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2.2 HIBRIDAÇÃO NAS DANÇAS MUNDIALIZADAS

2.2.1 Corpo anfíbio e o corpo das danças mundializadas

Atualmente, discute-se a expressividade dos corpos dançantes (DANTAS, 2011), sendo que a formação corporal destes geralmente enquadra-se no território ocidental da dança. O conhecimento que as danças pós-modernas e contemporâneas trouxeram ao campo de estudos acadêmicos da dança é inegável, sendo a principal fonte de embasamento teórico disponível. Porém, quando se quer falar de "outras danças" ou "danças não ocidentais", o território é inóspito e com um vasto campo de estereótipos consolidados ao longo do percurso.

Na tentativa de fugir deste padrão e de contribuir com novos conhecimentos advindos deste território distante para a dança ocidental, proponho refletir sobre a especificidade destas outras danças enquanto inscritas nos corpos dos seus agentes: os bailarinos. Ao observar estas danças, percebe-se sua diferença quanto ao ritmo, os movimentos, a forma, seus princípios estéticos e poéticos. Mas quanto aos corpos que as materializam? O que os diferencia e os singulariza em relação a expressividade dos bailarinos de danças ocidentais? De que maneira alcançam seu virtuosismo? Como atuam em seu meio? Como é seu espaço de trabalho em relação ao espaço dos bailarinos de danças ocidentais? Como se profissionalizam44?

No que se refere aos objetivos desta tese, apresento alguns estudos acerca de diferentes concepções de corpo relacionadas a visões de mundo em diferentes territórios geográficos, simbólicos e imagéticos a fim de compreender a especificidade destes corpos dançantes.

Segundo Helen Thomas (2003), é recente o interesse por abordagens do corpo no campo de estudos da sociologia e das teorias culturais na perspectiva da dança. Thomas explica que o corpo é relativizado como representação de gênero, raça e diferenças inscritas dentro de práticas corporais desde os anos 1980 (THOMAS, 2003). Contudo, somente a partir dos estudos de bailarinos nos diferentes campos de conhecimento, a partir dos anos 1990, o corpo que dança passou a ser assunto acadêmico. Mônica Dantas atribui ao corpo a fonte do principal

44 Ainda que este trabalho não dê conta de todas essas questões, já que não é o seu foco, as exponho para apontar o quanto a pesquisa em dança ainda tem possibilidade de ampliação de conhecimento a partir do estudo das danças mundializadas e de seus bailarinos.

interesse do campo acadêmico da dança até os dias de hoje. Segundo suas fontes as definições de corpo variam muito para cada autor:

O corpo dançante é um corpo treinado, modelado, construído (FOSTER, 1997); um corpo fenomenológico e sensível (FRALEIGH, 1987); um corpo social (THOMAS, 2003); um corpo virtual e paradoxal (GIL, 2004); um sistema aberto de troca de informações (KATZ, 1994); um rizoma plástico, sensorial, motor e simbólico, melhor definido pelo termo corporeidade (BERNARD, 1990); um laboratório da percepção (SOUQUET, 2005). Por outro lado, autores como Csordas (2008), Lepecki (1998) e Le Breton (2011) evidenciam a desestabilização da noção de corpo nas sociedades contemporâneas, nas quais não é mais possível considerá-lo como uma entidade estável, preservada e imutável (DANTAS, 2011, p. 2).

Da mesma forma, Susan Foster (1997) aponta quatro diferentes concepções de corpo em sua análise do trabalho de quatro coreógrafos: Martha Graham; Merce Cunningham; George Balanchine e Deborah Hay. Em sua análise, as concepções de corpo do bailarino para estes coreógrafos são: um veículo unificado para autoexpressão (Graham), ossos, músculos, ligamentos, nervos, etc. (Cunningham); um meio para exibir formas ideais (Balanchine) e por fim; um fluído agregado de células (Hay), (FOSTER, 1997).

Os exemplos evidenciam distintas visões de mundo dos coreógrafos que influenciam seu modo de trabalho e seus princípios poéticos. Para Renato Ortiz, a visão de mundo refere-se a "um universo simbólico específico à civilização atual" (ORTIZ, 1994, p. 29). Para Ortiz, as diferentes visões de mundo entre sociedades estabelecem hierarquias e conflitos de poder.

