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Parte IV: Similaridades e singularidades 313 8 A ARTICULAÇÃO ENTRE RECEPÇÃO, ESTILO DE VIDA E DISTINÇÃO: TECENDO

1 MODELAGEM REFERÊNCIA

1.2.2 Corpo de classe (?)

Com base em Bourdieu, entendemos que os processos de distinção entre as classes são evidenciados sobretudo através de práticas de consumo - cultural e material - que manifestam posições corporais do estilo de vida. Através de várias obras de Bourdieu, a centralidade do corpo como locus privilegiado de análise do sujeito social ganha destaque: corpo é o substrato do habitus; nele se inscrevem as relações de poder que reproduzem, ao nível corpóreo, o sistema de dominação que impera na sociedade global (BOURDIEU, 1983). O corpo “funciona, portanto, como uma linguagem que fala de nós mais do que falamos sobre nós; uma linguagem da natureza, na qual se trai, ao mesmo tempo, o que está mais escondido e o que é mais verdadeiro” (BOURDIEU, 2015, p. 1, grifo nosso). Apoiados em diversas obras de Bourdieu, adotamos o corpo como lugar do senso prático, manifestação do habitus e investimento de poder e dominação:

[...] o que se aprende pelo corpo não é algo que, como um saber, se possa segurar diante de si, mas é algo que “se é”, e se refere também à ideia de que o saber aprendido pelo corpo, entendendo este saber como um esquema de sistemas de investimento social que o corpo incorpora, não é palpável. O corpo não representa

um papel, não interpreta um personagem e sim se identifica com este formato determinado socialmente, constituindo a partir deste formato a imagem de si, como a imagem que o conforma enquanto indivíduo e por isso mostra o “que ele é”. (BOURDIEU, 1980, p. 123).

As atitudes em relação ao corpo, marcadas pela sociologia bourdiana, encontram reforço em Boltanski (2004), que aplica o termo “usos sociais do corpo" para tratar de uma objetivação do gosto de representações físicas amplas, que envolvem um conjunto de condutas próprias aos “agentes” de uma determinada classe social. Tanto Boltanski como Bourdieu concebem que valores e ideais são expressos, em grande medida, através de posturas, movimentos e formas de moldar o corpo - inclusive através do vestuário. A essa relação entre corpo e vestuário - ou “marcas cosméticas (cabeleira, barba, bigode, costeletas, etc.)” -, Bourdieu chama de “aspectos modificáveis do corpo”. Já Le Breton, que também se dedica a estudar o corpo como um vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída, menciona essa dimensão que envolve a cor dos cabelos, o trato das unhas, os modos de se vestir, pentear-se e maquiar-se, como “aspectos maleáveis da aparência” (2007, p. 7). Ambos entendem que as formas como nos apresentamos (aspectos da aparência corporal) podem ser entendidas como “marcas sociais cujo sentido e valor residem na posição que ocupam no sistema de sinais distintivos que elas constituem” (BOURDIEU, 2015, p. 2, grifo do autor), já que as distintas classes desprendem recursos econômicos díspares no cuidado com o corpo: “as técnicas do corpo e os estilos de sua produção não são os mesmos de uma classe social para outra, algumas vezes até as classes de idade introduzem variações” (LE BRETON, 2007, p. 43). Ademais,

As diferenças de pura conformação são reduplicadas e, simbolicamente, acentuadas pelas diferenças de atitude, diferenças na maneira de portar o corpo, de apresentar- se, de comportar-se em que se exprime a relação com o mundo social. A esses itens, acrescentam-se todas as correções intencionalmente introduzidas no aspecto modificável do corpo [...] e ao vestuário que, dependendo dos meios econômicos e culturais suscetíveis de serem investidos aí, são outras tantas marcas sociais que recebem seu sentido e seu valor de sua posição no sistema de sinais distintivos que elas constituem, além de que ele próprio é homólogo do sistema de posições sociais. (BOURDIEU, 2007, p. 183).

Assim, “delineia-se um espaço dos corpos de classe”, que tendem a reproduzir “a estrutura do espaço social” (BOURDIEU, 2007, p. 183). Para Bourdieu é possível inclusive que falemos em um “corpo alienado”, se concebermos, em contrapartida, a definição de um “corpo legítimo” como um objeto de lutas entre as classes.

Aventuramo-nos a trabalhar com o conceito de corpo de classe principalmente após a leitura de O camponês e seu corpo, de Bourdieu, no qual o autor afirma que tanto nas relações entre as diferentes classes, como nas relações entre os sexos opostos, o primeiro objeto de percepção se concentra na aparência (“la tenue”), “imediatamente percebida (...) como símbolo da condição econômica e social” (BOURDIEU, 2002, p. 4). De acordo com seu estudo etnográfico, um camponês, por menos desajeitado, mal barbeado, mal vestido que seja, é reconhecido como tal e, através de seus gestos, atitudes, trajes e conjunto do comportamento, torna possível que se deduza uma personalidade profunda a partir da aparência. O mais interessante nesse trabalho é o fato de Bourdieu salientar que o próprio camponês - que serve aqui como analogia para pensarmos as relações entre sujeitos de diferentes classes através de seus corpos - acaba introjetando a imagem que os outros fazem dele, mesmo quando se trata de um mero “estereótipo”. Ao “perceber seu corpo como corpo cunhado pela impressão social (...) fica embaraçado em relação a seu corpo e em seu corpo” (BOURDIEU, 2002, p. 5):

[...] é por apreender seu corpo como corpo de camponês que tem dele uma consciência infeliz. É por apreender seu corpo como corpo rude que toma consciência de ser camponês rústico. Não é exagero presumir que a tomada de consciência de seu corpo é, para o camponês, a ocasião privilegiada da tomada de consciência da condição camponesa (BOURDIEU, 2002, p. 5).

