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2.2 Epidemiologia da Hanseníase

2.2.4 Espaço e Hanseníase

A maior incorporação da categoria espaço em epidemiologia, os avanços científicos (equipamentos, programas, softwares, bases de dados, etc.) e a crescente interface de novos saberes à abordagem em epidemiologia (como por exemplo a geografia) vem ampliando a utilização e a qualidade de estudos de análise espacial em saúde.

Diferentes procedimentos utilizados, a exemplo das técnicas de geoprocessamento, geoestatística, análise de dados em treliça e de padrões pontuais, permitem identificar padrões espaciais de morbidade e/ou de mortalidade, bem como fatores associados a estes padrões, à sua difusão e à etiologia das doenças (MEDRONHO; PEREZ, 2002). Os resultados de estudos desta natureza podem balizar intervenções que permitam a sua predição e controle. Fortalece-se, assim, a necessidade de a epidemiologia refletir sobre a categoria de espaço enquanto relação social e, assim, permitir pensar a doença enquanto processo de mudança da estrutura espacial e não meramente descrevê-la (FARIA; BORTOLOZZI, 2009; RAMOS JR. et al., 2015).

A distribuição espacial das doenças pode ser descrita e analisada, usando-se Sistemas de Informação Geográfica (SIG) pela sua capacidade de agrupar grande quantidade de dados e sua respectiva localização. O SIG é mais do que o mapeamento de doenças: ele gerencia, analisa e apresenta dados que são ligados à localização geográfica, permitindo criar mapas e apresentar dados relacionados ao nível nacional, mas também a nível de territórios menores e núcleos familiares (SOUZA; DIAS; NOBRE, 2005). Desta forma, a combinação das categoriais pessoa, tempo e espaço faz do SIG uma poderosa ferramenta epidemiológica para

apoio à prevenção e ao controle de doenças (SABROZA et al., 1992). Trata-se de instrumento eficaz para gerenciamento dos programas de controle da hanseníase, sendo recomendada sua utilização em todos os países endêmicos (WHO, 2016).

Como a ocorrência no espaço de algumas doenças transmissíveis, incluindo a hanseníase não acontece de forma homogênea, inúmeros estudos têm buscado analisar padrões de distribuição, assim como tentam compreender os fatores relacionados ao seu padrão espacial (SANTOS et al., 2010; QUEIROZ et al., 2010; ALENCAR et al., 2012; DUARTE-CUNHA et al., 2012). No entanto, as construções teóricas relacionadas ao conceito de espaço podem influenciar a maior ou menor amplitude das análises e, consequentemente, da contribuição para o controle dessa endemia.

2.2.4.1 Espaço como Categoria Analítica em Epidemiologia

As análises da ocorrência, distribuição de doenças e de seus determinantes nas populações, no espaço e no tempo são aspectos basilares na epidemiologia. Estudos desta natureza, possibilitam responder questões a respeito de quem adoece (aspectos sociodemográficos, dentre outros), onde (verificar a ocorrência de padrão espacial), quando (período e velocidade) e quais os fatores associados aos padrões identificados (MEDRONHO; PEREZ, 2002). Os conhecimentos produzidos devem gerar evidências essenciais para o processo de avaliação, monitoramento e planejamento em saúde (TEIXEIRA, 2010; SOUZA et al., 2003). Portanto, a epidemiologia fundamenta-se no campo da saúde coletiva como área de conhecimento essencial para balizar práticas que promovam a superação de riscos e das diferentes dimensões de vulnerabilidade, elegendo inclusive espaços/populações prioritárias para atuação.

Dada à importância, estudos epidemiológicos que têm o espaço como elemento principal são antigos, a exemplo de uma das obras de Hipócrates, escrita no século V a.C, “Dos ares, dos mares e dos lugares”, que aborda as interferências do ambiente no adoecimento das

pessoas. Da mesma forma, no século XIX, o clássico estudo de John Snow utilizou técnicas de mapeamento para analisar a epidemia da cólera ocorrida em 1854, em Londres. Ele demonstrou associação espacial entre morte por cólera e suprimento de água por diferentes bombas públicas de abastecimento (MEDRONHO; PEREZ, 2002).

