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Parte IV: Similaridades e singularidades 313 8 A ARTICULAÇÃO ENTRE RECEPÇÃO, ESTILO DE VIDA E DISTINÇÃO: TECENDO

1 MODELAGEM REFERÊNCIA

1.1.1 Entre “contradições”

Raymond Williams (1989), ao demonstrar que os termos e conceitos com que trabalhamos em nossas pesquisas implicam em uma definição de como nos colocamos como sujeitos “no mundo”, profetiza que as “as denominações nunca são inocentes”. Logo, ao explicitarmos significados acabamos demonstrando em que lado dos conflitos nos colocamos (CEVASCO, 2001). Por esse motivo, me permito nesse momento, para iniciar a apresentação dos referenciais teóricos que me embasam, contar um pouco minha trajetória pessoal como pesquisadora e explanar sobre a parte mais dolorosa de minha experiência na docência, ao ministrar parte da disciplina de Sociologia da Comunicação, ao tentar ensinar para alunos do 3º semestre de jornalismo e relações públicas algo que para mim ainda se mostrava demasiado complexo e paradoxal. Na leitura de Kellner43, eu frisava que os produtos da cultura da mídia não são entretenimento inocente, havendo um cunho ideológico por trás das mensagens midiáticas, necessitando de uma interpretação política. Na sequência, dizia que mídia/cultura/comunicação têm que ser pensadas de forma articulada, e sim, podem servir como instrumento de dominação, mas também apresentam brechas contra-hegemônicas e oferecem recursos para a resistência. Sem culpá-los, nem sempre eles pareciam estar me entendendo.

Na leitura de Jurandir Freire Costa44, por vezes ele seguiam seus olhares desconfiados quando eu tentava explicar que a personalidade somática pode acabar se tornando uma espécie de antipersonalidade e que a moral do espetáculo acaba priorizando o ideal da felicidade das sensações e não a dos sentimentos, levando a uma percepção da vida como entretenimento e mundo de aparências que tem nos meios de comunicação de massa sua manifestação superficial mais esmagadora. Em seguida, eu destacava que isso não queria dizer que os indivíduos desistiram de agir moralmente para se tornarem „bolhas‟ narcísicas e que o impacto do espetáculo sobre os sujeitos não impediria o surgimento de ações e reações contra-alienantes. Poderia apostar que, durante boa parte do semestre, esses jovens, que muitas vezes se dividem em lados totalmente opostos - ou não possuem visão crítica sobre a

43 A cultura da mídia. Estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. 44 O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo.

mídia hegemônica, ou são tão avessos a ela, a ponto de olharem com total desprezo para os produtos culturais que dela provêm - achavam que a aspirante à professora estava “em cima do muro”. Entretanto, meu lugar de fala, ancorado no que por eles era entendido como “mera contradição”, se constituía na verdade em uma fuga veloz de olhar para os esquemas objetivos de produção e subjetivos de recepção através de um panorama dualista. E é aí que os Estudos

de Recepção Latino-Americanos45 - perspectiva “que reconhece que os processos

comunicacionais estão intrinsecamente relacionados com os socioculturais” (JACKS; RONSINI, 2014, p. 349) - se firmam como meu aporte teórico-metodológico e práxis política, pois é através deles que buscamos escapar do “risco de se produzir uma verdade formal e estéril sobre a complexidade e as contradições entre meios e audiências” (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 31, grifo nosso).

Iniciamos efetivamente este subcapítulo guiados por Martín-Barbero (2002) e suas contribuições para o pensamento latino-americano no campo dos estudos culturais em comunicação. Segundo o autor, uma de suas maiores insatisfações acadêmicas e intelectuais vem da tendência de se realizarem estudos de recepção ausentes de crítica e exacerbados pela sentença “todo poder ao consumidor!” (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 12). Esse descontentamento de Martín-Barbero se transformou justamente no seu ponto de partida para que propusesse uma pesquisa rigorosa e atenta, a qual é bem explicada no prefácio do livro

Vivendo com a telenovela: mediações, recepção e teleficcionalidade, de Lopes; Borelli;

Resende, 2002, uma das maiores referências nacionais para as pesquisas de recepção. Segundo o autor, precisamos ruminar os estudos dos processos e das práticas de recepção sob um viés

[...] menos iludido/iludível, num espaço cognitivo estratégico que exige pensar juntos processos e dimensões separados por dicotomias polarizadoras e dualismos tenazes, como, por exemplo, a ação cruzada de moderníssimos dispositivos tecnológicos com anacrônicas narrativas e desarticulados modos de ler; o fortalecimento das hegemonias com a diversificação das demandas socioculturais; as operações de negociação com os operativos de imposição (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 14).

