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A mobilidade de conexões existente nos dias de hoje engendra o capital social internacional ao indivíduo. Este pressuposto estabelece novas possibilidades de territórios habitáveis, uma vez que é possível ter acesso a culturas de países e comunidades diversas. Em suma, há uma predisposição para hibridações em dança em um grau, talvez, jamais pensado há alguns anos.

Para Canclini, hibridação são "processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de formas separadas, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas" (CANCLINI, 2011, p.29). O autor esclarece que não existem mais formas puras devido a crescente intensificação de cruzamentos culturais que iniciou por meio da navegação e hoje culmina através da rede digital de comunicação. Porém, ainda existem formas discretas, ou seja, com grau menor de cruzamentos.

Na dança, estas misturas deram-se no momento que bailarinos começaram a migrar de um estilo para o outro, experimentar novas formas de se movimentar, no momento em que ter outras referências corporais deixou de ser um tabu na formação de bailarinos.

[...] todas estas misturas são ilusórias na medida em que o corpo do bailarino não for tocado [...]. É todo o dispositivo qualitativo do bailarino, tudo o que o constitui em sua relação com o mundo que deveria, na verdade, ser objeto de mutação e misturas (LOUPPE, 2000, p.28).

Segundo a autora, combinar algumas referências de danças diferentes não pode ser considerado como uma hibridação. Louppe afirma que é preciso desestabilizar os códigos inscritos no corpo do bailarino, pois a hibridação envolve uma mudança na “relação com o mundo”, uma mudança também de visão de mundo do indivíduo.

Neste estudo, “Corpos híbridos”, Laurence Louppe pensava a propensão crescente dos bailarinos para buscarem referências de diferentes estilos de dança, até mesmo como uma exigência de mercado, adaptando-se mais facilmente ao imperativo dos coreógrafos.

Da mesma forma, Susan Foster considerou esta tendência e a viu como negativa em sua teoria sobre “corpos contratados ”(FOSTER, 1997)38. Para ela, os

artistas passaram a buscar técnicas variadas para tornarem seus corpos disponíveis resultando um uma homogeneidade estética entre os bailarinos.

Ainda que Louppe veja a hibridação como algo positivo para a formação do bailarino, Foster não a compreende como ação deliberada, e sim como uma imposição de mercado. O que ambas talvez não tenham considerado em suas análises sobre hibridação na dança é a questão de que os bailarinos poderiam ter sua formação fora do circuito bem estabelecido de danças, e ainda assim, alcançar o virtuosismo e exigência técnica para participar de produções profissionais no subcampo da grande produção em dança39. No momento de suas análises, não ser formado em balé clássico, danças modernas ou pós-modernas era não ter uma formação profissional.

Hoje, este paradigma está sendo questionado por bailarinos que alcançaram o subcampo da grande produção em dança até mesmo em nível global, sem ter uma formação primeira nestas danças. Exemplos são os artistas Sidi Larbi Cherkaoui, um marroquino-flamenco quem vive na Bélgica, e Akram Khan, um bengali-britânico que vive no Reino Unido. A visão liminar destes dois artistas, pertencentes a territórios dúbios, um deles bailarino de dança pop e danças contemporâneas e o segundo

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the hired bodies (Trad. Livre).

39 Foster (2014) reflete sobre a formação de bailarinos de danças mundializadas, porém, só considera o âmbito de atuação dentro do subcampo restrito da dança.

bailarino de khatak e danças contemporâneas, desafia o paradigma através de suas composições híbridas.

Da mesma forma, a world dance40também não considera a questão da

hibridação e classifica mais uma vez as danças de forma binária: world dance e dance, em gavetas separadas e longe uma da outra, sem possibilidade de misturá- las a fim de formar um novo elemento, um novo corpo.

Estes artistas, Cherkaoui, um bailarino de formação inicial no estilo pop, e Khan, bailarino de Khatak, impõem um novo pressuposto: danças de origem não dominante (SAVIGLIANO, 2011) podem formar grandes artistas.

São artistas que escapam ao termo híbrido porque os transcendem. Eles habitam o território social de seu estilo e também participam do território das grandes produções em dança, participando de espetáculos de circulação internacional.

Em Porto Alegre, pode-se utilizar como exemplo o fato de que nos anos 1980 as escolas de dança locais ofereciam prioritariamente aulas de balé clássico, jazz, dança moderna e dança contemporânea. Hoje, esses gêneros persistem, mas a eles somam-se outras danças desterritorializadas, hibridizadas, mundializadas e/ou recriadas como a dança do ventre, danças de salão, danças urbanas, flamenco, danças indianas, danças afro-brasileiras, para citar algumas. Canclini (2011) faz distinções entre a cultura homogênea e a cultura heterogênea enquanto fontes mais ou menos puras:

Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras[...]. Uma forma de descrever esse trânsito do discreto ao híbrido, e a novas formas discretas, é a fórmula "ciclos de hibridação" proposta por Brian Stross, segundo a qual, na história, passamos de formas mais heterogêneas a outras mais homogêneas, e depois a outras relativamente mais heterogêneas, sem que nenhuma seja "pura" ou plenamente homogênea (CANCLINI, 2011, p.XIX).

