• Nenhum resultado encontrado

Contraposição à grande imprensa

No documento Download/Open (páginas 42-46)

O termo “imprensa alternativa”, que traz a ideia de opção ao jornalismo tradicional praticado pela chamada grande imprensa, foi e continua sendo usado com frequência para definir os pequenos jornais que circularam no período da ditadura militar, mas já naquela época não havia consenso sobre a adequação dessa expressão para designar essas publicações.

Encerrado o regime imposto a partir de 1964 no país, o novo contexto político nacional e o desaparecimento daqueles jornais de resistência à ditadura tornou a classificação genérica de imprensa alternativa para publicações com públicos e interesses diferentes ainda mais inapropriada no entender de muitos pesquisadores, até porque o advento da internet gradualmente permitiu o aparecimento de mídias que fogem do esquema da imprensa convencional. Mas antes de promover uma abordagem mais aprofundada sobre a imprensa alternativa explicitamos, brevemente, as características da grande imprensa a qual o jornalismo alternativo se contrapõe.

O jornalismo surgiu como resposta ao obscurantismo da Idade Média e serviu como ferramenta para garantir os direitos sociais e humanos a partir do nascimento da burguesia empreendedora e das democracias republicanas, segundo Ciro Marcondes Filho (2002). Para o autor, a partir da Revolução Francesa, o jornal se organiza como propulsor de ideias e reafirma os valores burgueses pelo fim das monarquias e o absolutismo do período conhecido como “Idade das Trevas” (2002, p.10).

O jornalismo, portanto, permitiu o acesso a conhecimentos e informações antes restritos aos limites das igrejas e dos castelos. A objetividade jornalística e o mito da imparcialidade nascem nesse momento, como uma forma de aproximar o jornalismo da ciência e sua neutralidade. O gradual processo de mudança da imprensa em negócio teve início nos Estados Unidos, França e Inglaterra e até 1875 já tinha se consolidado plenamente, conforme Marcondes Filho.

A grande mudança que se realiza nesse tipo de atividade noticiosa é a inversão da importância e da preocupação quanto ao caráter de sua mercadoria: seu valor de troca – a venda de espaços publicitários para assegurar a sustentação e a sobrevivência econômica – passa a ser prioritário em relação ao seu valor de uso, a parte puramente redacional-noticiosa dos jornais. (MARCONDES FILHO, 2002, p. 13-14).

A notícia, na concepção do autor, além de funcionar como fruto de um processo de produção, como mercadoria e como valor de troca, é utilizada como arma política no combate ideológico. Ao atuar diretamente na vida política e, via de regra, na conservação cotidiana da ideologia, a imprensa – como empresa privada – torna-se “imprescindível à ordem burguesa” por manter em segurança os elos estruturais no modo de produção capitalista (MARCONDES FILHO, 1984, p.22).

O aparecimento da circulação de notícias, portanto, estaria ligado ao desenvolvimento do capitalismo em sua fase mercantilista, no momento em que passam a existir não só a circulação de mercadorias, mas também as primeiras feiras e mercados. Para o autor, isso explica que “a reportagem, produzida de forma empresarial, está sujeita por isso às mesmas leis do mercado, a cujo surgimento ela deve sua própria existência” (1984, p.13).

Posteriormente, o jornalismo aparecerá como forma de expressão política da burguesia, junto com os processos de urbanização e industrialização. Ele deixará de servir apenas para a transmissão de notícias e troca de informações sobre a atividade econômica em geral e passará a fornecer retaguarda social e ideológica para a mudança de rumos que os novos capitalistas desejam imprimir ao mundo.

A utilização da imprensa na sociedade de classes não pode ser vista, portanto, separada de sua “função capitalista”. A imprensa e, mais especificamente, a sua bandeira “liberdade de imprensa” são a expressão real dos detentores do poder econômico no modo de produção capitalista. O jornalismo organizado nos moldes da forma privada de produção é (...) o pressuposto para a liberdade de imprensa. O caráter privado, assim, garante a liberdade. Esta não está, portanto, no direito constitucional do cidadão, de se manifestar como, quando, onde e da forma como bem desejar. Aqui, ao contrário, ela se baseia pura e simplesmente ao caráter privado: este caráter é o que deve garantir a livre manifestação e não o direito constitucional (MARCONDES FILHO, 1984, p.16).

Na década de 1960, a publicidade e as relações públicas crescem de forma a dar novas feições ao jornalismo, que vê sua atividade fragmentar-se cada vez mais até ser substituída por processos menos interessados na propagação do conhecimento e mais voltados a assegurar que o público compre o produto.

Quando os grandes jornais brasileiros adotaram a linha empresarial, Alberto Dines (1986) avalia que o gênero investigativo foi sendo abandonado aos poucos. A situação agravou-se com a criação e expansão das estruturas de comunicação nas instituições brasileiras. “Organismos privados ou públicos passaram a organizar seus departamentos de informações para filtrar e divulgar através de notas e releases, a matéria de seu interesse ou que lhes era solicitada” (DINES, 1986, p.91).

A partir do golpe de 1964, o governo militar inaugura a era da “nota oficial” e são liberadas apenas as informações que convêm ao regime, procedimento denominado por Dines de “comunicação às avessas”. “O repórter e todo o processo jornalístico acomodaram-se e deixaram de investigar. O jornalismo brasileiro como alternativa passou a viver de eventos e levantamentos” (DINES, 1986, p. 91).

Perseu Abramo por sua vez, aponta a existência de “padrões de manipulação” na mídia comercial que influenciam a interpretação que o receptor fará da mensagem na grande imprensa. Segundo Abramo, o fato real é eliminado da realidade como se não existisse, o que pode ser feito desde a pesquisa dos antecedentes da notícia, nas preliminares da busca pela informação, e na edição e programação da matéria (2016, p.40).