Sua contribuição não deixa dúvidas de que os estudos dos processos de recepção devem mixar a “sagacidade do mercado - no momento de contar histórias que envolvem a maioria” com a “persistência da matriz popular, ativadora de competências culturais inerentes a ela” (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 15).

García-Canclini, outro expoente do pensamento latino-americano no que tange aos estudos sobre cultura, faz coro a Martín-Barbero ao destacar dois momentos cruciais ao analisarmos a recepção (e o consumo): 1) a problematização dos princípios que organizam as ações hegemônicas, já que “los bienes se producen com instrucciones más o menos veladas, dispositivos prácticos y retóricos que inducen lecturas y restringen la actividad del usuário” (GARCÍA-CANCLINI, 1992, p. 7), e 2) a reflexão sobre os diferentes modos com que consumidores e receptores se apropriam dessas ações, pois “el consumidor nunca es un creador puro, pero tampoco el emisor es omnipotente” (GARCÍA-CANCLINI, 1992, p. 8). Por esse motivo, os estudos comunicacionais deveriam abranger todo o amplo processo no qual estão envolvidas as esferas da produção, circulação e audiência das mensagens, atentando para a “indissolubilidade entre econômico e simbólico” (JACKS; RONSINI, 2014, p. 350). Nesse sentido, as contribuições de Bourdieu e seu conceito de habitus vão ao encontro dos estudos de recepção latino-americanos que objetivam explicar a experiência das identificações e projeções entre telespectadores e telenovela não atentando apenas para as práticas subjetivas dos receptores, mas, principalmente, para a “dimensão objetiva externa, [...] econômica e política da sociedade” (JUNQUEIRA, 2009, p. 21).

Um dos estudos que adotam essa perspectiva sociocultural da recepção apoiado nas obras consagradas46 de Martín-Barbero e García-Canclini é o trabalho de Lopes; Borelli e Resende, em que as autoras tomaram como base a perspectiva teórica das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2003) para refletir, a partir do cotidiano familiar, da subjetividade, do gênero ficcional e da vídeo-técnica, de que forma famílias de classes socioeconômicas distintas se relacionavam com a telenovela. A mesma preocupação de Martín-Barbero e García-Canclini é compartilhada pelas autoras brasileiras, que discorrem sobre a “insuficiência da crítica” nos estudos que renegam o pressuposto-chave dos estudos culturais: a articulação entre as práticas de recepção e as relações de poder.

A recepção, por conseguinte, não é um processo redutível ao psicológico e ao cotidiano, apesar de ancorar-se nessas esferas, mas é profundamente cultural e política. Isto é, os processos de recepção devem ser vistos como parte integrante das práticas culturais que articulam processos tanto subjetivos como objetivos; tanto micro (ambiente imediato controlado pelo sujeito) como macro (estrutura social que escapa a esse controle) (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 32).

Ao problematizarmos sobre a violência simbólica - que, para Bourdieu, é a forma com que se executa a dominação realizada pelo pólo emissor - exercida pelas telenovelas, um

46 Principalmente nas teses e dissertações sobre estudos de recepção, segundo apontamentos de Jacks e Ronsini

produto popular de acesso a (quase) todos, estamos refletindo sobre os “processos de distinção de acordo com uma estrutura social determinada” (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 259), sem deixar de levar em conta esse espaço em que se opera a violência simbólica como arena, onde “são transformadas e multiplicadas as formas de perceber e sentir e de manifestar as identidades” (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 259). Logo, ao observarmos as relações entre a recepção de produtos midiáticos e a estrutura - de classe - a que os receptoras se encontram expostas, podemos compreender “porque a distinção social se opera [...] da forma como ela se opera” (JUNQUEIRA, 2009, p. 258).

