• Nenhum resultado encontrado

Na verdade, a temperança, a sobriedade e a castidade, que costumamos opor à luxúria, à embriaguez e à lubricidade, não são afecções ou paixões, mas indicam a capacidade da alma que modera essas afecções. [...].

Espinosa, 1979

A questão da importância das emoções para a vida e o desenvolvimento do ser humano faz parte das investigações de muitos filósofos em diferentes momentos sócio-histórico-culturais da vida humana. Neste estudo, pretendo apenas apresentar, muito brevemente, alguns dos pressupostos de Espinosa e de Damásio sobre a emoção ou os affectus. Espinosa afirma que os seres humanos possuem três

affectus básicos. Damásio (2004) traduz a expressão usada por Espinosa em afetos

básicos, que são: a alegria, a tristeza e os desejos. Tais afetos constituem o aspecto central da vida dos seres humanos e afetam o seu corpo e a sua alma.

Espinosa viveu as transformações decorrentes da era moderna quando novas formas de conhecer e perceber o ser humano estavam sendo estudadas. Entretanto, o enfoque para uma perspectiva mais „integral‟ do ser humano não era de todo reconhecido. Por isso, a investigação de Espinosa sobre a interdependência entre os afetos, as necessidades, os valores, a vontade e a racionalidade humana causou- lhe grandes transtornos.

Esse pensador autônomo não foi reconhecido em seu tempo, mas está sendo redescoberto e muito estudado, inclusive por neurocientistas como Antônio Damásio, que se apoia no pensamento de Espinosa para fundamentar a sua teoria sobre a importância das emoções como uma das peças principais para a regulação e a manutenção da vida humana. Este cientista, entre outros, está tentando mostrar como a compreensão da neurobiologia das emoções e dos sentimentos pode contribuir para “formular princípios, métodos e leis capazes de reduzir o sofrimento humano e engrandecer o florescimento humano” (DAMÁSIO, 2004, p. 16).

Espinosa não separa as emoções dos sentimentos, os considera affectus, bem como as paixões e os desejos. Atualmente, com os avanços da neurobiologia e das neurociências, as emoções e os sentimentos são estudados separadamente, sem, entretanto, desconsiderar a interligação entre eles.

Os afetos estão presentes em toda experiência da vida, sendo capazes de aumentar ou diminuir a capacidade de ação do sujeito. Desta forma, eles são determinantes para o comportamento e para a significação da vida humana. Na compreensão de Espinosa (1979), a alegria, a tristeza e o desejo são os três

affectus primários da natureza humana, sendo que deles decorrem todos os outros

afetos, como, por exemplo: amor, contentamento, ódio, medo, reconhecimento, gratidão, vingança etc.

Esse filósofo considera que os affectus básicos, primários são partes constituintes da natureza humana. Cabe ao indivíduo reconhecer e aceitar a sua natureza com tudo que a compõe, assim como conhecer as necessidades fundamentais da mesma. Esse conhecimento e/ou autoconhecimento8 requer esforço, vontade e disciplina. Querer negar os afetos (emoções, paixões, desejos...) positivos e negativos significa entrar no jogo do autoengano de desconsiderar a condição humana, já que eles estão presentes e são fundamentais para a manutenção da vida.

Segundo Espinosa, o ser humano constitui-se de affectus. Uma das etapas do desenvolvimento humano consiste em reconhecer a importância determinante deles para a vida e buscar ajuda na razão e no pensamento para escolher os afetos positivos e com eles conduzir a sua ação. Assim, um dos principais aprendizados do indivíduo é esforçar-se para aprender a reconhecer, a aceitar e a escolher as emoções e os desejos que melhor conduzem o comportamento humano. Nas palavras de Espinosa (1979, p. 211):

[...] Com efeito, para o fim a que nos propomos, que é determinar a força das afecções e a capacidade da alma sobre elas, basta-nos ter a definição geral de cada afecção. Basta-nos, repito, conhecer as propriedades comuns das afecções da alma, para determinar qual e quão grande é a capacidade da alma, para poder governar e moderar as afecções [...].

