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2.2 Epidemiologia da Hanseníase

2.2.3 Risco & Vulnerabilidade

2.2.3.2 Vulnerabilidade

O conceito de vulnerabilidade surgiu fundamentado na área dos direitos humanos. Tal concepção foi incorporada na área da saúde por meio dos estudos sobre a aids (síndrome da imunodeficiência adquirida), desenvolvidos por Jonathan Mann na Universidade de Harvard, a partir dos anos 1980 (TAKAHASHI; OLIVEIRA, 2001).

Já no início da década de 1990, em consequência dos equívocos cometidos ao incorporar, nas práticas de prevenção da aids, a concepção de “grupo de risco” e, posteriormente, de “comportamento de risco”, surgiram novas formas de melhor compreender a dinâmica de transmissão desta doença e propor intervenções amplas que de fato obtivessem

efeitos positivos no avanço desta epidemia (AYRES et al., 2003). Neste cenário, a noção de vulnerabilidade apareceu como possibilidade para discutir que as chances de um indivíduo adoecer não são só resultantes de um conjunto de aspectos individuais, mas também coletivos e contextuais, que acarretam maior susceptibilidade ao adoecimento (AYRES et al., 2006).

Mann e colaboradores (1993) foram os primeiros estudiosos a utilizarem esse conceito e a formularem indicadores para avaliação do nível de vulnerabilidade à infecção pelo HIV (vírus da imunodeficiência humana). Para tanto, estruturaram a vulnerabilidade de maneira individual ou coletiva, considerando três planos interdependentes de determinação (dimensões): o individual, o social e o programático (TAKAHASHI; OLIVEIRA, 2001; ROCHA, 2016).

A dimensão individual traduz aspectos próprios, relacionados ao modo de vida das pessoas que possam contribuir para exposição ou proteção a uma determinada situação do processo saúde-doença. Diz respeito, por exemplo, ao grau e à qualidade da informação que a pessoa dispõe, mas também à capacidade de elaborar essas informações e de incorporá-las às suas reflexões, e por fim, ao desejo e às possibilidades efetivas de transformar essas preocupações em práticas efetivas de prevenção (AYRES et al., 2006; ROCHA, 2016).

Ao compreender os processos saúde-doença como demandas sociais, esta dimensão da vulnerabilidade remete-se a fatores contextuais, os quais relacionam-se a aspectos materiais, culturais, políticos, morais, entre outros. Portanto, dizem respeito à vida em sociedade, a qual, interfere dialeticamente no modo de vida de cada indivíduo e da coletividade. Neste aspecto, relações de gênero, raciais, entre gerações, de crenças religiosas, de pobreza etc. possibilitam compreender os comportamentos e práticas que se relacionam à maior exposição ou proteção dos indivíduos à saúde e/ou à doença (AYRES et al., 2003; AYRES et al., 2006). Portanto, são aspectos que devem ser incorporados às analise de vulnerabilidade, de forma especial quando se consideram as doenças negligenciadas.

A terceira dimensão de vulnerabilidade é a programática. Considerando que as instituições permeiam a vida em sociedade, oferecendo recursos sociais que as pessoas necessitam, elas devem estar disponíveis de forma efetiva e democrática. Portanto, é essencial que existam esforços programáticos nesta direção (TAKAHASHI; OLIVEIRA, 2001; AYRES et al., 2006). Os mesmos autores afirmam que é importante compreender o quanto estas intuições reproduzem, quando não mesmo aprofundam, as condições socialmente dadas de vulnerabilidade. Seguindo este entendimento, os autores questionam:

O quanto os nossos serviços de saúde, educação etc. estão propiciando que estes contextos desfavoráveis sejam percebidos e superados por indivíduos e grupos sociais? O quanto eles propiciam a esses sujeitos transformar suas relações, valores, interesses para emancipar-se dessas situações de vulnerabilidade? (AYRES et al, 2006, p. 397).

Da mesma forma, afirmam que elementos como o grau e a qualidade do compromisso dos serviços e programas, os recursos que dispõem, os valores e competências de sua gerência técnica, o monitoramento, avaliação e retroalimentação das ações, a sustentabilidade das propostas e, especialmente, sua permeabilidade e estímulo à participação e autonomia dos diversos sujeitos sociais na avaliação de saídas a fim de encontrar caminhos para sua superação (TAKAHASHI; OLIVEIRA, 2001; AYRES et al., 2006).

Estas três dimensões de vulnerabilidade possibilitam compor um quadro conceitual de forma a sistematizar as dimensões sociais do processo saúde-doença discutido há tempos. Da mesma forma, não há intenção de estabelecer finitude às análises de risco, considerando a sua grande importância no reconhecimento de fatores associados à ocorrência e distribuição do evento no tempo e espaço. No entanto, a análise de vulnerabilidade privilegia a construção de significados, a agregação de elementos diversos que contribuem para que os fenômenos em estudo sejam compreendidos como uma totalidade dinâmica e complexa (AYRES, 2002; AYRES et al., 2003; AYRES et al., 2006; AYRES, 2011).

