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Conversas sobre a perspectiva nietzschiana da degradação dos

O mal do século é um mal de pessoas desenraizadas ou ociosas. Desde o século XV, que o homem ocidental escorrega continuamente por esse caminho. Todos os valores foram arrastados para o teatro sofisticado de Narciso.

Emmanuel Mounier, 1974

Nos dois subitens que se seguem, vou apresentar perspectivas diferentes sobre as possíveis causas da degradação dos valores instituídos em nossa sociedade. Minha intenção é provocar questionamentos e reflexões sobre os valores que regem nossa vida. Concordando ou não com essas possíveis causas, meu maior desejo consiste em promover uma reflexão sobre a situação atual dos valores em nossa sociedade e sobre a necessidade de mudança.

A perspectiva de Nietzsche com relação aos valores difere da abordagem dos demais autores com os quais dialoguei até aqui. Como pretendo compreender a força que os valores exercem sobre a estrutura do comportamento e das escolhas humanas, procurei investigar e promover um encontro de diferentes considerações com a intenção de, a partir das tensões geradas pelos antagonismos, tentar perceber, primeiro, em mim mesmo as raízes das confusões possivelmente geradas pela discrepância entre valores ensinados e praticados pelas instituições sociais, religiosas e políticas.

Como nossa sensibilidade não tem sido suficientemente aguçada para abarcar as causas e consequências dos nossos conflitos psicológicos e emocionais, muitas vezes entramos no caos e não conseguimos sair porque não compreendemos e não aceitamos as polaridades, as contradições em nós. Assim, penso que a abertura intelectual e sensível para o encontro com perspectivas opostas possibilita a compreensão de que tanto nós quanto as nossas obras são permeadas por coerências e incoerências. Esse entendimento pode nos ajudar a compreender e a aprender a lidar com os conflitos e os limites humanos.

Na intenção de tecer uma compreensão ampla sobre os valores, necessitei investigar tanto os vieses que nos trazem os fios das virtudes quanto os que podem ter levado os seres humanos a criar e superdimensionar outros valores não tão virtuosos. Assim,inspirei-me em diferentes ideias para prosseguir na minhatrajetória de, por veios antagônicos, compor uma tessitura multirreferencial sobre a temática dos valores.

Nietzsche (1984, 2005) faz uma crítica ferrenha à forma como a Igreja católica criou valores como piedade, resignação e salvação pelo sofrimento, entre outros, para enfraquecer o ser humano e distanciá-lo de sua vontade de potência. Segundo ele, essa questão começa com a diferença entre a moral dos senhores e a moral dos escravos.

A moral dos senhores ou dos nobres considera como „bem e bom‟ o que lhes é próprio ou como ato de afirmação de si mesmo (eles são felizes, bons, belos). Isto é, os nobres reconhecem e usam a sua força de poder, gostam da vida e a afirmam “o homem nobre vive diante de si mesmo com confiança e abertura” (NIETZSCHE, 2005, p. 344). Para a moral dos senhores, o mal consiste em tudo o que no homem lhes é oposto, por exemplo, a submissão e a fraqueza. Esses estados, que se encontrariam nos escravos e nos plebeus, os nobres desconhecem e procuram manter-se afastados já que são dignos de lástima.

Já a moral dos escravos surge não da afirmação da vida e da própria força interior do ser humano, mas do ressentimento com relação aos nobres. Essa moral foi construída como uma ação de reação que parte do que está fora. Ela torna o indivíduo dissimulado, vingativo, distante de si mesmo e cheio de artimanhas para disfarçar o ressentimento e manter-se no poder. Nas palavras de Nietzsche (2005, p. 344): “O homem do ressentimento não é nem fraco, nem ingênuo, nem mesmo honesto e direto consigo mesmo. Sua alma se enviesa: seu espírito gosta de escaninhos, vias dissimuladas e portas dos fundos [...]”.

Segundo Nietzsche, esse ressentimento cria uma moral que prioriza a esperteza maliciosa, a desonestidade, inclusive do indivíduo consigo mesmo, que procura fazer de tudo para apagar através de aparências e subterfúgios sua herança de „mal nascido‟. A moral dos escravos inverte os valores, distanciando o ser humano dele mesmo, dos seus instintos, da sua vontade de potência. Para esse filósofo, a moral dos escravos assume seu ápice com o cristianismo e deixa na

psique humana três grandes males: o ressentimento – “é tua culpa se sou fraco e infeliz” (NIETZSCHE, 2005, p. 344), a má consciência (sentimento de culpa, o castigo) e o ideal ascético (negação da vida).

Com a prática dessa moral e dos valores que a constituem, seres humanos foram destituídos de si mesmos, de sua força instintiva; aprisionados a medos; tornaram-se hostis consigo mesmo, com o outro e com a vida. De acordo com esse padrão moral, os instintos são considerados pecaminosos, indignos. Assim, a sociedade estruturada com base na moral dos escravos não ensina os seus cidadãos a reconhecer os próprios instintos e saber quando e como usá-los. Diz que eles devem ser recalcados. Mas, como tudo que é absorvido acaba tendo a necessidade de ser externalizado, tudo isso que foi negado, escondido, acaba por manifestar-se em forma de dominação perversa, de violência sutil, de desejo excessivo e desmedido de posse.

