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Vítimas da censura e fim de um ciclo

No documento Download/Open (páginas 67-71)

Independentemente do tipo de imprensa alternativa, ela não era bem vista pelos militares, muito mais do que os jornalões. O general Ernesto Geisel, por exemplo, segundo reportagem de O Estado de S. Paulo, de 30 de dezembro de 1976, citada por Marconi (1980, p.100) teria considerado os alternativos como “imprensa marrom” em conversa informal com auxiliares, alegando que “todos os jornalistas podem e devem interpretar os fatos, mas de forma nenhuma, ninguém, nenhum jornalista, tem o direito de colocar na boca de alguém do governo informações ou dados que não correspondem à realidade”.

As tentativas de sufocar a existência dessa imprensa não se restringiam à censura e apreensão de edições. O Estado de S. Paulo obteve documentos sigilosos do Ministério da Justiça e denunciou a existência de uma operação secreta da Receita Federal, realizada entre 1976 e 1978, para forçar o encerramento das atividades de órgãos alternativos. A devassa fiscal alcançava 41 publicações, entre elas, Versus, Pasquim e Movimento (DOCUMENTO..., 2009, online).

O Centro de Informações do Exército (CIE) elaborou relatório, em 1978, conforme Marconi (1980, p.135-136), que mostrava a disposição do governo militar de impor medidas legais para silenciar a imprensa alternativa “sem precisar lançar mão do desgastante recurso que é a censura policial-militar”. Essas sanções econômicas e administrativas teriam também a vantagem de ter “efeito mais rápido, direto e positivo sobre qualquer órgão do que as ações judiciais que, devido às características de nossa legislação, têm chances de excessiva procrastinação”.

Entre as sugestões apresentadas no relatório do Exército, constavam: obrigatoriedade de publicação de balancetes periódicos, auditagem contábil, proibição de trabalhar na empresa quem respondesse a processo pela Lei de Segurança Nacional, alteração na legislação de registros públicos para permitir o cancelamento da empresa com débitos federais e a aprovação de uma nova Lei de Imprensa. Marconi (1980, p.311) informa que o documento do Exército considerava que a grande maioria dos jornais não resistiria às exigências porque muitos deles encontravam-se em débito com a Fazenda.

Essas propostas foram colocadas em prática contra o jornal Versus. Em maio de 1979, segundo Marconi (1980, p.136), três delegados e sete agentes policiais do DOPS paulista ocuparam a redação do tabloide, respaldados por um mandado de interdição, busca e apreensão de documentos contábeis. Um mês antes, o mesmo jornal havia sido multado em 240 mil cruzeiros como resultado de uma primeira perícia contábil realizada pelo Ministério da Fazenda, INPS e Polícia Federal.

Outro relatório, desta vez do Serviço Nacional de Informações (SNI), de março de 1980, tornado público pelo jornalista Elio Gaspari, revelava o descontentamento com os pequenos jornais. “As Forças Armadas sofrem ataques constantes, a partir, em especial, de uma intensa orquestração da ‘imprensa nanica’, que livremente circula. Criminosos de ontem são as vítimas de hoje, a cobrar punição pelas ‘injustiças’ sofridas e ‘abusos’ cometidos”. (GASPARI, s.d., online).

Os estudiosos da imprensa confirmam o inconformismo dos militares em relação aos jornais alternativos e por isso teriam sido as principais vítimas da censura. Juarez Bahia

(1990, p.314) afirma que os tabloides assumiam uma postura de “contestação, insubmissão, marginalidade e independência” e que não havia qualquer tolerância da ditadura, porque eles eram enquadrados “como focos da propaganda subversiva ou força auxiliar do terrorismo”.

