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Apresentado por Bobbio (1986) como “pai da democracia moderna”, Jean- Jacques Rousseau defendeu a democracia direta, mesmo quando anunciava ser descrente na possibilidade de sua existência, “reconhecendo que nunca houve nem nunca haverá uma democracia direta”. Neste contexto discursivo, Bobbio (idem.) afirma algo com absoluta similitude ao conceituar democracia na modernidade. Ele enfatiza que “[...] se por democracia direta se entende literalmente a participação de todos os cidadãos em todas as decisões a eles pertinentes, a proposta é insensata” (idem., p. 42), pois, havendo intermediação, não haveria, por conseguinte, democracia direta.

Para que exista democracia direta no sentido próprio da palavra, isto é, no sentido em que direto quer dizer que o indivíduo participa ele mesmo nas deliberações que lhe dizem respeito, é preciso que entre os indivíduos deliberantes e a deliberação que lhes diz respeito não exista nenhum intermediário (BOBBIO, 1986, p. 51).

Rousseau (2001) inova na forma de se pensar a política e as formas de governo “ao propor o exercício da soberania pelo povo, como condição primeira para a sua libertação”, como afirma Milton Meira do Nascimento (2006, p. 194). Para Bobbio (1986), esta questão envolve outras variantes e não pode ser tratada com simplicidade, dentro da perspectiva do exclusivismo, uma vez que a singularidade da democracia antiga cedeu espaço à pluralidade das democracias modernas, gerando divergências naturais diante da complexidade do novo modelo democrático.

[...] os significados históricos de democracia representativa e de democracia direta são tantos e de tal ordem que não se pode pôr os problemas em termos de ou-ou, de escolha forçada entre duas alternativas excludentes, como se existissem apenas uma única democracia representativa possível e

apenas uma única democracia direta possível; o problema da passagem de uma a outra somente pode ser posto através de um continuum no qual é difícil dizer onde termina a primeira e onde começa a segunda (BOBBIO, 1986, 52).

Bobbio (idem.) conclama para que estejamos atentos às “definições mínimas de democracia”, seja em sua forma direta ou indireta, reforçando que ambas podem coexistir em conformidade com as situações sociais, os espaços e os tempos, os grupos, os valores históricos. Sartori (1994), ao abordar a democracia, faz as seguintes associações:

[...] a democracia direta permite a participação contínua do povo no

exercício direto do poder, ao passo que a democracia indireta consiste, em

grande parte, num sistema de limitação e controle do poder. Nas democracias atuais, existem os que governam e os que são governados; há o Estado de um lado, e os cidadãos, de outro; há os que lidam com a política profissionalmente e os que se esquecem dela, exceto em raros intervalos. Nas democracias antigas, ao invés, essas diferenciações tinham muito pouco significado (SARTORI, 1994, p.37, grifos do autor).

A questão teórica primordial da Política quando enfoca este aspecto não é saber qual das duas formas de democracia é melhor ou pior, mas entender onde começa e termina cada uma, verificando as simbioses, as possibilidades e alternativas que as complementem, integrem ou isolem. Assim, o debate sobre representação e sua relação com a democracia estará sempre inacabado e nos remete às dinâmicas políticas dentro da História, perfazendo contornos que não se limitam aos discursos, mas requerem experiências.

A relação moderna entre democracia e representação resulta da construção histórico-cultural gradativa e econômica imposta pelas classes dominantes – que formam a Burguesia, conforme seus padrões de “autofavorecimento” – às classes dominadas, constitutivas do Proletariado. Esta relação imprimiu a ideia de que a Burguesia decide, pois assim foi escolhida pelos proletariados. No entanto, as ditas “classes dominadas”, organizadas em torno de seus interesses, resistiram, propondo a constituição de novos direitos e a ratificação constante destes em esferas sociais antes marginalizadas. Neste jogo social, os movimentos sociais e de trabalhadores começaram a exigir a ampliação e o alargamento do exercício do poder político, questionando a representação e indicando a participação como caminho necessário, rumo à democracia. As discussões sobre representação e representatividade tornaram-se comuns em

espaços políticos não-estatais, ocupados por lideranças populares e comunitárias que passaram a debater os rumos que a democracia brasileira deveria “tomar”. Neste contexto, Rousseau reaparece para fundamentar algumas destas questões. Ao discutir democracia, ele a associava à soberania que estava entrelaçada à vontade geral ou vontade do povo (ANTUNES, 2006), assim “[...] só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o fim de sua instituição, o bem comum [...]” (ROUSSEU, 2001, p. 39). Para este autor, a soberania era o exercício da vontade geral, por isso não estava passível de alienação ou cooptação, uma vez que o soberano – sendo “um ser coletivo”, um ser e estar constantes – não poderia ser representado por outro, pois, conforme Rousseau, o “poder pode ser transmitido, mas não a vontade”. Nesta lógica, a “soberania é indivisível pela mesma razão de ser inalienável. Porque ou a vontade é geral, ou não; ou é a do corpo do povo, ou só de uma parte dele” (ROUSSEAU, 2001, p. 40).

Ao definir democracia, Rousseau (2001) exemplifica que o “soberano pode confiar o governo a todo o povo, ou à maior parte dele, de modo que haja mais cidadãos magistrados que cidadãos simples particulares. Essa forma de governo se chama democracia” (ROUSSEAU, 2001, p. 69). Nesta perspectiva, evidencia-se que o seu conceito de democracia está vinculado ao maior ou menor número de cidadãos que participam do “soberano”, por isso Rousseau critica e desaconselha a representação política, entendendo que confiar decisões políticas a poucos cidadãos, e não ao povo ou à maioria deste, era corromper a soberania, a vontade geral, como evidenciam Ulhôa (1996), Vieira (1997) e Cassirer (1999). A democracia rousseauniana é o exercício da soberania pelo povo.