O balé clássico atravessou a barreira do tempo e continua a encantar plateias cada vez maiores. O flamenco, a dança moderna de Martha Graham, o bharatanathyan, são clássicos por terem mantido suas formas estruturais básicas estáveis. A partir disso, pode-se afirmar que o clássico sempre irá existir, mesmo com a imposição da modernidade, e com o clássico cada vez mais formas

mundializadas e/ ou recriadas poderão surgir. A partir das adaptações que a dança, assim como as culturas, sofrem por imposição da modernidade, suas matrizes e formas renovam-se, recriam-se e assim mantêm-se atuais para que sua execução seja possível. A hibridação é uma imposição da modernidade.

O hibridar na dança pressupõe estar em processo de mistura, não estar acabado e sim em desenvolvimento, em criação, em experimentação, em processo de pesquisa de movimento. No subcampo da grande produção de dança, Antônio Nóbrega41 é um artista brasileiro que pode ser citado como exemplo de trabalho de pesquisa de movimento em dança, ainda que não se intitule assim. Em seu discurso sobre o desenvolvimento da Companhia de Antônio Nóbrega, reconheço importantes colocações as quais o situam em um processo de hibridação:

Com a formação deste turno, estou dando continuidade a um trabalho com a dança que, a bem da verdade, teve seu início naquele já longínquo momento em que eu me encontrei com os artistas populares brasileiros, especialmente com seus dançarinos. De lá para cá, a partir do estudo e assimilação do rico imaginário corporal presente neste universo, venho por um lado, buscando um modo de reinterpretá-lo artisticamente e, por outro, uma maneira de codificá-lo, ou seja, de dar a ele uma espécie de organização na perspectiva de uma linguagem de dança que possa ser transmitida para outros bailarinos e que, como consequência, possa também ser material para criação coreográfica (NÓBREGA, 2012)42.

A partir dessa colocação, percebo a impossibilidade de nomear o estilo estético e a poética desenvolvida, mas sim uma busca por novas formas de desenvolvê-los. No vídeo, percebem-se também os brincantes tendo aulas de balé clássico e dança contemporânea a serviço das práticas de danças populares brasileiras, capoeira e vivências de produção musical. A Companhia não busca uma verticalidade e expressividade do balé clássico, mas sim um corpo brincante, mais próximo dos movimentos virtuosos das danças populares brasileiras. O processo de hibridação da Companhia Antônio Nóbrega busca valorizar a produção cultural popular do Brasil desenvolvendo os movimentos pelo contato com os artistas populares (NÓBREGA, 2012).

Desta forma, fica claro que os brincantes recebem várias referências corporais a que têm acesso no seu dia a dia de treinamento, e por meio da prática

41 Antônio Nóbrega é músico, ator e bailarino. Atua no Recife com a Companhia Antônio Nóbrega. 42 Vídeo sobre a companhia Antônio Nóbrega apresentando o Projeto de desenvolvimento da Companhia contemplado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura e apoiado pelo Projeto O Boticário na Dança no ano de 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KMpmfbmkOZ4> Acesso em: 20 de nov. 2018.

dessas diferentes referências, seus corpos se modificam e reproduzem um novo produto. O corpo do bailarino é o tubo de ensaio desta mistura, onde tudo se encontra em movimento em efervescência, transbordando algo novo. Na pesquisa de movimento, na busca pela estabilização estética e do estilo estético de que fala Nóbrega, o bailarino é o pivô deste experimento.

Para Roberta Marques (2012), a propósito de seu estudo sobre as companhias de dança do Recife, a lógica das aulas, introduzidas pelos tipos de treinamento, ajudam a conectar o corpo dançante ao projeto estético de cada técnica, o que leva a compreender o corpo como recebendo e processando as informações que recebe.

Tendo a acepção de “corpos híbridos” de Laurence Louppe (2000) como pressuposto para hibridação na dança, pode-se compreender melhor o trabalho de Antônio Nóbrega como um processo híbrido, uma vez que seus brincantes exploram diferentes práticas estéticas de dança em seu treinamento. Porém, acredito que não só pelo treinamento o bailarino tem contato com práticas que possam desestabilizar seus códigos de movimento inscritos em seu corpo, isso porque, segundo Dantas (2011), o trabalho coreográfico também é um meio de formação corporal, pois o bailarino tem contato com o trabalho de modo a alterar sua fisicalidade.

A partir dessa reflexão, identifico no trabalho de Rodrigo Pederneiras43 no Grupo Corpo um desenvolvimento de hibridação na dança por meio do desenvolvimento coreográfico, diferentemente da Companhia Antônio Nóbrega em que a hibridação desenvolve-se por meio de referências corporais diferentes.