Para Bourdieu (2002), as disposições corporais: marcas, cicatrizes, cheiros, roupas, maneiras de falar e de agir, acabam contribuindo para demarcar uma condição social. Ou seja, há uma relação de distinção que se encontra inscrita no corpo. Em A Distinção, a mesma concepção se faz presente quando Bourdieu concebe uma “classe feita corpo” (2007, p. 179), na qual o gosto “contribui para fazer o corpo de classe” (BOURDIEU, 2007, p. 179):

Princípio de classificação incorporado que comanda todas as formas de incorporação, ele escolhe e modifica tudo o que o corpo ingere, digere e assimila do ponto de vista tanto fisio1ógico, quanto psicológico. Segue-se que o corpo é a objetivação mais irrecusável do gosto de classe, manifestado sob várias maneiras. (BOURDIEU, 2007, p. 179).

Essas variadas formas de manifestação da classe através do corpo, segundo o autor, podem variar principalmente pela aparência (volume, tamanho, peso), que denunciaria as maneiras de se tratar esse corpo, revelando as “disposições mais profundas do habitus” (BOURDIEU, 2007, p. 179).

Para ampliar as reflexões do papel do corpo nos estudos no campo das ciências sociais, merecem destaque as contribuições de Shilling (1993, p. 24), que afiança que as formas como

experimentamos e gerenciamos nossos corpos “formam parte do material do qual é forjada a vida social” e Giddens (1997), que afirma que o corpo não é apenas uma entidade física que possuímos, mas sim “um sistema-acção, um modo de práxis” essencial para a narrativa de uma auto-identidade, prestando atenção sobretudo à aparência, posturas, sensualidade e regimes do corpo. Assim, a perspectiva de Bourdieu pode ser aliada aos novos movimentos políticos de resistência pessoal, social, cultural, em que o corpo consiste essencialmente em processos de atividade auto-produtiva, ao mesmo tempo subjetiva e objetiva, significativa e material, pessoal e social, um agente que produz discursos bem como os recebe (SHILLING,1993).

Novamente recorrendo à sociologia bourdiana, acreditamos que também seja possível pensarmos o corpo como um capital, já que os sinais e as disposições classificatórias que revelam as origens e a trajetória de vida de uma pessoa manifestam-se também corporalmente, seja pela postura, pelo andar, pela conduta, pelo tom de voz, pelo estilo de falar ou pelo desenvolvimento ou desconforto em relação ao próprio corpo. Ou seja, pela sua

hexis corporal e pelos aspectos maleáveis do corpo. Bourdieu também utiliza a noção de

capital corporal para se referir à propriedades corporais que funcionam como um capital para a obtenção de lucros sociais, seja na entrada das mulheres no mercado de trabalho, seja nas relações afetivas:

O interesse que as diferentes classes atribuem à apresentação de si, a atenção que lhe prestam e a consciência que tem dos ganhos que ela traz, assim como os investimentos de tempo, esforços, privações, cuidados que elas lhe dedicam, realmente, são proporcionais as oportunidades de lucros materiais ou simbólicos que, de uma forma razoável, podem esperar como retorno [...] As mulheres da pequena burguesia interessadas pelos mercados em que as propriedades corporais podem funcionar como capital para atribuir um reconhecimento incondicional à representação dominante do corpo, mas não dispõem, pelo menos, a seus próprios olhos e, sem dúvida, objetivamente - de um capital corporal suficiente para obter os mais elevados ganhos, ocupam, ainda neste aspecto, o lugar de maior tensão. (BOURDIEU, 2007, p. 194).

Almeida (2013) destaca, na mesma linha de raciocínio que, para algumas mulheres, o corpo é um instrumento para a ascensão social:

As mulheres são muito diferentes, de faixa etárias diferentes, classe social, cor. No Brasil, se você olhar o que faz a mídia, tem uma promoção de que toda mulher tem de ser bonita e gostosa, ser elegante, bacana, glamourosa e gostar de ser olhada. E para algumas mulheres inclusive isso é uma via de ascensão social. É através do corpo que elas conseguem algumas coisas. É o corpo como capital. (ALMEIDA, 2013, p. 2).

O esquema corporal, portanto, identifica o sujeito-corpo, dá “vida real” a sua postura e posição no mundo social, impondo também relações complexas de poder e dominação (GOLDENBERG, 2007), seja entre classes distintas ou nas relações de gênero.

Nosso diálogo com Bourdieu e suas contribuições para pensarmos esse corpo - nu e vestido - torna-se essencial pelo fato de que, tanto nosso olhar para as representações de classe no plano ficcional, quanto nossa atenção para as identificações/desidentificações entre plano ficcional e mundo vivido pelos receptores, está inscrito no corpo. Temos, como ponto de partida, os aspectos maleáveis do corpo (aparência, saúde, beleza), mas estendemos nossas análises para a hexis corporal (formas de andar, falar) e para o comportamento (através das relações de classe e gênero no ambiente do trabalho/familiar; nas relações afetivas/sexuais; na maternidade e na feminilidade), além de refletirmos sobre o gosto e as práticas de consumo (tanto dos personagens de A Regra do Jogo, como das receptoras pesquisadas). De maneira mais ampla, abordamos essa esfera, que abrange desde o corpo nu, até o corpo vestido, através do conceito de estilo de vida. De forma mais atenta, discorremos a seguir sobre essas as relações entre estilo de vida e vestuário, corpo e distinção, consumo e comunicação.