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Contribuições da ayahuasca na reflexão sobre as drogas

Diagrama 4.8 – “ um caminho espiritual” (A ayahuasca é )

2.2 RUPTURAS CULTURAIS E PSICOLÓGICAS

2.2.1 Contribuições da ayahuasca na reflexão sobre as drogas

A questão da legitimação jurídica do uso ritual da ayahuasca traz à tona, necessariamente, a discussão mais ampla sobre o complexo problema das drogas em nossa sociedade. Afinal, a ayahuasca é uma substância psicoativa muito poderosa e o que a diferenciaria das outras “drogas”, ditas ilícitas?

Pela imensa relevância social que o tema tem, achamos conveniente aprofundar a reflexão sobre esta questão. A ayahuasca já se mostrou bastante eficiente no tratamento da dependência química, conforme vimos na seção 2.1.7. Será que ela pode contribuir de outros modos também? Como as religiões ayahuasqueiras poderiam contribuir para uma maior compreensão deste gravíssimo problema social relacionado às drogas?

Dizem que problemas complexos exigem soluções complexas e o problema das drogas não é uma exceção à regra. Qual seria a melhor forma de lidar com este problema? Certamente não há uma solução simples, mas uma coisa é certa: a política global de “guerra

às drogas”, que vem sendo implementada desde a segunda década do século XX, não está dando certo! Os problemas relacionados ao uso de psicoativos ilícitos só têm aumentado e isso mostra que a estratégia atual é falha e deve ser repensada. Macrae (1996) aponta algumas destas falhas:

A própria concepção de “drogas ilícitas” parece ser uma “categoria arbitrária, de natureza exclusivamente política, sem nenhum embasamento científico” (MACRAE, 1996, p. 4). Como aponta Varella (2004, p. 3): “Não há uma lógica racional para as interdições da cultura, mas existe sim a lógica da política dos grupos de interesse instituídos...”. De acordo com este autor, as drogas consideradas ilícitas variam de acordo com o tempo, tendo o tabaco e o próprio café sido considerados ilícitos em algum momento da nossa história.

Segundo Carneiro (2002, p. 02), “a construção política dos conceitos conecta o Estado e a Medicina, pois a história social da linguagem é basicamente uma questão de poder”. Para ele, existem alguns conceitos investidos de alto poder simbólico e o conceito de “drogado” é um deles. Segundo este autor, “o surgimento deste conceito (...) é simultâneo ao de uma série de outros, como o „homossexual‟, o „alienado‟, o „erotômano‟, a „ninfomaníaca‟ ou o „onanista‟”. A doença do vício seria, nesta perspectiva, uma construção do século XIX.

Outro problema da legislação atual é que esta não leva em consideração na determinação do efeito do uso de determinado psicotrópico, outros aspectos além dos estritamente farmacológicos, como por exemplo, os fatores psicossociais. Seria importante, como já apontou o psiquiatra americano Norman Zimberg, fazer uma diferenciação entre o “uso controlado” e o “uso compulsivo”: “O primeiro teria baixos custos sociais enquanto o segundo, disfuncional e intenso, teria efeito contrário” (MACRAE, 1996, p. 5).

O uso controlado, segundo este autor, seria regido por regras, valores e padrões de comportamento. Esses controles sociais funcionariam de quatro maneiras, conforme aponta MacRae (1996, p. 6, citando ZINBERG, 1984, p. 17):

a) definindo o que é uso aceitável e condenando os que fogem a esse padrão; b) limitando o uso a meios físicos e sociais que propiciem experiências positivas

e seguras;

c) identificando efeitos potencialmente negativos. Os padrões de comportamento ditam precauções a serem tomadas antes, durante e depois do uso;

d) distinguindo os diferentes tipos de uso das substâncias: respaldando as obrigações e relações que os usuários mantêm em esferas não diretamente associadas aos psicoativos.