Kucinski ratifica essa distinção dos militares no trato com a imprensa alternativa. O autor argumenta que, no período de 1968 a 1972, surgem dois padrões do controle da informação: censura prévia e outras formas de pressão, inclusive econômicas, contra os jornais alternativos, e controle indireto por meio de bilhetinhos e avisos informais para a grande imprensa, “ou seja, um pacto não escrito de autocensura com os barões da imprensa” (1998, p. 59). Essa forma “envergonhada, defensiva” na censura à imprensa tradicional ocorreu porque o regime militar não tinha a coragem de se assumir como ditadura plena, ao mesmo tempo em que a autocensura também era a solução preferida pelos proprietários dos meios de comunicação por interesses mercantis, já que a censura prévia e o confisco de edições representavam prejuízos econômicos consideráveis (KUCINSKI, 1998, p. 61).

Alguns jornais alternativos sofreram feroz e prolongada censura e três deles foram os últimos a ficarem livres da censura prévia, já em 1978: Movimento, O São Paulo e Tribuna da

Imprensa. Antes mesmo de circular sua primeira edição, Movimento foi submetido à censura

prévia; sendo que a explicação dada em julho de 1975 pela Polícia Federal foi a de que o folheto de propaganda de lançamento do jornal continha “matéria que incita à luta pela violência e sugere a prática de depredações contra o patrimônio nacional”. Posteriormente, o jornal editado no Rio de Janeiro foi obrigado a encaminhar, semanalmente, todas as matérias da edição para Brasília, permanecendo nessa situação de 1973 a 1977 (MARCONI, 1980, p.67).

O diretor Fernando Gasparian enviou carta à Associação Brasileira de Imprensa comunicando a apreensão de 48 mil exemplares da edição 195, na qual explicava a rotina para atender aos censores:

A arbitrariedade inerente a qualquer tipo de censura, junta-se o processamento burocrático por ela imposto desde o nº 24 do jornal. Semanalmente somos obrigados a cumprir a seguinte rotina: enviar às nossas expensas todo o material, incluindo textos, fotos, anúncios, chamadas de capa, cartas de leitores, coluna de xadrez, por via aérea, na noite de segunda-feira, para a Polícia Federal em Brasilia: no dia seguinte, à hora que melhor lhe aprouver, a censura devolve o material com os cortes efetuados, a um representante que mantemos em Brasília exclusivamente para isso (apud MARCONI, 1980, p.68).

O São Paulo, jornal da Arquidiocese de São Paulo, tratava do trabalho da Igreja voltado para a comunidade, e passou a sofrer censura prévia a partir de 1971. A esse respeito, o cardeal D. Paulo Evaristo Arns declarou certa vez:

Em 10 anos como bispo, nunca fui advertido pelo Papa. É por isso que eu não compreendo porque é que o jornal que eu dirijo, O São Paulo, destinado fundamentalmente aos meus agentes pastorais, com o objetivo de orientá-los, tem de ser submetido à censura prévia, para vir um leigo dizer ao arcebispo como ele deve falar aos seus amigos” (apud MARCONI, 1980, p. 71).

Com o fim da ditadura militar, a imprensa alternativa sucumbiu, apesar da grande diversidade editorial, diferentes propostas estéticas, multiplicidade de temas e abrangência geográfica distinta. Kucinski (2001, p.12) analisa o término da onda de jornais alternativos acreditando que não se pode considerar a repressão, os sequestros de edições, a censura prévia e os processos políticos como causas diretas do fechamento, sem levar em conta as crises latentes dentro dos jornais.

Como se tivesse ocorrido um cataclisma, quase todos os jornais alternativos que circulavam entre 1977 e 1979 deixaram de existir a partir de 1980-1981. Desde os grandes alternativos nacionais surgidos ainda em 1975, até os basistas, da última geração, voltados aos movimentos populares e à reportagem. Desapareceram, independentemente da natureza de sua articulação, da qualidade do projeto, do acerto ou do insucesso de suas propostas editoriais e soluções operacionais. Os sobreviventes, O Pasquim, Resistência e Em Tempo, haviam se divorciado do padrão alternativo (KUCINSKI, 2001, p.94).