Desde então, são muitos os estudos epidemiológicos que têm o espaço como categoria de análise. No entanto, as concepções teóricas, em torno do seu conceito, podem

restringir ou ampliar a sua colaboração na compreensão da dinâmica relação existente entre o espaço e o ser humano que interferem diretamente no processo saúde-doença.

Na década de 1930, o parasitologista russo Pavlovsky desenvolveu ideias referentes aos fatores naturais da doença. Em sua teoria ecológica, uma vez modificados os espaços naturais onde circulam os agentes infecciosos, surgem focos naturais da doença. O espaço, na sua conceituação, é apenas um substrato que exerce sua influência por meio de fenômenos naturais (SILVA, 1997). Durante algum tempo, esta percepção foi incorporada pela epidemiologia como principal modelo explicativo para as doenças.

Com rápidas e profundas transformações ocorridas após a II Guerra Mundial, foram buscados outros conceitos teóricos para lidar com a nova realidade social de urbanização, de êxodo rural e de espaços moldados pela nova dinâmica social estabelecida. Neste contexto, surge a geografia médica, para tentar explicar as mudanças no cenário epidemiológico. Com forte interferência de concepções marxistas, inseriu a discussão de ideias que tenderam a relegar a um segundo plano as análises das transformações sofridas pelo meio, base da ecologia das enfermidades defendida por Pavlovsky (SILVA, 1997).

No Brasil, Samuel Pessoa, inicialmente influenciado pelas concepções de Pavlovsky, avança nas suas percepções e passa a ocupar lugar de destaque nas discussões sobre geografia médica. Este autor discute a distribuição e a prevalência das doenças, bem como todas as modificações que nelas possam advir por influência dos mais variados fatores geográficos e humanos (VIEITES, 2014). Assim, a percepção de espaço geográfico passou a incorporar determinantes naturais e sociais, em uma visão de totalidade. Neste contexto, o livro Ensaio de uma geografia geral médico-prática de Leonardo Ludwing Fink (1972) é considerado um marco da geografia médica, por fazer uma vinculação entre áreas endêmicas de doenças com determinadas características culturais, raciais e climáticas.

Na década de 1980, destacam-se no cenário brasileiro a atuação e reflexões de Luiz Jacintho da Silva sobre a ótica da epidemiologia social (VIEITES, 2014). Para ele, é por meio da categoria espaço geográfico que a epidemiologia pode ultrapassar uma visão histórica do processo biológico e simultaneamente entender os condicionantes econômicos, sociais, políticos e culturais responsáveis pela origem das endemias e epidemias; portanto, parte da concepção de incorporação dos determinantes naturais e sociais no conceito de espaço geográfico (SILVA, 1997). Influenciado por outro pesquisador e geógrafo brasileiro, Milton Santos, ele promove uma reformulação do ponto de vista que sai da relação homem-meio e recai no âmbito das ciências econômicas e sociais. Passa-se a tentar compreender o fenômeno biológico dentro dos processos sociais, espaciais e temporais. Por meio do conceito de espaço

socialmente organizado, de inspiração marxista, incorporam-se elementos para uma compreensão mais ampla do processo de adoecer (VIEITES, 2014).

Assim, as mudanças decorrentes originárias da geografia marxista foram a transição de uma perspectiva de deixar de ser central nas análises o ser humano e/na sociedade para a interação sociedade-natureza. Existe um deslocamento do “olhar” sobre uma coletividade em si, para o processo de interação desta com a natureza e a maneira como o meio é transformado, organizado para sustentar a atividade econômica. Agrega-se, desta forma, uma perspectiva histórica da doença, fundamental para maior compreensão do processo saúde-doença de maneira dinâmica (CZERESNIA; RIBEIRO, 2000).