Outro procedimento adotado pelos conglomerados midiáticos é a fragmentação das notícias, deixando-as desconexas e sem relação umas com as outras, de maneira que os fatos deixam de ter antecedentes (ABRAMO, 2016, p.43). A manipulação seria adotada ainda pela troca da versão pelo fato, com a valorização das declarações das fontes e do oficialismo, que deixam o acontecimento real em segundo plano. A palavra da fonte oficial tem um peso superior às demais e leva o consumidor a se distanciar da sua condição real de existência e ver o mundo como o veículo quer que ele veja (ABRAMO, 2016, p.45).

Abramo (2016) considera que os grandes veículos de comunicação do país têm a pretensão de agir como partidos políticos e funcionam como instrumentos de controle político das elites, contrariamente aos interesses de outros setores. Ao impor uma realidade montada, os veículos de massa colaboram para alienar seus consumidores do mundo real e dos problemas que ele possui.

Assim é sustentável a afirmação – pelo menos em caráter de hipótese de trabalho – de que os órgãos de comunicação se transformaram em novos órgãos de poder, em

órgãos político-partidários e é por isso que eles precisam recriar a realidade onde exercer esse poder, e para recriar a realidade eles precisam manipular as informações. A manipulação assim torna-se uma necessidade da empresa de comunicação, mas como a empresa não foi criada nem organizada para exercer diretamente o poder, ela procura transformar-se em partido político. Aliás, os grandes e modernos órgãos de comunicação, no Brasil, parecem-se efetivamente muito com partidos políticos (ABRAMO, 2016, p.60-61).

Bernardo Kucinski (2005) constata que os principais jornais do país não divergem em seus discursos e são todos igualmente conservadores e neoliberais.

Os jornais de referência nacional se tornaram tão parecidos que é comum confundir um com o outro nas bancas de revistas. Trazem as mesmas manchetes, as mesmas fotos, dispostas da mesma forma, e os mesmos nomes de colunistas. (KUCINSKI, 2005, p.114).

A estrutura de propriedade das empresas jornalísticas brasileiras reproduz com grande fidelidade a configuração oligárquica da propriedade da terra, na visão de Kucinski (1998, p. 16), para quem a gestão dos jornais promove práticas hedonísticas e de favoritismo peculiares da cultura dos grandes proprietários rurais. Ele destaca que, na maioria das democracias liberais mais avançadas, o pluralismo ideológico é substancial na imprensa escrita, mas no Brasil os jornais das oligarquias compartilham uma ideologia comum e desempenham um papel mais ideológico do que informativo. A mídia estaria voltada à disseminação de um consenso previamente acordado entre as elites e à difusão de grupos de pressão empresariais, e essa função de controle seria “facilitada pelo monopólio da propriedade pelas elites e por uma cultura jornalística autoritária e acrítica” (KUCINSKI, 1998, p.17).

Skidmore (1988), Chiavenatto (1997), Sodré (1999) e Napolitano (2014), entre outros pesquisadores que estudaram o regime militar, destacaram o papel da grande imprensa na preparação e exaltação da derrubada de Jango. Skidmore destaca o Jornal do Brasil, Correio

da Manhã, O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e os Diários Associados. “O

único jornal que combateu o golpe foi Última Hora, cujo diretor e fundador, Samuel Wainer, teve que fugir” (SKIDMORE,1988, p.61).

Após o sucesso da Marcha da Família em São Paulo, os jornais – que até então atacavam a política de Goulart, mas mantinham um certo comedimento em relação à figura do presidente -, de acordo com Chiavenato (1997), passaram a adotar uma postura mais agressiva. Os editoriais pediam abertamente aos militares que interferissem na política, às vezes exigindo até a deposição de Goulart. Um dos principais órgãos da imprensa carioca, o

Jornal, chegou a publicar um editorial afirmando que o Exército não devia obediência ao

muito menos a dar proteção àqueles que desafiam e infringem as leis e que fazem agitações numa praça pública em favor de uma revolução comunista´” (CHIAVENATO, 1997, p.19).

Napolitano frisa que “a imprensa preparou o clima para que os golpistas de todos os tipos, tamanhos e matizes se sentissem mais amparados pela opinião pública ou, ao menos, pela ´opinião publicada`” (2014, p. 47). No entanto, o autor aponta que o Ibope, por encomenda da Federação do Comércio de São Paulo, realizou pesquisa entre 9 e 26 de março de 1964 e os resultados “nunca foram divulgados pela imprensa”, sendo descobertos no acervo do Arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp. Segundo ele, os dados do Ibope mostravam que Goulart tinha 45% de “ótimo” e “bom” na avaliação de governo, e 49% das intenções de voto para 1965. Apenas para 16% dos entrevistados o governo era “ruim ou péssimo”, e 59% eram a favor das reformas anunciadas no comício de 13 de março. (NAPOLITANO, 2014, p.47).

Nelson Werneck Sodré (1999), por sua vez, afirma que em março de 1964 foi desencadeada a operação publicitária que anunciaria as ações militares: toda a grande imprensa, “articulada em coro”, participou dessa preparação psicológica, como o rádio e a televisão. “Os editoriais do Correio da Manhã, nos últimos dias de março – aqui à guiza de exemplo – foram esclarecedores até nos títulos: ´Basta!` e ´Fora!`, indicando ao presidente João Goulart a saída, como se fora ele, não o mandatário do povo, mas empregado relapso” (SODRÉ, 1999, p.410).

No documento Download/Open (páginas 42-46)