Como Espinosa, acredito que o reconhecimento do determinismo, das necessidades e dos afetos próprios da natureza traduz sabedoria e possibilidade de liberdade para ser humano. Essa ação depende do desenvolvimento da capacidade de diante das necessidades, determinações e afetos, dirigir-se ou autodirigir-se no

8

Espinosa não usou o termo autoconhecimento. Entretanto, a sua perspectiva de que o ser humano pode e necessita conhecer reconhecer e dominar os seus afetos, suas necessidades e suas determinações para com o apoio da razão e do pensamento substituir os afetos negativos por afetos positivos e, assim, melhor conduzir a sua ação, se constitui uma das etapas do processo de autoconhecimento. As sugestões de Espinosa de autopercepção, autodomínio e autoeducação são vivências básicas do processo do autoconhecimento.

sentido de potencializar a alegria e os desejos positivos para construir uma relação harmônica com a natureza e com os seus semelhantes. Esse pensador considera que um afeto negativo só pode ser combatido ou transformado por um outro afeto positivo mais forte. Por exemplo, a tristeza pode ser substituída pela alegria.

O ser humano necessita, pois, estar atento a si mesmo para, ao perceber a tristeza ou qualquer dos afetos dela decorrentes, buscar com o uso participativo da razão, do pensamento, da força dos valores positivos (como reguladores) e de vontade, substituí-la pela alegria ou por afetos dela decorrentes. Diante da força determinante das emoções para o comportamento humano, Espinosa (1979) afirma que a pessoa não teve temer a Deus, mas sim ao seu próprio comportamento decorrente de seus afetos (acrescento valores) e a forma como se relaciona com os mesmos.

A liberdade consiste em ter consciência da própria natureza e ser capaz de diante de suas manifestações, esforçar-se para escolher afetos, pensamentos, valores e ideias que possam contribuir para a construção de ações positivas geradoras da virtude e da felicidade. Para Espinosa (1979), o ser humano precisa preservar o self individual. O esforço empenhado para realizar essa tarefa é chamado canatum.

Damásio (2004), a partir da leitura de Espinosa, considera que a necessidade de autopreservação está implícita na consciência da necessidade de contribuir para a preservação e a consequente felicidade do outro “na nossa necessidade irreprimível de nos mantermos a nós mesmos, necessitamos ajudar os outros a se manterem a si mesmos” (DAMÁSIO, 2004, p.184). Será que a felicidade pode ser compreendida, também, como a capacidade do ser humano de reconhecer os apelos dos afetos (emoções e desejos) negativos e de aprender a substituí-los pelos positivos?

Esta tarefa de perceber-se afetado pela alegria (afeto ativo, realizador, criativo), pela tristeza (afeto passivo, escravizador, inibidor) ou pelos desejos (afeto decorrente de apetites conscientes que podem ser positivos ou negativos) e de compreender o jogo dos afetos e das paixões é um trabalho, uma conquista individual. Este aprendizado é uma vivência que só cada indivíduo pode realizar. Entretanto, essa realização está relacionada à existência de processos de formação

do humano que possibilitem ao indivíduo compreender a sua condição humana e, assim, poder autodesenvolver-se.

Ao refletir sobre a condição humana, Espinosa percebe a interface entre o bem-estar individual e social, considerando que a felicidade depende da forma como essa interação se constitui. Essa percepção é comum entre místicos, que dizem há milhares de anos: existe uma inter-relação, uma interdependência, uma interação entre os seres humanos e entre estes e a natureza. Parece, pois, que a conscientização e a transformação de um indivíduo possibilitam uma mudança na coletividade humana. Essa transformação é implicada e interdependente.

A esfera individual e coletiva da condição humana é objetivada em valores e afecções que inspiram ações tanto com o intuito da conservação individual quanto para mobilizar a pessoa a empenhar-se na realização de condutas em benefício do outro, do coletivo. A inclinação para cuidar do outro faz parte das afecções da alma humana. A esse respeito, diz Espinosa (1979, p. 212-213):

Todas as ações que se seguem das afecções que se referem à alma, enquanto conhece, refiro-as à fortaleza da alma que distingo em firmeza e generosidade. Por firmeza, entendo o desejo pelo qual um indivíduo se esforça por conservar o seu ser, apenas em virtude do ditame da Razão. Por generosidade, entendo o desejo pelo qual um indivíduo se esforça por ajudar os outros homens e por se unir a eles pelo laço da amizade, em virtude apenas do ditame da Razão. Refiro, portanto, à firmeza as ações que têm por objetivo apenas a utilidade daquele que age, e à generosidade as que têm também por objetivo a utilidade de outrem.

