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5.7 A troca: Mala-Expositor, itinerância na Praça José Jerônimo e no centro da

5.7.3 Conversa entre malas

Na arte, pode-se identificar a aproximação entre as malas e maletas com uma produção artística específica, constituindo ou não uma obra de arte em si. Marcel Duchamp, em 1941, criou sua obra “Boîte em Valise”, uma caixa que se abre e revela aos poucos reproduções do seu trabalho em uma escala menor. Além de ajudar a entender sua obra, que está disposta de acordo com a organização do artista, “Boîte em Valise” faz

com que ela se torne acessível às pessoas, uma vez que sua natureza de obra e reprodução se confundem. Sobre a obra, Panek (2001) comenta:

A Boîte en Valise contém as reproduções de quase toda a obra de Duchamp, que o artista foi executando pouco a pouco, durante o período de 1935 a 1941, chegando a um álbum que tomou a forma de uma caixa que se abre em diferentes etapas, revelando progressivamente seu conteúdo em uma série de distintos mostradores. Tratava-se de uma caixa desmontável, revestida de couro, com as dimensões de 40x40x10 cm, contendo a reprodução fiel em cores, recortes, estampas ou objetos reduzidos de vidro, pintura, aquarelas, desenhos e ready-made. O conjunto – 69 itens – representava a obra quase completa de Marcel Duchamp, produzida entre 1910 e 1937. (PANEK, 2005, p. 5)

Assim como a “Boîte em Valise” guardava as reproduções das obras de Duchamp, a mala-expositor foi utilizada para guardar as cópias dos zines que fizemos no Grupo de Criação e Artes. Na etapa de produção dos zines, como afirma Magalhães (1993), a impressão é parte do processo que origina uma obra em si, que, por sua vez, vem a partir da reprodução de uma matriz originária, ou seja, da multiplicação que se dá com a produção de cópias. Isso é uma das características do zine como obra. Portanto, a multiplicação surge como uma característica, e o seu feitio artesanal torna cada zine único, levando-se em conta as pequenas diferenças entre uma cópia e outra que surgem durante o refilamento dos cantos e disposição dos grampos. Tanto as reproduções de Duchamp como o processo de criação dos zines problematizam as ideias de autoria, como também de obra única.

Figura 137 — "Boîte en Valise", Marcel Duchamp (1938)

Fonte: https://www.cincinnatiartmuseum.org/art/exhibitions/exhibition-archive/2018- exhibtions/duchamp/.

A mala-expositor, como lugar-objeto, acaba vinculada aos zines por ser um lugar onde eles podem ser guardados, carregados ou transformados em objeto disparador da troca. Mala e zines acabam se ligando como obras pelo seu percurso em comum, por virem juntos durante ação na rua. Assim como Duchamp, outros artistas utilizaram as malas/caixas/maletas em seu processo, algo semelhante a uma experiência que foi realizada pelo grupo Fluxos. Neste caso, a obra, constituída por caixas feitas por George Maciunas, carregava material original e constituía um espaço experimental de exposição. As publicações do grupo, de modo amplo, podem ser entendidas como uma contestação ao mercado da arte.

Essas caixas Fluxos, são o espaço de exposição experimental das obras de seus artistas, tal como a caixa ou a maleta de Duchamp: se os últimos apresentavam documentações ou reproduções de suas obras, os artistas de Fluxos utilizavam- se de originais (materiais retirados do cotidiano). (PANEK, 2005, p. 5)

Figura 138 — "Caixas Fluxus", Fluxus

Fonte: https://multiplosdearte.wordpress.com/2011/08/06/historia-do-grupo-fluxus/.

A discussão em torno das obras acima citadas, tanto o trabalho de Duchamp, como do Grupo Fluxos, inserem-nos numa reflexão mais ampla sobre o livro de artista. Este torna- se diferente do livro comum, segundo Derdyk (2013), e sua caracterização aponta para o fato de “ser um livro livre, antes e depois de tudo” (2013, p. 11). Ainda sobre a diferença do livro de artista em relação aos livros comuns:

(...) o que os diferencia entre si, substancialmente, é que os livros, em geral, cumprem a sal vocação ou destino de serem livros “funcionais”, isto é, livros que abrigam conteúdos independentemente de seu suporte, mesmo que tenham sido concebidos de modo cauteloso e sensível – seja pelos artesões, escribas e designers de todas as épocas” (DERDYK, 2013, p. 11-12)

Fazendo o livro de artista parte de um contexto de produção híbrido, é possível traçar linhas de aproximação entre as obras "Boîte en Valise", de Marcel Duchamp (1938), “Caixas Fluxus”, do Grupo Fluxus, e a própria mala-expositor. Esta, que não se origina de uma reflexão sobre os livros de artista, nem um dia foi chamada assim, acaba encontrando regiões fronteiriças neste novo território pelo que acabou vindo a ser e pela maneira como acabou vindo a ser utilizada.

Ela deixa de ser apenas um guardadouro, um lugar-objeto, quando recebe a escrita e a intervenção das pessoas que passavam pela Praça do Seminário. A mala-expositor passa a ser diferente de outras malas, por trazer os vestígios distintivos por meio de escrituras que nela são feitas a partir da interação e troca. Tendo viajado tanto e tendo sido aberta em tantos lugares diferentes, seus caminhos não se encerraram nessa ação. Todas as vezes em que ela for aberta e uma troca de zines for efetuada, ela muda em relação ao que era, recebe novas marcas, desenhos e escrituras que são os indícios dos lugares por onde ela passou e da experiência das pessoas que nela decidiram fazer um registro.

Portanto, a mala-expositor não é um zine, mas está imbricada em um processo de criação que parte deles. Os zines estão por trás da intenção com que se desloca a mala de um lugar para o outro, são eles que compõem o seu interior e são as trocas que a transformam, pouco a pouco. Sendo itinerante, a mala aguarda pelos lugares onde será aberta doravante. O que se espera é que as escritas se acumulem e por meio delas os espaços da itinerância venham à tona, misturados, sobrepostos, justapostos, onde se destaquem diferentes caligrafias, traços, cores, e sobrevenha da mala o seu preenchimento com as diferentes escrituras oriundas da troca.