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2.3 Vigilância, Prevenção e Controle da Hanseníase

2.3.3 Controle da Hanseníase

A complexidade do controle da hanseníase deve-se não somente a aspectos biológicos da doença e à necessidade de integrar medidas de promoção da saúde à prevenção em um evento negligenciado (STOLK et al., 2016). Inclui o fato de se estar desenvolvendo ações dentro de contextos de grande desigualdade social, como aquele que ocorre na região Nordeste brasileira (NERI; SOARES, 2002; PNUD, 2013), o que traz a necessidade ainda maior de ações intersetoriais que abordem elementos relacionados à macroestrutura socioeconômica e cultural.

Seguindo o modelo da HND, optou-se por identificar medidas e ações para a hanseníase, a partir dos diferentes níveis de prevenção (WESTPHAL et al., 2006). As medidas de prevenção primária (período pré-patogênico) visam modificar as condições mais gerais de vida, de maneira a torná-la pouco propícia ao aparecimento do processo de adoecimento. São ações não dirigidas a problemas particularizados, cuja transformação ampliará proteção e melhoria da qualidade de vida da população, a exemplo do saneamento básico, escolaridade, nutrição, habitação e lazer. Ainda na prevenção primária, existem ações específicas que se relacionam com o segundo nível de proteção, constituindo-se em atividades específicas (WESTPHAL et al., 2006). A vacinação com BCG e a quimioprofilaxia para os contatos de pessoas com hanseníase são exemplos deste nível de prevenção (CUNHA et al., 2008; DUPPRE et al., 2008).

As medidas de prevenção secundária são desenvolvidas quando o processo patogênico foi deflagrado. Idealmente, as ações devem ser iniciadas no período pré-clínico (assintomático), no entanto, nem sempre isto é possível pela limitação de métodos complementares. Na hanseníase, a pesquisa de PGL1 em contatos tem sido avaliada como possibilidade para identificação de pessoas assintomáticas, com risco acrescido de desenvolvimento de doença (RAMOS JR. et al., 2014). Em não sendo possível, o esperado é que o diagnóstico aconteça tão logo os primeiros sinais e sintomas surjam.

O exame de contatos do caso-referência se constitui em medida de prevenção secundária prioritária (LOBO et al., 2011; TEMOTEO et al., 2013; LOCKWOOD et al., 2015). Já no nível quaternário, a perspectiva é prevenir a morte, incapacidades e recuperar mais

rapidamente do processo mórbido (WESTPHAL et al., 2006). Os episódios reacionais na hanseníase, por exemplo, necessitam ser rapidamente diagnosticados e adequadamente tratados, considerando o seu potencial de causar incapacidades e morte (BARBOSA et al., 2008; PIRES; OLIVEIRA; CARDOSO, 2015). Para a hanseníase e algumas outras doenças transmissíveis, no nível terciário, ao instituir o tratamento de forma oportuna, promove-se também a interrupção da dinâmica de transmissão (LASTÓRIA; MACHARELLI; PUTINATTI, 2003).

Na prevenção terciária, serão desenvolvidas medidas direcionadas para as possíveis consequências da doença, que são as incapacidades, limitações e deficiências, mas também as questões psicológicas e sociais, por exemplo. Neste caso, o objetivo é alcançar a recuperação total ou parcial e constitui o nível quinto de atuação (WESTPHAL et al., 2006). O diagnóstico tardio da hanseníase, frequentemente, causa incapacidades físicas, sobretudo em olhos, mãos e pés. Por este motivo, este elemento de reabilitação física, inclusive cirúrgica, é fundamental (ALENCAR et al., 2008; DECLERCQ, 2011; SALES et al., 2013). Ademais, por ser um evento muito associado à estigma e ao fato de acometer pessoas vulneráveis socialmente, a reabilitação psicossocial deve ser também priorizada (LUSLI et al., 2015).

Alguns autores vêm discutindo medidas de prevenção quaternária, bastante úteis para a realidade da hanseníase. Este quinto nível de prevenção visa detectar indivíduo em risco de sobretratamento ou sobrediagnóstico (ALMEIDA, 2005). Trata-se, portanto, de proteger de intervenções médicas inapropriadas, com prevenção de iatrogenias, resultante, por exemplo, da medicalização excessiva e de procedimentos terapêuticos ou diagnósticos desnecessários. Uma estratégia utilizada é o aconselhamento diagnóstico e terapêutico, participativo, para dar informações necessárias e suficientes para a tomada de decisão de forma consciente pelo indivíduo, sua família e comunidade. Uma questão adicional é que, no caso específico da hanseníase, muitas vezes existe o uso inadequado de corticoterapia, inclusive o mau uso da talidomida, fundamentais para o manejo de episódios reacionais (OLIVEIRA; BERMUDEZ; SOUZA, 1999), ampliando as consequências negativas para a pessoa acometida.

A utilização do modelo de prevenção primária, secundária e terciária, resultante das concepções de Leavell e Clark, é importante. Ele pode ser útil na reordenação dos diferentes serviços de saúde. No entanto, existem críticas a este modelo, considerando percepções mais ampliadas sobre o conceito de promoção da saúde, não como um nível da prevenção primária (Quadro 1), porém contemplando a dimensão histórico-conceitual do processo saúde-doença (WESTPHAL et al., 2006). Mesmo considerando as limitações deste referencial teórico- interpretativo, optou-se por construir um esquema que reunisse as principais ações propostas pelo programa de controle da hanseníase no Brasil, específicas para cada um dos diferentes

níveis de prevenção. Para tanto, utilizou-se como fonte de pesquisa guias técnicos, manuais, planos, portarias e diretrizes publicadas pelo MS, que foram sistematizados no Quadro 1, a seguir.