Hubert Godard, em um texto muito reconhecido no campo acadêmico da dança, apresenta a ideia de mitologias de corpo, o que pode ser entendido como uma visão de mundo diretamente relacionada ao corpo:

A organização gravitacional de um indivíduo é determinada por uma mistura complexa de parâmetros filogenéticos, culturais e individuais.(...) Qualquer modificação do meio levará a uma modificação da organização gravitacional do indivíduo ou do grupo em questão. A mitologia do corpo que circula em um grupo social se inscreve no sistema postural e, reciprocamente, a atitude corporal dos indivíduos serve de veículo para esta mitologia. Determinadas representações do corpo que surgem em todas as telas de televisão e de cinema participam na constituição dessa mitologia. A arquitetura, o urbanismo, as visões de espaço e o ambiente no qual o indivíduo evolui exercerão influências determinantes em seu comportamento gestual (GODARD, 1995, p. 20).

Para ele, o ser humano recebe influências das mitologias de corpo de sua cultura e a reafirma através da construção de seus parâmetros de referência que refletirão em sua sociedade e na atualização das mitologias produzidas. Devido a isso, o autor afirma que as mudanças na sociedade conduzem a novos ideais na dança, bem como, que a maneira como distribuímos o peso do corpo, a forma como organizamos nosso equilíbrio frente a gravidade já revela nosso humor e maneira de ver o mundo. Pode-se dizer que os parâmetros são os responsáveis pela formação da visão de mundo do indivíduo, são sua base de referência e são determinantes na percepção e desenvolvimento do gestual próprio.

Merleau Ponty aponta outro aspecto de construção simbólica do corpo:

O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora, ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida, e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores como a dança. Ora, enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele se construa em instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo cultural (MERLEAU- PONTY, 1999, p.203).

Desta forma, compreendo que o corpo em contexto de conservação da vida está imerso em um mundo biológico. Para inserir-se em contexto artístico da dança, Merleau-Ponty afirma ser necessário passar de uma elaboração simbólica própria para uma elaboração simbólica figurada. Considerando que as danças mundializadas constituem-se diferentemente em cada território no qual se inserem, é correto afirmar que cada estilo de dança e seu modo de inserção no território constituem-se como um núcleo de significação específico. Em distintas culturas, encontramos as díspares visões de mundo, formadas por mitologias de corpo próprias dessas culturas, que somadas às diferenças poéticas de cada estilo de dança resultam em núcleos simbólicos específicos criando um mundo cultural único para o bailarino.

Esta também é a assertiva que propõe Dantas a partir das concepções de corpo abordadas anteriormente ao afirmar que "a dança constitui-se como uma segunda cultura de movimento que se justapõe a esta construção social do corpo" (DANTAS, 2011, p.8). Semelhantemente, Klauss Vianna em seu livro sobre sua técnica e trajetória propôs que o bailarino vai adquirindo habilidade técnica com a dança praticada, seu eixo, equilíbrio e flexibilidade mudam, da mesma forma que, ao

questionar e observar atentamente a si mesmo, o bailarino muda também a visão de mundo, a ótica das coisas e das pessoas (VIANNA, 2005).

Desta forma, emergem visões de mundo concomitantes, a dança como prática; a dança como princípio poético envolvendo o lado cultural; social e estético do estilo, somado ao ambiente social; cultural e emocional do bailarino. Visões de mundo que se inscrevem no corpo dançante, tornando-o um universo único de significação.

Lúcia Matos (2012) realizou uma revisão de abordagens sobre o corpo desde a mudança do pensamento cartesiano para a reflexão da fenomenologia. A partir disso, refletiu a mudança de identidade do corpo dançante por meio da revisão de pensamento em que autores das ciências sociais redefiniram a identidade como complexa e transitória. A partir dessas revisões, conceitos sobre o corpo transformaram-se e abriram espaço para que bailarinos com e sem deficiência pudessem ser reconhecidos como artistas da dança (MATOS, 2012). Um exemplo é o grupo Candoco no Reino Unido.

