o sufrágio (SARTORI, 1994), uma vez que agora as decisões são tomadas pelos representantes eleitos pelo povo e não mais pelo próprio povo, por isso, hoje, “quando falamos de democracia ocidental referimo-nos a regimes surgidos há não mais de duzentos anos, após as revoluções americana e francesa” (BOBBIO, 1986, p. 9).

A democracia sofreu as mutações do tempo e da história, mas conservou- se, submersa, no léxico das concepções políticas. A “democracia”, naturalmente, adquiriu diversos significados relativamente diferentes (SARTORI, 1994, p. 34), segundo as concepções e ideias correntes no contexto histórico, o que evidencia um processo natural das sociedades: a dinâmica das ideias, dos valores e a evolução baseada nas relações políticas e econômicas. O termo, lexicalmente sofrendo as transformações histórico-filosóficas das sociedades, passou a ter “usos e abusos”, tanto do ponto de vista denotativo quanto conotativo, e até mesmo polissemias descontextualizadas com a utilização temporal do termo e expressões correlatas. Por isso, devemos atentar para o fato de que nossa democracia não é a mesma de outrora e isso nos impõe a necessidade de compreender tal fato, pois “[...] é

8 Retoricamente, homonoia. 9

surpreendente a pouca atenção dada ao fato de o conceito atual de democracia ter apenas uma vaga semelhança com o conceito desenvolvido no século V a.C.” (SARTORI, 1994, p. 34) em Atenas. Os séculos de mudanças em relação à “democracia” devem ser levados em consideração para sua compreensão na atualidade, e assim evitamos o fenômeno comumente aceito de que ao usarmos “a mesma palavra, somos facilmente levados a acreditar que estamos nos referindo à mesma coisa, ou a algo parecido” (idem., p. 35).

A democracia antiga estava estreitamente relacionada com a polis e era concebida em uma relação de complementaridade, isto é, a democracia foi construída para ser a forma de governo (substantivo = substância) da polis. E precisamos entender que “a polis grega não tinha nada da „cidade-Estado‟ como estamos acostumados a chamá-la, pois não era, em nenhum sentido, um „Estado‟” (SARTORI, 1994, p. 35). A polis era uma cidade, contudo, na acepção de Sartori (1994), não era uma cidade-Estado, mas, sim, uma cidade-comunidade, denominada em seu tempo pela palavra koinonía, literalmente, comunidade e “de serviços”, ou seja, revelava as faces de uma coletividade que constituía bens e serviços para atender a interesses coletivizados. Para este autor, há uma imprecisão ao afirmarmos que o modelo grego de democracia estava relacionado ao Estado democrático.

É muito revelador que politeía tenha significado, ao mesmo tempo, cidadania e estrutura (forma) da polis. Assim, quando falamos do sistema grego como um Estado democrático, estamos sendo grosseiramente imprecisos, tanto terminológica quanto conceitualmente (SARTORI, 1994, p. 35).

Ao recorrer à etimologia para desfazer tal “equívoco”, em conformidade com Sartori (1994, p. 35), descobre-se que a palavra Estado “deriva do particípio passado latino status, que, assim, indicava uma condição, uma situação ou estado de ser (como na expressão atual de status social)”. Para este autor, Maquiavel foi o primeiro a empregar o termo “Estado” com um caráter de impessoalidade, não subjetivo, mas em uma denotação política moderna reconhecidamente referencial para a teoria política, tendo teorizado o Estado como “uma entidade impessoal” (idem., p. 35).

O que caracterizava a democracia dos antigos era exatamente o fato de não

ter um Estado – de ter menos Estado, poderíamos dizer, que qualquer outra

forma possível de polis. Portanto, as democracias antigas não nos podem ensinar coisa alguma sobre a construção de um Estado democrático e sobre a forma de conduzir um sistema democrático que compreenda muito mais que uma cidade pequena: que compreenda uma grande faixa de território habitado por uma vasta coletividade (SARTORI, 1994, p. 36).

Há, entre todas as assertivas aqui refletidas, uma compreensão essencial de que a diferença entre as democracias na Antiguidade e na Modernidade não é apenas devido às dimensões geográficas - de territorialidade – ou demográficas – de aumento da população -, mas, sobretudo, os princípios, objetivos e valores as diferenciam enormemente, pois, no transcurso dos séculos, “a civilização moderna enriqueceu, modificou e articulou suas metas valorativas. Experimentou o cristianismo, o humanismo, a Reforma, uma concepção de „direitos naturais‟ da lei natural, e o liberalismo”, enfatiza Sartori (1994, p. 36), indagando: “Como poderíamos pensar que hoje, ao defender a democracia, estamos em busca dos mesmos objetivos e ideais dos gregos?” (ibidem.).

Dizer que a democracia antiga era a contrapartida da polis é dizer também que era uma “democracia direta” e, na verdade, não dispomos de nenhuma experiência atual significativa de uma democracia direta do tipo grego. Todas as nossas democracias são indiretas, isto é, são democracias representativas onde somos governados por representantes, não por nós mesmos (SARTORI, 1994, p. 36-37).

Concluindo seus argumentos, Sartori (1994, p. 37), alerta afirmando que é “evidente que não devemos tomar a noção de democracia direta (e de autogoverno) de forma muito literal e supor que, na cidade antiga, os dirigentes e os dirigidos eram idênticos”. Embora o consenso (homonoia) sempre fosse uma meta, até nas assembleias, como destacamos antes, havia pequenos grupos com interesses divergentes e as decisões tomadas eram designativas de funções e responsabilidades para uns e outros.

A liderança existia mesmo nessa época, e os governantes eram escolhidos pela sorte ou eleitos para desempenhar certas funções. No entanto, considerando a confusão de todas as questões humanas, a democracia da Antiguidade era, sem dúvida, a maior aproximação possível de uma democracia literal onde os governantes e os governados estavam lado a lado e interagiam uns com os outros face a face (SARTORI, 1994, 37).

Sartori (1994) enfatiza que mesmo na democracia direta dos gregos havia variantes de representação no nível da execução ou do governo. Finley (1984), Glotz

(1980) e Mossé (1982) também abordam esta característica e destacam que as decisões eram tomadas nas assembleias, mas nestas eram “sorteados” os que deveriam executar as políticas priorizadas. A representação se dava no nível do governo, o que seria defendido por Rousseau, séculos depois, ao criticar a representação política.