Izabella Gavioli (2013) descreve o trabalho coreográfico de Rodrigo Pederneiras como aquele que “amolda a coreografia ao bailarino”. Desta forma, o trabalho coreográfico está muito implicado com as características técnicas dos bailarinos. Pederneiras tem como assertiva, para selecionar seus bailarinos, a busca por um elenco de base sólida no balé clássico e por bailarinos com capacidade de soltura e fusão de habilidades num só corpo (PEDERNEIRAS, 2012, apud GAVIOLI 2013, p. 41). Entendo essas últimas proposições como uma predisposição a receber

43 Rodrigo Pederneiras é coreógrafo do Grupo Corpo desde 1978. No site do grupo, encontra-se a seguinte descrição do seu trabalho: “Guiado sempre pela música, Rodrigo quebra os movimentos clássicos de um modo intensamente brasileiro, mas inteiramente livre de exotismos, ufanismos, identidades fáceis.Disponível em: <http://www.grupocorpo.com.br/companhia/biografias> Acesso em 25de maio 2017.

e incorporar novas referências corporais, das quais identifico na afirmação de Gavioli:

Araújo (2012) destaca a espontaneidade com que a mescla aparece, o que só é possível mediante alto nível de domínio da técnica clássica, a ponto de ser possível hibridizá-la com um novo trabalho corporal. Rodrigo Pederneiras afirma que o elenco não recebe aulas de qualquer outra técnica de dança contemporânea ou similar. As seis horas de trabalho diário da companhia são divididas entre 90 minutos de aula de balé clássico cinco vezes por semana, seguidas de horas de ensaios específicas das obras entre novas montagens e remontagens. As habilidades extraordinárias presentes nos corpos dos bailarinos são desenvolvidos essencialmente durante os ensaios [...] (GAVIOLI, 2013, p. 41).

A partir dessa proposição, pode-se inferir a predisposição à hibridação do grupo, o qual passou a buscar seu estilo único desenvolvido nos processos coreográficos, até que essa linguagem se tornasse estável e, portanto, uma forma discreta, produto de um processo de hibridação:

No final dos anos 80 e início dos 90 começou a existir uma preocupação do que seria talvez uma dança contemporânea brasileira, o que seria uma forma nossa de se movimentar porque eu acho que o brasileiro tem certas características: - uma sensualidade, um jeito especial de se mover… e então nós começamos a fazer muita pesquisa, ir atrás da maneira, entre aspas: “brasileira de ser”. Eu acho que isso é que nos levou a um outro patamar, quer dizer, foi a partir daí que se logrou a criação de uma linguagem especificamente do Corpo, uma linguagem particular do Grupo Corpo [...] (PEDERNEIRAS, 2016).

A partir dessa colocação, percebo o processo de busca do Grupo Corpo, de forma diferente da Companhia Antônio Nóbrega, uma vez que o Grupo Corpo realizou a mescla por meio da composição coreográfica, e não expondo o corpo dos bailarinos a diferentes práticas. Percebo a valorização do corpo brasileiro em Antônio Nóbrega, por meio da valorização das matrizes populares brasileiras em que as técnicas europeias são suporte para apoiar o objetivo deste corpo formado nas matrizes brasileiras. Por outro lado, no trabalho de Rodrigo Pederneiras há a busca por uma elitização do corpo por meio da técnica europeia do balé clássico com elementos brasileiros. No que se refere ao modo de hibridação, se em Antônio Nóbrega o corpo do bailarino é o tubo de ensaio que gera novos movimentos a partir de diferentes práticas, no Grupo Corpo, os novos movimentos são levados prontos ao ensaio pelo coreógrafo e os bailarinos os atualizam, os tornam reais, fundindo seu modo de apropriar-se deles a sua técnica de balé clássico.

Para Dantas (2011), o corpo dançante é um corpo treinado, heterogêneo, autônomo, íntimo, energético, engajado, vulnerável e amante:

As concepções de corpo dançante como corpo treinado, heterogêneo e autônomo referem à formação e ao treinamento de cada intérprete em cada companhia. Revelam que os bailarinos constroem seu corpo a partir da incorporação de diferentes experiências [...] (DANTAS, 2011, p. 123).

Se o corpo híbrido está sempre em processo, quais os elementos que determinam o bailarino como sendo anfíbio? Quais características corporais o definem? De que forma ele determina a metamorfose em seu corpo de forma a transformar-se diferentemente de acordo com o estilo coreográfico com o qual está trabalhando?

Para compreender o corpo dançante das danças mundializadas e suas especificidades para tornar-se anfíbio, reflito a seguir sobre questões de hibridação e as danças mundializadas e suas implicações no corpo dançante das danças mundializadas a fim de traçar o perfil do bailarino anfíbio.