Esse ser humano que se encobre na autopiedade, se coloca como vítima “[...] como sofredores que não querem confessar a si mesmos o que são, como ensurdecidos e irrefletidos, que só temem uma coisa: chegar à consciência (NIETZSCHE, 2005, p. 362)”. Fica preso no autoengano das conquistas externas e fugindo da possibilidade de conscientizar-se de si mesmo e da sua degradação.

Ao dialogar com Nietzsche sobre a sua análise acerca da moral dos escravos e seus três grandes males: ressentimento, má consciência e negação da vida, e observando tanto as minhas atitudes quanto alguns comportamentos de outros seres humanos, percebo a presença desses males e de suas derivações até hoje. Eles permanecem determinando ou exercendo forte influência na forma de pensar e no comportamento de muitos seres humanos.

Considero pertinente parte das críticas de Nietsche no que diz respeito a alguns valores instituídos pela igreja católica por concordar que alguns desses valores minimizam a força ou a vontade de poder dos seres humanos e os deixa submetidos sem ação consciente. Sabemos que não só a Igreja católica utilizou valores para condicionar as ações humanas aos seus preceitos. Muitas instituições tanto outras instituições religiosas quanto políticas e econômicas usam esse mesmo artifício.

As contribuições dessa abordagem nos levam a refletir sobre quanto os valores que adotamos, mesmo que de forma inconsciente, determinam a forma de pensar e de existir tanto do indivíduo quanto de uma comunidade. Devemos considerar essa abordagem como um sinal de alerta. Um chamamento para despertarmos para a influência que os valores exercem sobre as nossas vidas. Como uma proposta para realizarmos uma avaliação dos nossos valores, procurando perceber a origem e a intenção dos seus promotores, esse alerta nos remete, ainda, à reflexão sobre a necessidade de aprendermos outros valores ou de resgatarmos na nossa memória ancestral os valores humanos primordiais.

Penso que a questão primordial não é saber de quem é realmente a responsabilidade por essa degradação dos valores humanos. Mas, fica mais uma vez explícito o quanto a falta de conhecimento, cuidado e, talvez, de interesse pela complexidade da condição humana geram sofrimento, fragmentação e exclusão. Considero que a partir da consciência de que tudo isso está em nós poderemos encontrar formas para mudar; para escolher potencializar os nossos aspectos valorosos, positivos e, como diz Nietzsche, renascer como um novo homem ou o „além-homem‟.

Uma outra questão que precisamos considerar é o perigo das institucionalizações dogmáticas dos conhecimentos humanos. Sabemos que alguns dos valores criados por instituições religiosas cristãs, ao institucionalizar o cristianismo, estão muito distantes dos ensinamentos propostos por Jesus Cristo. O próprio Nietzsche fez referência ao abismo entre valores vividos e ensinados por Jesus e os dogmatizados e impostos sob pena de castigo pela Igreja. Cristo tinha como valor estruturante de sua vida e de seus ensinamentos o amor. Ele pregava e praticava a afirmação amorosa e criadora da vida e de cada ser humano. Considero que Jesus Cristo é uma representação de ser humano autoconsciente, livre, que viveu a plenitude do amor. O próprio Nietzsche (1984, 35) parece reconhecer a grandiosidade desse mestre, ao afirmar: “Com alguma tolerância na expressão, poder-se-ia chamar Jesus um „espírito livre‟[...]”.

Talvez seres humanos assim como Jesus Cristo e outros que também representam „espíritos livres‟ tenham desenvolvido a consciência de si e do outro a ponto de poder con-viver em sociedade de forma ética, amorosa, cientes da sua condição de corresponsabilidade e do copertencimento à humanidade sem a

necessidade de normas morais. Isso porque eles têm os valores humanos primordiais, a noção de bem comum e do cuidado com a coletividade, internalizado em suas condutas. Mas, será que chegaremos a esse nível de consciência? Será que algum dia seremos capazes de con-viver regidos pela lei do amor?

Inquieta-me a abordagem apenas negativa de Nietzsche com relação a alguns valores instituídos pelo cristianismo como, por exemplo, a piedade. Na forma de autopiedade, concordo com esse filósofo por perceber que esse valor ou sentimento gera a vitimação e, talvez, uma baixa na autoestima que pode causar transtornos emocionais e psicológicos que dificultam o desenvolvimento da pessoa na medida em que ela não se responsabiliza pela própria ação e transfere para outrem (pessoa, sociedade, religião, entre outros) a responsabilidade pela sua forma de pensar e de agir.

Entretanto, o sentimento de piedade, no sentido de compaixão pelo sofrimento alheio, comiseração, misericórdia, pode fomentar ações de cuidado, de ajuda e de reconhecimento da própria humanidade através da compreensão da dor ou do drama do outro. Pode, ainda, despertar no indivíduo o veio da força motora da solidariedade e não só da caridade. Considerando que ser solidário significa dar-se em alguma medida para (o outro, uma causa em prol do desenvolvimento da humanidade, do bem comum, da natureza). Enquanto, ser caridoso representa dar algo a alguém.

Será que a transmutação dos valores, a exemplo da proposta por Nietzsche, só acontece substituindo os valores instituídos pela igreja católica pela força dos instintos? Ou será que a transmutação requer, também, uma profunda reflexão sobre os demais valores instituídos em nossa sociedade e a situação na qual a humanidade se encontra? Essa situação é instaurada, em parte, por valores e sentimentos de distorcidas culpabilidades e necessidades?