Uma afirmação recorrente que poderia explicar o desaparecimento dos alternativos é de que esses jornais faziam parte da lógica da ditadura, portanto sua única razão de existir era a resistência ao regime militar. Essa é a percepção de Regina Festa (1986, p.17), para quem a perseguição fiscal a alguns veículos, a apreensão de jornais e os atentados terroristas foram determinantes no desaparecimento da imprensa alternativa a partir do processo de abertura, que também permitiu o surgimento de novos espaços políticos na sociedade, inviabilizando economicamente os alternativos. Ela crê que a comunicação popular e alternativa aparecem, desenvolvem e refluem na mesma medida da capacidade de os movimentos sociais articularem o seu projeto alternativo de sociedade e, por conseguinte, “são os espaços políticos, democráticos e as alianças que definem e viabilizam esse tipo de comunicação” (1986, p.30).

Raimundo Pereira pensa diferente; considera apressado dizer que a abertura matou a imprensa alternativa. Para ele, já em 1977 não existia um seminário nacionalista expressivo nas bancas de jornais, com exceção de O Pasquim. Assim, conclui que:

(...) nos anos mais soturnos do terror político no País, apenas puderam sobreviver ou foram tolerados, dentro de limites muito estreitos, jornais políticos ligados à burguesia nacional e às correntes políticas que privilegiavam, por motivos táticos ou de convicção, os aspectos secundários da resistência ao regime; as formas de vida, a linguagem, etc. (PEREIRA, 1986, p.62).

Kucinski também discorda da ideia de vinculação da normalização democrática com a extinção dos alternativos, atribuindo o encerramento do ciclo da imprensa alternativa a um conjunto de fatores. Do ponto de vista econômico, a imprensa alternativa era muito frágil pela ausência de uma estrutura administrativa eficiente e de um esquema de distribuição menos dispendioso. Ele descarta os atentados da extrema direita como o principal motivo, observando que as vendas em banca eram mínimas para os alternativos com circulação nacional, como Movimento e Em Tempo, e que os atentados destruíam exemplares destinados ao encalhe. O autor ressalva alguns jornais que tinham grande vendagem em banca, mas que não estavam ligados a projetos político-partidários e, por isso, não contavam com a possibilidade de venda por militantes. Foi o caso do Repórter e do Coojornal, este último agravado por dissensões internas, pressão dos militares contra anunciantes e decisões estratégicas equivocadas, como o lançamento do jornal Rio Grande (KUCINSKI, 2001, p.96- 97).

Ao mesmo tempo, ocorre um processo de institucionalização de parte da imprensa alternativa, com o aumento de sindicatos progressistas e de movimentos populares, que passam a produzir órgãos de comunicação próprios. A distensão permitiu ainda a retomada da atividade política por parte dos partidos, inclusive os que se mantinham na clandestinidade, retirando da imprensa alternativa a sua função de referência sociopolítica. As organizações partidárias passam a ter seus jornais a partir de 1979. “Estava selado o fim dos alternativos políticos portadores de projetos nacionais” (KUCINSKI, 2001, p.97-98). Com a redemocratização, a grande imprensa se aproximou de temas até então restritos ao espaço dos jornais alternativos, como foi o caso de Folhetim, editado por Tarso de Castro. Esse mimetismo fez com que a imprensa alternativa perdesse “o monopólio do jornalismo crítico para a grande imprensa”, conforme Kucinski (2001, p.99), embora o autor tenha lembrado que foi efêmera a fase de apropriação do padrão alternativo por parte da grande imprensa.

Kucinski chega à conclusão que a imprensa alternativa confrontaria o sistema dominante muito mais na tentativa de construção de uma contra-hegemonia ideológica do que no campo conjuntural da resistência à ditadura. O autor vê a imprensa alternativa dos anos 1970 estimulada pelo surgimento da ditadura, mas com existência particular na história,“como uma das últimas grandes manifestações da utopia no Brasil” (2001, p. 15).

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