Quadro 1 – Ações para prevenção da hanseníase em diferentes níveis da história natural da doença

Nível Prevenção primária

Primeiro

Identificar determinantes fundamentais da qualidade de vida: trabalho/renda e consumos de bens e serviços

Identificar características genéticas, ambientais, socioeconômicas e culturais que interferem sobre a saúde

Identificar organizações governamentais e não governamentais na comunidade ou região cuja finalidade contribua para elevar a qualidade de vida - discutir preconceito e estigma associados à doença

Realizar ações educativas para famílias e comunidade - orientar sobre a doença no sentido de promover educação em saúde

Promover a mobilização social, em parceira com Agentes Comunitários de Saúde (ACS) em torno das demandas e necessidades em saúde das pessoas e suas famílias

Segundo

Realizar anamnese dirigida e exame dermatoneurológico anual de contatos intradomiciliares por pelo menos cinco anos

Realizar anamnese dirigida e exame dermatoneurológico dos contatos/coabitantes sociais a depender do grau de convívio com o caso-referência

Avaliar e orientar os contatos intradomiciliares e soaicias em relação à vacina BCG Administrar a vacina BCG no contato, caso não haja suspeita de hanseníase, seguindo as normativas do MS

Orientar a trazer outros contatos/coabitantes para exame

Realizar detecção pró-ativa – busca ativa na comunidade de contatos/ coabitantes e grupos específicos de maior vulnerabilidade para doenças negligenciadas para proteção específica com BCG

Orientar a comunidade para que procurem os serviços de saúde sempre que apresentar sinais e sintomas da doença

Realizar campanhas de mobilização junto à comunidade

Realizar ações de detecção passiva – acolhimento e acesso à demanda espontânea e aos usuários encaminhados de outros serviços como suspeitas para exames Nível Prevenção secundária

Terceiro

Realizar o exame dermatoneurológico para diagnóstico oportuno de casos suspeitos ou contatos

Realizar baciloscopia quando disponível para complementação diagnóstica Em casos específicos, realizar exames complementares (baciloscopia e histologia) Concluir o caso, segundo critérios da vigilância epidemiológica

Iniciar tratamento imediato e segundo protocolo para casos PB ou MB

Realizar avaliação do GIF no início, durante, após o término do tratamento com PQT bem como após a alta – empreender ações de prevenção de incapacidades

Mediante GIF 1 ou 2, fortalecer ações de prevenção de incapacidades e reabilitação inicial

Avaliar restrição à participação social e limitação de atividades

Promover o autocuidado dos olhos, nariz, mãos, pés e outras áreas afetadas Promover o autocuidado da pele

Orientar sobre episódio reacional e condutas a serem tomadas

Diferenciar tipos de reação hansênica e instituir tratamento racional imediato Administrar doses supervisionadas e orientar sobre as doses auto administradas Orientar sobre efeitos adversos da PQT

Orientar sobre os usos e efeitos adversos da corticoterapia Orientar sobre o uso e efeitos adversos da talidomida

Conduzir o uso de talidomida em mulheres dentro do protocolo padrão do MS Diagnosticar e prevenir co-morbidades

Nível Prevenção terciária

Quarto

Promover reabilitação física, em diferentes níveis de intervenção (fisioterapia, cirurgias, etc.)

Dispor de órtese e próteses

Dispor e orientar sobre mecanismos simples de autocuidado: calcados adaptados, férulas, adaptações de instrumentos de trabalho etc.

Nível Prevenção quaternária

Quinto

Instituir farmacovigilância mediante o uso de talidomida, corticoides e outros fármacos coadjuvantes

Indicar de forma racional e baseada em evidências a utilização de métodos complementares, invasivos ou não

Prevenir o uso inadequado de medicamentos, prevenindo polifarmácia e efeitos adversos

Promover educação em saúde para indivíduos e familiares para participarem das decisões relacionadas a sua saúde – empoderamento

Fonte: Elaborado pela Autora.

O Quadro 1 traz elementos que demonstram que os modelos e arranjos direcionados à prevenção de doenças pouco alcançam questões mais abrangentes, relacionadas a mudanças sociais mais profundas (CZERESNIA, 2003), essenciais inclusive para o controle de outros eventos negligenciados. Embora, no item de promoção da saúde, incluam-se elementos importantes, na prática do dia-dia dos serviços de saúde, pouco verifica a incorporação destas dimensões ao processo de trabalho, inclusive da atenção primária, espaço prioritário para promoção da saúde e mudança do modelo de vigilância (TEIXEIRA; PAIM; VILASBÔAS, 2000; PAIM, 2008).

O não alcance de todas as dimensões de prevenção da hanseníase resulta da não incorporação pelos serviços de saúde de práticas mais amplas, humanizadas e pautadas em comunicação dialógica, com vistas ao alcance dos determinantes sociais de saúde. Esta perspectiva, caso alcançada, permitiria a formulação de políticas públicas mais saudáveis e intersetoriais, englobando aspectos econômicos, políticos, educacionais, ambientais e culturais (ITURRI, 2013). Por outro lado, também não estimulam, nas coletividades, um protagonismo maior, com empoderamento para as conquistas necessárias (WESTPHAL et al., 2006). Não assumem, portanto, uma prática política de base emancipatória (FRANCO; BUENO; MERHY, 1999) necessária para romper com as diferentes dimensões de vulnerabilidade no contexto da hanseníase.