Neste contexto, o uso ritualizado da ayahuasca parece ratificar a viabilidade do uso controlado de uma substância psicoativa, regulado culturalmente. No artigo publicado em 1998, intitulado de “Santo Daime and Santa Maria - The licit ritual use of ayahuasca and the illicit use of Cannabis in a Brazilian Amazonian Religion International”, MacRae analisa o uso da maconha, que chegou a fazer parte dos rituais do Santo Daime (chamado de Santa Maria), mas que acabou sendo removida para garantir a regulamentação da religião.

Este pesquisador argumenta que a proibição legal de consumir a Cannabis, além de inviabilizar o seu consumo - que integraria a cosmologia daimista -, torna os controles internos do grupo mais fragilizados. Este caso é tomado como um exemplo de um argumento mais genérico de que talvez os controles culturais do consumo das substâncias psicoativas sejam mais eficazes do que os legais, geralmente externos e coercitivos (LABATE, 2002).

Outro problema da política proibicionista é que esta acaba por inibir o desenvolvimento e a transmissão dos controles sociais informais, tal como proposto por Zimberg, substituindo-o por um controle formal “baseado na proibição e repressão demasiadamente genérico e inflexível para dar conta das sutilezas da questão” (MACRAE, 1996, p. 8).

Outra consequência negativa da atual política repressiva é que esta impõe a clandestinidade ao uso e à distribuição de determinadas substâncias, dificultando muito o seu controle. Também torna difícil o acesso aos usuários por parte daqueles que visam realizar trabalhos de educação e saúde.

Além disso, essa política proporciona aos traficantes a possibilidade de auferirem lucros astronômicos que não seriam viáveis em uma atividade econômica oficialmente reconhecida e regulamentada. Por ser ilícita, a imensa quantidade de dinheiro movimentada pelo tráfico de drogas é necessariamente investida em outras atividades igualmente ilícitas, gerando mais recursos ilícitos, em um ciclo vicioso de crescimento constante (MACRAE, 1996).

Outra falha da atual estratégia de combate às drogas é que há uma ênfase exagerada na substância em si, dissociada dos complexos fatores psicossociais que atravessam toda questão

do uso problemático de psicoativos, que não deveria ser caracterizado apenas pela quantidade de substâncias e frequências de uso desta, características que atuam em um nível primário (físico-biológico).

Para uma política mais eficiente no controle da drogadição dever-se-ia levar em conta os aspectos não-farmacológicos envolvidos no uso problemático de psicoativos, que atuam em um nível secundário, a saber: as variáveis psicológicas (indivíduos, expectativas, motivações, preparação para o uso do psicoativo); as variáveis socioculturais (o indivíduo, sua comunidade e regras sociais); e ainda, as variáveis ambientais, tais como o local do uso da substância e a condução do processo.

Considerando a complexidade das questões envolvidas, concordamos com MacRae (1996, p. 09), ao afirmar que a elaboração da legislação referente ao uso de drogas, “assim como de qualquer programa que vise abordar a questão do uso de substâncias psicoativas precisa deixar os gabinetes de alguns poucos especialistas ou dos autonomeados „guardiões da saúde psíquica da nação‟”. Além disso, esta legislação deveria ser

(...) embasada em pesquisas científicas e consultas aos diversos setores populacionais envolvidos, incluindo, além de médicos, psicólogos, policiais e juristas, também membros dos Centros de Referência credenciados junto ao Ministério da Justiça para tratar da questão, representantes da juventude, dos habitantes de favelas ou bairros dominados por traficantes, artistas, agricultores, donos de casas de espetáculo, clubes ou escolas, minorias étnicas, usuários, seus amigos e familiares, entre outros. Somente assim será possível deixar de lado as atuais formas viciadas de pensamento e ação que se têm mostrado tão pouco eficazes na promoção de um verdadeiro controle do uso de substâncias psicoativas, para buscar soluções verdadeiramente inovadoras e com maior possibilidade de sucesso.