No estudo da hanseníase como evento que persiste ainda hoje, ao pretender que a análise ocorra a partir da concepção de risco, mas também de vulnerabilidade, torna-se essencial incluir a co-presença, a mutualidade, a interferência, a relatividade e a inconsistência (AYRES et al., 2003). As análises de associação probabilística demandam comparar variáveis as mais independentes entre si para a composição dos riscos. Já as categorias de intervenção, na perspectiva da vulnerabilidade, precisam incorporar de forma mais incisiva as mútuas interferências, captando os diversos fatores envolvidos. Assim, existe uma diferença no caráter eminentemente analítico do risco, em contraste com as aspirações sintéticas de vulnerabilidade (AYRES et al., 2006).

Outra diferença da análise de risco é o caráter não probabilístico da vulnerabilidade, uma vez que busca identificar situações de suscetibilidade a um agravo. A vulnerabilidade quer expressar, portanto, os potenciais de adoecimento e/ou de não adoecimento relacionados a todo e cada indivíduo que vive em um certo conjunto de condições. Nesta perspectiva, Ayres et al. (2006) afirmam:

Plausibilidade construída com base na consistência lógica, na coerência empírica e na evidência prática de uma certa relação parte-todo, nem sempre demonstráveis em termos probabilísticos, mas sempre passíveis de contra argumentação lógica, empírica e prática (AYRES, 2006, p. 129).

Ao discutir promoção da saúde a partir do deslocamento do olhar do risco para vulnerabilidade, potencializa-se o alcance dos princípios de promoção da saúde, e se impulsiona o modelo de atenção, pautado nas concepções de vigilância à saúde. Esta mudança transfere o eixo de atuação para respostas sociais de forma mais ampla. Inclusive, identificando o próprio indivíduo e comunidade como os propulsores para as mudanças que se façam necessárias (AYRES et al., 2003). Devem ser instigados para além do cuidado com a sua saúde, à consciência da necessidade de romper com os contextos de vulnerabilidade, superar os obstáculos materiais, culturais e políticos (WESTPHAL et al., 2006). O enfoque na educação em saúde, neste sentido, supera modelos baseados em paradigmas comportamentalistas e de reprodução de relações de poder, tornando-se centrais para concretização de espaços de educação para autonomia, com co-responsabilização (MACHADO et al., 2007). Portanto, mais uma vez reafirma-se que trata de um processo intersetorial, e não exclusivo do setor saúde.

Outra questão é a necessidade de considerar características da vulnerabilidade como conceito, sob pena de importantes prejuízos éticos. Autores, a exemplo de Gorovits (1994), discutem três qualidades indissociáveis. A primeira diz respeito ao fato da vulnerabilidade não ser binária, ela é multidimensional, ou seja, em uma mesma situação se está vulnerável a alguns agravos e não a outros. A segunda qualidade se relaciona ao fato da vulnerabilidade não ser unitária, há sempre gradações diferentes. Por fim, a última qualidade faz referência ao fato de não ser estável, já que muda constantemente (GONÇALVES BRITO et al., 2016). Desta forma, as pessoas “não são vulneráveis”, potencialmente estão vulneráveis sempre a algo, em algum grau e forma, e em um certo ponto do espaço (AYRES et al., 2006) incluindo outra dimensão, que é o caráter relacional de qualquer situação de vulnerabilidade. Aqueles que estão nos polos menos vulneráveis também são partícipes.

Também deve ser considerado que a adoção do enfoque da vulnerabilidade poderá gerar alguns elementos a serem superados, a exemplo de continuar promovendo a discriminação dos grupos mais afetados, agora não mais pelo estigma, mas pela sua vitimização e correlativa tutela. Além disso, há a possibilidade de existir um efeito paralisante, resultante da percepção de amplitude e complexidade da apreensão e transformação das situações de vulnerabilidade (AYRES et al., 2003). No primeiro caso, alguns fatores podem ampliar ainda mais esta possibilidade de “vitimização” das pessoas afetadas pela hanseníase, uma vez que, durante

muito tempo, elas foram submetidas a isolamento compulsório em colônias, infringindo gravemente direitos humanos e sociais. Ademais, o fato de ser um evento negligenciado fortalece ainda mais a percepção de exclusão social. Quanto ao possível efeito paralisante, é algo possível, uma vez que o controle da hanseníase perpassa a necessidade de romper com relações e situações de desigualdades sociais. Estas questões devem ocupar espaços nas discussões sobre vulnerabilidade também para outras doenças negligenciadas e estigmatizantes. A incorporação do conceito de vulnerabilidade na área da saúde se configura em uma “alternativa analítica e como abertura promissora frente à indiscutida hegemonia alcançada pelo conceito de risco, originário da abordagem epidemiológica” (MALAGÓN-OVIEDO; CZERESNIA, 2015). Segundo os mesmos autores, tal abertura tem possibilitado a discussão da vulnerabilidade enquanto modelo teórico conceitual, permitindo sua reflexão e prática.