A sociologia do corpo o compreende como objeto de representações e imaginários no qual a corporeidade humana é analisada como um fenômeno social e cultural (LE BRETON, 2012). A partir dessa disciplina, também é possível perceber as mudanças de representação pelas quais a corporeidade humana ocidental passou através do tempo (MATOS, 2012) . Por exemplo, se na antiguidade o corpo gordo era considerado poderoso e rico, mais tarde também foi visto como corpo guloso; farto e doente. Na dança, o corpo gordo tem quebrado estigmas quanto a sua habilidade de dançar e tem encontrado certo reconhecimento por meio de artistas que assumem seu corpo fora dos padrões legitimados, afirmando seu pertencimento ao espaço profissional da dança. Assim como o corpo com deficiência, o corpo gordo encontra-se fora dos padrões legitimados da dança ocidental definidos como um corpo esguio e magro, próprio para as danças como balé clássico e danças modernas.

Matos aponta que na dança contemporânea, a quebra do unívoco e a busca pelo múltiplo abriram espaço para que coreógrafos investigassem fatores como diferentes fisicalidades e singularidades do corpo dançante. Dessa forma, foi possível reconhecer e incluir diferenças, ressignificando, na dança, representações e metáforas sobre o corpo (MATOS, 2012). Por meio desse viés, construído pela dança contemporânea, não só corpos de diferentes fisicalidades (gordo ou magro,

deficiente não deficiente, esguio ou curvilíneo) puderam ser vistos como bailarinos de dança contemporânea, mas também bailarinos de outras etnias, bem como danças de outras culturas puderam ser vistas em perspectivas contemporânea.

Para Andrée Grau (2005), nem 'dança' nem 'corpo' podem ser aceitos como conceitos universais, uma vez que ambos são incorporados dentro de uma típica maneira ocidental de dar sentido ao mundo (GRAU, 2005, p. 141)45. Desta forma, para se compreender uma dança é preciso compreendê-la como um fato social o qual reflete visões de mundo e ideologias de uma sociedade.

Para pensar o modo como bailarinos modificam seu corpo e criam seu mundo cultural, relaciono a reflexão de Vianna (2005), para quem a técnica tem a função de “preparar o corpo para responder à exigência do espírito artístico” (VIANNA, 2005, p. 73). Para Vianna, bailarino, professor e coreógrafo responsável por inaugurar no Brasil a ideia de intérpretes criadores, o bailarino pode, a partir da técnica, alcançar uma forma singular de desenvolvê-la:

Se a dança torna-se adulta em mim, se levantar o braço é um processo que conheço intimamente, que conheço como meu, posso então criar um gesto maduro, individual. A medida que trabalhamos, é preciso buscar a origem, a essência, a história dos gestos - fugindo da repetição mecânica de formas vazias e pré-fabricadas. Só assim o trabalho resultará em uma criação original, em uma técnica que é meio e não fim, pois a técnica só tem utilidade quando se transforma em uma segunda natureza do artista (VIANNA, 2005, p. 73).

Assim, tornar a dança adulta seria então possuir pelo corpo seu significado figurado (MERLEAU-PONTY, 1999). A partir de sua visão de mundo (ORTIZ, 1996) o bailarino pode elaborar algo original no qual o conduz ao significado que lhe aprouver. Desta forma, para alcançar um novo significado a partir da dança, o corpo dançante das danças mundializadas não depende apenas de sua formação e de sua atuação no subcampo da grande produção em dança, mas principalmente, de sua capacidade de transformação simbólica do seu corpo a fim de tornar-se anfíbio. Como anfíbios, eles podem habitar além do território do subcampo de produção restrito a sua técnica original, o território mais amplo e legitimado do subcampo da grande produção em dança, o que exige uma adaptação simbólica corporal específica para cada um dos subcampos.

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neither ‘dance’ nor ‘body’ can be accepted as universal concepts since they are both embedded within a typical ‘Western’ way of making sense of the world (trad.livre).

Por sua vez, o corpo das danças mundializadas, inserido tanto no subcampo de produção restrito quanto no grande subcampo de produção em dança, mantém o mesmo núcleo de significação, o que demonstra que não é somente a inserção em diferentes subcampos que determina a especificidade do bailarino anfíbio.

No entanto, quais os fatores que diferenciam os núcleos simbólicos das danças mundializadas e da dança contemporânea? De que modo os bailarinos anfíbios elaboram um novo mundo cultural de modo a diferenciarem-se das formas tradicionais de realização de seu estilo? A seguir, aponto reflexões sobre essas questões apresentando certas especificidades das danças mundializadas e da dança contemporânea.