Não se pode representar a soberania pela mesma razão que se não pode alienar; consiste ela essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa; ou ela é a mesma, ou outra, e nisso não há meio-termo. [...] A ideia dos representantes é moderna e nos vem do governo feudal [...]. Nas antigas repúblicas, mesmo em monarquias, nunca o povo teve representantes, e era desconhecida tal expressão (ROUSSEAU, 2001, pp. 91-92).

Nascimento (2006) afirma que para Rousseau “[...] impõe-se definir o governo, o corpo administrativo do Estado, como funcionário do soberano, como um órgão limitado pelo poder do povo e não como um corpo autônomo ou então como o próprio poder máximo, confundindo-se neste caso com o soberano” (idem., p. 197). Qualquer forma de governo que se adote deve submeter-se ao poder soberano do

povo (VIEIRA, 1997). Nascimento (2006, p. 197) enfatiza que “dentro do esquema de Rousseau, as formas clássicas de governo, a monarquia, a aristocracia e a democracia, teriam um papel secundário dentro do Estado e poderiam variar ou combinar-se de acordo com as características do país”. Rousseau, ao frisar que o governo tem um caráter de “corpo submisso à autoridade soberana” – expressão de Nascimento (2006) –, alerta para o fato de que o “governo tende a ocupar o lugar do soberano, a constituir-se não como um corpo submisso, como um funcionário, mas como o poder máximo, invertendo, portanto, os papéis. Ao invés de submeter-se ao povo, o governo tende a subjugá-lo” (idem., p. 197). Esta assertiva corrobora com o que afirma Vieira (1997) diante dos pressupostos liberais que imprimem ideias de Estado, concebendo-o como governo de responsabilidades mínimas, já que propõe uma democracia “corrompida” pela concepção de que o governo eleito exerce a vontade popular pela representação política, alerta Ulhôa (1996).

Rousseau associa representação e vontade. “Rousseau não admite a representação ao nível da soberania” (NASCIMENTO, 2006, p. 197-198), do exercício do poder de decidir, das decisões políticas sobre o público. Para ele “o exercício da vontade geral através de representantes significa uma sobreposição de vontades” (idem., p. 198), onde a vontade do governo elimina a vontade geral do soberano. Outrossim, negando a representação nas considerações sobre vontade geral e soberania, Rousseau a exige quando trata de governo, de poder executivo. Neste nível, conforme Nascimento (idem.), Rousseau considera a representação como uma necessidade, alertando que “não se deve descuidar-se dos representantes, cuja tendência é a de agirem em nome de si mesmos e não em nome daqueles que representam. Para não se perpetuarem em suas funções, seria conveniente que fossem trocados com uma certa frequência” (NASCIMENTO, 2006, p. 198). Rousseau manifestou, portanto, preocupação com o controle social do Estado e do governo pelo soberano, o povo. Esta preocupação apresentada por Rousseau está fundamentada no fato de que ele considerava que “a primeira ameaça à república está na corrupção de indivíduos e instituições” (RUZZA, 2008, p. 189). A representação política, por correlação, seria, na perspectiva do filósofo, a segunda ameaça (ibidem.).

Vale salientar que a concepção de representação é criticada por Rousseau, pois o mesmo concebia a democracia como “forma perfeita” (idem.,) de governo num época em que a Europa intensificava o discurso contra a “herança

política dos antigos helenos”, vendo a democracia por aspectos negativos (Cf. CASSIRER, 1999). “É somente com a Revolução Francesa que o conceito de democracia adquire uma conotação definitivamente positiva, como nos nossos dias, quando quase ninguém se declara seu inimigo”, como atesta Ruzza (2008, p. 189).

A democracia é, para Rousseau, uma preferência, não uma exigência universal, por causa da variedade de povos e países. Rousseau aceita que a República possa ter qualquer uma das várias formas de governo, que são as três formas clássicas, a saber, democracia, aristocracia e monarquia, além das mistas (RUZZA, 2008, p. 189).

Propondo uma reflexão acerca da representação democrática, Bobbio (1986, p. 44) esclarece que a “expressão „democracia representativa‟ significa genericamente que as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas para esta finalidade”. Estado representativo – concepção política moderna - implica em participação na escolha de representantes e não no processo de decisão. Sobre representação política, Bobbio (1986) propõe que se discuta com especificidade reflexiva os “poderes do representante” e o “conteúdo da representação” (idem., p. 45), bem como “representação partidária” e “representação orgânica” (idem., p. 49), todas fundamentais para a compreensão das feições da democracia na contemporaneidade.

Discutindo a possibilidade de uma “democracia integral” (BOBBIO, 1986, p. 52) como estratégia para articular todas as formas de democracia, suas situações e exigências, Bobbio (ibidem.) afirma que “democracia representativa e democracia direta não são dois sistemas alternativos (no sentido de que onde existe uma não pode existir a outra), mas são dois sistemas que se podem integrar reciprocamente.” E conclui: “[...] num sistema de democracia integral as duas formas de democracia são ambas necessárias mas não são, consideradas em si mesmas, suficientes” (ibidem.). No campo da educação, a democracia integral, conforme discutida por este autor, é um pressuposto jurídico-legal fundante dos conselhos de educação, concebido como espaço que pode reunir participação e representação.

No transcurso da História, reconhecemos que tanto a democracia direta como a representativa têm lugar na história das formas de governo, contudo, dadas as exigências sociais de agora, a participação política dos cidadãos nos processos de tomada de decisão tornou-se meta constante, pois “[...] um sistema baseado na

participação é mais seguro ou mais gratificante que um sistema baseado na representação” (SARTORI, 1994, p. 38).