Perceber a dramaturgia como um campo permite estudar as desigualdades sociais no discurso sobre as telenovelas de uma forma não limitada àquilo que pode emergir no espaço público, mas as demandas que não estão expressas racionalmente. Para ser possível a partir daí, penetrar o interior da comunicação entre telenovelas e público, entrando em contato com sua essência emocional, psicológica, sem, no entanto, cair na armadilha da reificação dos processos individuais, deixando de ver que, no caso das desigualdades sociais, eles são coletivos (JUNQUEIRA, 2009, p. 43).

O que esses estudos ressaltam é que o estudo de recepção deve ser executado como um processo complexo e “multidimensional” (JUNQUEIRA, 2009, p. 32) vivido no cotidiano, que, ao mesmo tempo, é circunscrito por relações de poder que o extrapolam: “a produção e a reprodução social do sentido envolvida nos processos culturais não são apenas uma questão de significação, mas também, e principalmente, uma questão de poder” (JUNQUEIRA, 2009, p. 32). Couldry (2010) também avalia a necessidade de se investigar a posição das instituições midiáticas na sociedade em geral, quando trabalhamos com estudos de recepção. A sociologia da mídia realizada por ele relaciona diretamente a esfera midiática e as dimensões simbólicas de poder. Escosteguy igualmente compreende que a investigação da cultura midiática deve incluir “tanto os meios, os produtos e as práticas culturais” (2011, p. 23) e ser pensada

numa concepção mais abrangente de sociedade vista como o terreno contraditório de dominação e resistência onde a cultura tanto se engaja na reprodução das relações sociais quanto na abertura de possíveis espaços para a mudança. (ESCOSTEGUY, 2001, p. 23, grifo nosso).

Ao contrário de uma tentativa audaciosa - e provavelmente frustrada pelo tempo, espaço e fôlego de uma tese - de abarcar todo o circuito da cultura através do mapa completo das Mediações Comunicativas proposto por Martín-Barbero (2002), defendemos a apreensão de uma “totalidade possível” (RONSINI, 2011, 2012) como parte de um processo que privilegia o fenômeno da recepção. Posição esta defendida por outros pesquisadores, como Lopes (2014), Sifuentes; Escosteguy (2016) e Bonin (2017) que consideram que a

implementação do Mapa nas pesquisas empíricas dependerá das estratégias metodológicas adotadas, “de modo que a escolha pode recair em determinadas mediações, e não em outras, dependendo do destaque que ganham na abordagem analítica” (LOPES, 2014, p. 75). Isto não significa, contudo, “abandonar a questão política da mídia” (RONSINI, 2012, p. 17) - já que realizamos um estudo crítico de recepção - pois nos interessa “entender as representações midiáticas e suas apropriações como parte da luta política e cultural” (RONSINI, 2012, p. 17). O que propomos é, assim como realizado por Ronsini (2011, 2012), tangenciar os processos produtivos da telenovela, não nos dedicando formalmente teórica ou empiricamente às rotinas de produção, mas sim, contextualizando o texto midiático, seja através de compilações de conclusões de pesquisas anteriores dedicadas ao mesmo objeto de pesquisa, seja por meio de um olhar não analítico, mas atento às representações veiculadas na telenovela que compõe nosso corpus.

Fechamos esse recorte teórico-metodológico inicial reiterando nosso lugar enquanto pesquisadores: entendemos que os meios de comunicação de massa criam formas de dominação ideológica que ajudam a reiterar as relações vigentes de poder, ao mesmo tempo em que fornecem instrumentos para construção e fortalecimento de identidades sociais, e (por que não dizer?) para a resistência e para a luta. Um modelo crítico considerado por nós como ideal para captarmos os nexos entre meios de comunicação e audiências estaria no entre-

lugar: reconhecendo a força da emissão e mantendo um olhar desconfiado para os discursos

da mídia hegemônica, não deixando de considerar o papel da(s) experiência(s) cotidiana(s) na esfera da recepção, sempre atentos a sua capacidade criativa de negociação e também de reprodução hegemônica. Através da perspectiva latino-americana dos estudos de recepção, posta em diálogo com a sociologia bourdiana, cremos que isso se mostre possível não apenas teoricamente, mas também empiricamente.