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O Cristianismo e a docilização dos corpos

Diagrama 4.8 – “ um caminho espiritual” (A ayahuasca é )

2.3 PSICOLOGIA E RELIGIÃO

2.3.1 A religião e o silenciamento dos corpos

2.3.1.1 O Cristianismo e a docilização dos corpos

Quando falamos do silenciamento dos corpos promovidos pelas religiões, sabemos exatamente qual é o aspecto da corporalidade que foi mais ostensivamente controlado: a sexualidade. O psiquiatra e ativista político Wilhelm Reich enxerga em algumas ideologias associados ao cristianismo um esforço para a desqualificação da sexualidade humana, na medida em que negariam a sexualidade de Jesus.

Muitos anos após ter sido expulso do movimento psicanalítico, Reich (1999) publica seu livro O Assassinato de Cristo, aonde evidencia todo o esforço realizado para se dessexualizar a pessoa de Jesus Cristo, frisando que não há nenhuma única referência sobre sua sexualidade nos textos sagrados. Mesmo com relação ao seu nascimento, teria sido operada convenientemente uma assepsia de qualquer vestígio de sexualidade, alegando-se que ele teria nascido de uma mãe virgem, realizando assim uma completa higienização sexual de suas origens. Como problematiza o autor:

De onde vem a lenda do nascimento virgem de Cristo, nunca mencionado por Jesus e nem mesmo por seus apóstolos nos quatro evangelhos? (...) A condenação da carne, tal como é feita pelo Catolicismo, apareceu mais tarde na história da igreja Cristã (...) A castidade estrita dos padres só é mencionada quatro séculos depois de Cristo. Cristo nunca falou em ascetismo, e nada do que sabemos dele nos quatro evangelhos nos autoriza a crer que tenha proclamado a abstenção da sexualidade para ele ou para seus discípulos (p. 130) (...) Praticando plenamente o amor, ele não poderia ser o asceta que nos é apresentado. (p. 131)

A supressão da sexualidade teria a função de tornar as pessoas mais dóceis e submissas à autoridade. Reich explicitou essa docilização dos corpos no conceito de encouraçamento muscular, uma espécie de camisa de força neuromuscular que sustentaria a castração psíquica, sendo instaurado justamente a partir do controle do comportamento sexual, com a função de tornar as pessoas submissas e mais facilmente manipuláveis. Reich (2004, p. 193), ao longo de sua experiência nos centros de orientação sexual percebeu claramente que

(...) a supressão da sexualidade das crianças e dos adolescentes tinha a função de tornar mais fácil para os pais insistir na obediência cega dos filhos. (...) A supressão sexual tem a função de tornar o homem dócil à autoridade exatamente com a castração dos garanhões e dos touros tem a função de produzir satisfeitos animais de carga.

Para Reich (1999), o cristianismo, mais do que desqualificar a sexualidade, traria embutido em si uma desqualificação da própria natureza humana, já que todo ser humano é, por natureza, um ser sexual. Este autor sustenta que Freud (1928, p. 68-69) teria se acumpliciado a esta ideologia, contribuindo fortemente para chancelar a visão cristã de que há algo de fundamentalmente errado com o ser humano, como podemos ver no seguinte trecho de seu livro O Mal estar na Civilização: “O mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo (...) é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem.”

Para Freud (1928, p. 70), “A agressividade não foi criada pela propriedade”. Ela faz parte da natureza humana e “não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão”, que me manifesta espontaneamente no homem, revelando-o “como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho” (p. 68).

Segundo Reich (1999), a partir dessa crença de que haveria algo de fundamentalmente errado com o ser humano, o homem teria passado a lutar contra sua própria humanidade, em uma ideologia do aperfeiçoamento, visando superar sua natureza animal. Este seria um dos motivos que teriam produzido uma profunda cisão no ser humano, colocando o ego em oposição ao corpo, em uma luta permanente, onde infelizmente só existem perdedores.

Talvez seja nessa luta entre o ego e o corpo que resida uma das raízes da dicotomia que a fenomenologia tanto denunciou. O ser humano teria passado a rejeitar o que seria parte de sua natureza selvagem, e nada mais selvagem no homem que seu próprio corpo!