Embora Milton Santos, autor com grandes contribuições na discussão da geografia social, não tenha discutido a temática específica da geografia da saúde, suas reflexões sobre o conceito de espaço e território influenciaram muito a compreensão de Silva (1997) do processo e produto das relações sociais, que se realizam enquanto uma instância social. Cada vez mais, a geografia social de Milton Santos tem servido de base para auxílio na superação das dificuldades das ciências epidemiológica, para a compreensão do processo saúde-doença, principalmente no contexto atual de profundas mudanças sociais. Este contexto é marcado principalmente por perfil epidemiológico diverso, processo de urbanização e intensificação das relações sociais, com novas possibilidades endêmicas causadas pelo processo de globalização, surgimento de novas doenças e o reaparecimento de doenças potencialmente controladas, além de impactos ambientais e sua relação com a saúde, dentre outros (FARIA; BORTOLOZZI, 2009). Neste cenário, estudos utilizando o espaço como categoria analítica, relacionados a doenças transmissíveis persistentes, a exemplo da hanseníase, têm sido cada vez mais utilizados.

2.2.4.2 Padrões Espaciais da Hanseníase

Diante do desenvolvimento de novas ferramentas tecnológicas e computacionais, as técnicas espaciais têm permitido avanços significativos na ciência, a partir de análises desde níveis globais, até a níveis regional e local, considerando por exemplo, a residência dos casos de hanseníase e sua vizinhança (MEDRONHO; PEREZ, 2002; ALENCAR el al., 2012b).

Análises dessa natureza têm grande importância para reconhecer a dinâmica de transmissão, a exemplo de estudo ecológico realizado em uma unidade de saúde de Cárceres (MT), em que as residências de indivíduos diagnosticados com hanseníase e domicílios vizinhos, configuraram-se como as principais áreas de risco para a ocorrência de casos novos

(GARCIA et al., 2013). Em outro estudo, a análise espacial mostrou agrupamento (clusters) de casos recentemente diagnosticados, bem como associação com coordenadas residenciais de casos MB previamente diagnosticados (MOURA et al., 2013). Por sua vez, outro estudo evidenciou maior risco entre contados domiciliares e vizinhanças (NICCHIO et al., 2016).

Estudo ecológico, referente a casos de hanseníase ocorridos de 2009 a 2011 e que teve como unidade de análise os municípios brasileiros, revelou que os mais altos coeficientes da doença estavam associados àqueles municípios com os mais baixos níveis socioeconômicos (FREITAS; DUARTE; GARCIA, 2014). Ainda na perspectiva de análise de base municipal, agora na região Centro-Norte do Brasil, verificou-se a existência de um fluxo de pessoas afetadas pela hanseníase do seu município para outros, em busca de diagnóstico e tratamento, revelando lacunas assistenciais importantes (ALENCAR et al., 2012b). Análise no Estado do Ceará identificou padrões heterogêneos entre os municípios, verificando áreas de cluster vinculadas à desigualdade social, mas também a questões ambientais (FREITAS; DUARTE; GARCIA, 2014), da mesma forma que em outros estados brasileiros (RODRIGUES- JÚNIOR; MOTTI, 2008; IMBIRIBA et al., 2009). Importante fazer referência a estudo feito na Amazônia que discute a migração como aspecto importante na distribuição de casos no território (PENNA; OLIVEIRA; PENNA, 2009).

O caráter de expressão focal da hanseníase no território brasileiro, em áreas com diferentes graus de endemicidade, tem sido alvo de grande parte dos estudos. Os fatores sociais e econômicos estão entre aqueles mais fortemente associados à explicação desta distribuição espacial tão diversa no Brasil (LOCKWOOD, 2004; PENNA et al., 2008; LANA et al., 2009; CURY et al., 2012; ALENCAR el al., 2012b; SOUZA; RODRIGUES, 2015). Verifica-se, portanto, que os estudos com abordagem espacial, além de descreverem a distribuição dos casos de hanseníase, têm buscado compreender os fatores associados a estes padrões. Para tanto, são utilizados indicadores epidemiológicos, operacionais e socioeconômicos, estes últimos relacionados principalmente a condições de desigualdade social, fortemente implicados na endemicidade da hanseníase.