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Em analogia com o parto humano, podemos afirmar que “a democracia nasceu” (KLEIN, 2006). Esta assertiva garante a compreensão de que houve um período de preparação, concepção e formação antes do seu “nascimento”, conjugando “nascer” e “construir”. Assim como antes de nascer passamos por uma gestação, a democracia também foi gerada (construída), passou por um “período gestacional” (KLEIN, 2006, p. 18) acentuadamente intranquilo, como em dores de parto, na comparação da autora citada. Neste período, os inúmeros embates foram responsáveis pela composição de uma forma de governo (substantivo) e de governar (verbo significativo, indicativo de ação). Em outras palavras, podemos acrescentar que tal período foi necessário para formar um “corpus” cujo desenvolvimento, ainda em processo, acompanhou os itinerários da história política dos povos ocidentais.

O “período gestacional” da democracia, conforme afirma Klein (2006), foi marcado por transformações gerais e locais, sobretudo sob os aspectos culturais e sociais, relacionadas na maioria das vezes às formas de “administração” das organizações e espaços de decisão, levando-se em conta questões geográficos e demográficos. Tais transformações foram esboçadas em um amplo “processo de formação, gradual e cumulativa” (KLEIN, 2006, p. 18) que se desenvolveu na civilização grega ateniense com maior ênfase, como enfatizam Barker (1978) e Finley (1984).

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Do latim: “sem o qual não pode ser” 5 Aqui, no sentido estrito de povo.

Heródoto não aborda o nascimento/construção/surgimento da democracia. Ao narrar, ele observa o pleno desenvolvimento da democracia, junto aos gregos, e sua ausência nos povos “bárbaros”. Vale frisar que a narrativa heroditiana é uma crônica de viagem impregnada de aspectos impressionistas e subjetividades, tornando-se uma referência minimamente aplicável para fins de introdução temática, o que dificulta a aplicação de suas observações em processos discursivos mais amplos e específicos. Entretanto, Klein (idem.) está convicta de que o nascimento da democracia relaciona-se com a conquista de direitos políticos por parte dos cidadãos, isto é, pelo alargamento das fronteiras da cidadania, até hoje em percurso. Este processo aconteceu “mediante lutas e reivindicações sociais, que limitaram o poder da nobreza” (idem., p. 18). Para a autora, este fato possibilitou a ampliação dos direitos políticos e, consequentemente, o acesso ao poder político por parte dos cidadãos. A ampliação de direitos fundou a cidadania e esta eclodiu na democracia, e, por isso, democracia, cidadania, política e direitos mantêm uma corrente semântica, etimológica e historicamente reconhecível e analisável.

Klein (2006, p. 18) refere-se à democracia como conquista de direitos (pressuposto elementar e fundante da cidadania) que foram admitidos e reconhecidos “através da limitação institucional do poder de governo”. A democracia, nascendo para limitar o poder e ampliar os direitos, gerou a participação política, isto é, o exercício da cidadania conquistada que, por sua vez, impulsionou a democracia, fortalecendo-a e tornando-a locus da cidadania.

A vida política ateniense por mais de dois séculos (de 501 a 338 a.C.) limitou o poder dos governantes, não apenas pela soberania das leis, mas também pelas instituições democráticas, fundadas na participação ativa do cidadão em funções do governo (KLEIN, 2006, p. 18).

Resultado de incontáveis revoluções, guerras e transformações políticas, sociais e, sobretudo, econômicas, o processo democrático emerge em Atenas, devido à sua territorialidade favorável, compatível com os interesses locais e o desenvolvimento rural/agrícola (MOSSÉ, 1982) que proporcionou o “enriquecimento de proprietários de terras” e a expansão do comércio (KLEIN, 2006, p. 18). Estes fatos contribuíram para o surgimento de novos interesses locais que iam de encontro à nobreza, fomentando as disputas por poder e ampliando as possibilidades de participação e intervenção social nos processos locais de tomada de decisões. As

questões de ordem econômica foram fundamentais para o nascimento/consolidação dos processos democráticos na Antiguidade.

Deste contexto sócio-histórico, compreende-se que a limitação do poder, ampliando os direitos políticos, estava associada ao setor econômico. Do mesmo modo, no início da Modernidade, respeitadas as dimensões contextuais proporcionais das diferentes épocas, a Burguesia fez ressurgir a democracia, fundando, paralelamente, o Capitalismo, pois, na Idade Média, a democracia foi abafada pelo Cristianismo, mas as transformações de caráter econômico, político e social da Europa do século XV (Renascimento) e as revoluções internacionais dos séculos XVII (Revolução Industrial ou Inglesa) e XVIII (Revolução Francesa), instaladas pela burguesia, fizeram a democracia “renascer”, com outra “feição” e de forma economicamente notável, baseada na conquista do “poder de governar”. Neste período, já não é mais aquela democracia dos gregos, “direta”, “pura”, ateniense. O fator econômico, novamente, e desta vez com mais intensidade e possibilidades, influencia com preponderância para esse “renascimento”, uma vez que a “nova classe social” – a burguesia - em ascensão buscava “posições de prestígio e poder” (KLEIN, 2006, p. 27) e se impunha pelas revoluções de cunho essencialmente econômico.

Neste novo contexto, denominado Modernidade, a democracia renasce para limitar o poder institucional da Igreja, essencialmente, pois, de acordo com Klein (2006, p. 27-28) as “discussões, reflexões e formulações teóricas nos séculos XVII e XVIII consolidaram o ideal liberal na Europa e na América do Norte, derrubando o antigo regime teocrático e absolutista e retomando o ideal democrático”. Klein (idem., p. 28) afirma que a democracia moderna “foi reinventada” na América do Norte e na França, praticamente no mesmo período, “como a forma política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos – clero e nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe burguesa”, que ascendia ao poder econômico e que, por sua vez, impunha-se ao poder político por representação, dando origem à democracia representativa ou indireta, justificada pela “complexidade das sociedades modernas”. Em contrapartida, as transformações políticas, sociais e econômicas que fizeram a democracia renascer – como dissemos - também fundaram o Capitalismo, solidificando a divisão de classes – burguesia e proletariado, pobres e ricos – e a “desigualdade de patrimônio” (KLEIN, 2006, p. 28) ainda crescente entre nós. E,

assim como em Atenas, a “nova” democracia não foi “construída” para todos. Os trabalhadores e as mulheres, em especial, estavam “proibidos” – pelas condições sociais – de representar a coletividade, “capacidade” exclusiva daqueles que detinham poder econômico.