O diálogo e a interação entre as emoções, a razão, o pensamento e os valores possibilitam tanto o reconhecimento das emoções e dos desejos negativos quanto a sua substituição por afetos positivos como alegria e amizade. Essa ação pode gerar a „harmonia conflitual‟ e o bem-estar da vida humana. Saliento que esse bem-estar inclui reconhecer e aprender a lidar com as tensões e os conflitos da existência. Atualmente, a perspectiva de Espinosa já é demonstrada através de pesquisas da neurobiologia (explicada e ilustrada no livro de Damásio) que mostram as diferenças no cérebro diante da tristeza e da alegria. Tais pesquisas demonstram também as mudanças no comportamento e no desempenho de pessoas afetadas por uma ou outra destas emoções.

Segundo Damásio (2004, p. 61-62), “[...] o valor real das emoções, que reside [...] na ligação inteligente entre o EEC (estímulo-emocional-competente) e as reações que alteram o estado do corpo e do pensamento de uma forma tão

profunda”. Essa afirmação provinda de uma neurocientista fortalece o alerta para a importância do estudo das emoções nos processos educativos dada a função vital das emoções na existência humana. Esta capacidade humana de utilizar conjunta, positiva, integral e equilibradamente as suas capacidades, constitui-se em um dos dispositivos para a construção de uma nova forma de pensar o ser humano e as suas relações.

As pesquisas na área das emoções validam saberes arcaicos que afirmam que através do conhecimento, da aceitação e do autodomínio é possível controlar e transformar as emoções para a conquista do equilíbrio. Essa conquista dá o suporte necessário para o começo de um novo ciclo de desestabilização e estabilização. Esses conhecimentos arcaicos foram conquistados por seres humanos há milhares de anos através de práticas polilógicas. Atualmente, esses saberes arcaicos estão sendo comprovados por pesquisas científicas.

O processo de domínio das emoções não acontece por acaso, depende de uma atitude radical de esforço do indivíduo, de vontade, de determinação para autoconhecer-se e para reconhecer a força que os valores têm nesse processo de autodomínio. Requer, ainda, perceber, reconhecer e direcionar os afetos negativos, substituindo-os pelos positivos. Trata-se, acredito, de um posicionamento educativo. Entretanto, mudanças nessas estruturas vão além do esforço individual. Dependem de transformações coletivas ou de novas políticas públicas e educacionais e da criação de novos paradigmas que contemplem e valorizem o diálogo, a vivência do autoconhecimento e a educação das emoções.

Segundo Espinosa (1979), os seres humanos estão regidos por leis naturais, universais e por decretos humanos. Será, então, que essas leis naturais e universais dizem respeito à inter-relação, interdependência, interação entre as peculiaridades interpolares humanas (corpo, alma, valores, emoções, paixões, razão, intuição...) e entre os seres humanos? Serão essas leis geradoras de equilíbrio conflitual pessoal e coletivo?

Será que os seres humanos não podem construir leis que orientem as instituições educacionais, socioculturais, políticas e organizacionais para vivências fenomenológicas de autoconhecimento (entre outras) e que contribuam para o processo de desenvolvimento integral do ser humano tanto no aspecto intrapessoal e interpessoal como social e profissional?

Será que a compreensão das leis naturais e a criação de leis humanas que tenham como pilar de sustentação o diálogo, a prática dos valores humanos primordiais, da coparticipação e corresponsabilidade poderão possibilitar a eco-con- vivência? Será que não é o momento de começar a refletir sobre a forma como as nossas emoções, sentimentos, desejos, necessidades são influenciados e influenciam nossos valores e, assim, a nossa forma de existir ou de ser no mundo com o outro?