Essa primazia do ego sobre o corpo teria influenciado, mais tarde, o desenvolvimento da própria ciência, que privilegiou a mente em detrimento do corpo, a cognição em detrimento da sensação, a razão em detrimento da emoção. Como descreveu Chauí (2004, p. 473), grande parte do desenvolvimento científico representou uma tentativa de “posse intelectual do mundo”. Para esta autora,

A tradição filosófica jamais conseguiu suportar que a experiência seja ato selvagem do querer e do poder, inerência de nosso ser ao mundo. Fugindo dela ou buscando domesticá-la, a filosofia sempre procurou refúgio no pensamento da experiência, isto é, representada pelo entendimento e, portanto, neutralizada (grifo nosso).

O desenvolvimento científico teria sido um esforço para domesticar a natureza selvagem do mundo, colocando tudo sob o controle dos cânones intelectuais. Seria como se o homem quisesse dominar o mundo natural, selvagem, colocando-se acima dele e controlando- o permanentemente. Percebe-se aí, novamente, resquícios da mesma ideologia que foi pontuada anteriormente, de que há algo de errado com o selvagem e, por isso, precisa ser domesticado e civilizado, cabendo ao homem este papel!

Como pano de fundo do desenvolvimento científico, parece ter estado sempre presente, como motivação básica, o desejo de superar e dominar a natureza selvagem do homem e do mundo. A ciência faria parte de um projeto de domínio completo das forças da natureza, bem ilustrado pelo lema de Francis Bacon “saber é poder”. O filósofo é tido

(...) como pai da ciência moderna e formulador de um método de pensar que se consagraria como o método científico. Foi quem estabeleceu o formato da relação do homem com a natureza que perdura até hoje, ao enunciar: saber é poder; o conhecimento (científico), o saber, é apenas um meio vigoroso e seguro de conquistar poder sobre a natureza. (AZEVEDO & VALENÇA, 2009, p. 6)

Como veremos no capítulo seguinte, Merleau-Ponty vai justamente resgatar a noção de corpo vivido, há tanto tempo menosprezado pela filosofia e pelas religiões, atribuindo a ele o “fundamento da nossa experiência no mundo, dimensão mesma do nosso ser” (RABELO & ALVES, 2004, p. 182). Como explicam Rabelo & Alves (2004, p. 181), encontramos em Merleau-Ponty uma verdadeira “filosofia da encarnação”, em contraposição a uma filosofia reflexiva, que operou “uma cisão entre o contato sensorial com o mundo e a interpretação cognitiva do mundo” (p. 192).

Nesse contexto, as religiões ayahuasqueiras parecem ir na contramão dessa tendência de silenciamento dos corpos apontada por Carrette (2000), mostrando-se muito adequadas à uma leitura Merleau-Pontyana, na medida em que são exemplos de uma manifestação religiosa profundamente encarnada, vivida visceralmente, do amargo do sabor ao âmago do ser (DESHAYES, 2004).

A ayahuasca parece resgatar a possibilidade perdida pelo homem ocidental, após séculos de um extravio da racionalidade, como apontou Husserl (2008a), de contato com a experiência direta, sem forjar refúgio na reflexão. De fato, nas entrevistas realizadas nesta pesquisa, notamos que a ayahuasca parece ter a função de retirar o indivíduo de seu refúgio

mental, atirando-o para sua realidade corporal e, desta forma, obrigando-o a sentir. Um exemplo disto pode ser encontrado relato de Beth, umas das entrevistadas nesta pesquisa:

E a ayahuasca pra mim é esse instrumento, que me ajuda a fazer a conexão com o meu corpo. (...) Então... sempre era tomar o vegetal e me levava pra onde? Não vai me levar pra fora, leva pro meu corpo. (...) aí vem o que tá no corpo que eu não queria sair da mente pra sentir.

Carla, outra pessoa entrevistada nessa pesquisa, sintetiza muito bem esta característica da ayahuasca: “Realmente você deixa a mente do lado de fora, o que você vai entrar é com o coração (...) é a religião do sentir”.