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Corpo, gênero e sexualidades

No documento claudeteimaculadadesouzagomes (páginas 46-51)

Uma primeira questão necessária quando pensamos na discussão acerca do tema “corpo”, nos seus diferentes aspectos e dimensões, é a necessidade de pensar sobre a condição de que somos sujeitos-corpos, isto é, entendemos o corpo como parte de nossa

identidade/expressão de gênero18, de nossa unidade de existência que nos torna visíveis e nos põe a circular no mundo. Esta ideia nos traz o entendimento de que, nas ações e atitudes que realizamos, pode-se observar minimamente quatro enfoques: biológico, psicológico, social e existencial, além de outras possibilidades de abordagens relacionadas, como antropológicas, econômicas, históricas, que podemos considerar interdependentes das anteriores.

De acordo com David Le Breton (2012),

Há várias leituras possíveis do corpo: uma, biomédica, baseada na anatomia e na fisiologia, que tende a reduzir o corpo ao natural, ao biológico. Essa é a leitura da medicina oficial. Por outro lado, as medicinas populares vinculam o homem ao cosmos, relacionando doenças a metais, vegetais, à determinados minerais dotados de poderes curativos por sua forma, sua cor, que tem analogia com a enfermidade que se pretende curar. Assim, o corpo não é uma unanimidade nas diferentes culturas humanas, revela-se surpreendentemente difícil e suscita várias questões epistemológicas. O corpo é uma falsa evidência, não é um dado inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e cultural (p. 26).

Essa afirmação de Le Breton nos leva a pensar na multiplicidade de possibilidades que os corpos possuem, e que podem ser exercidas pelos sujeitos de si, nas mais diversas culturas e espaços, em expressões variadas. Silvana Goellner (2010) questiona “como imaginar que o corpo existe independentemente da cultura na qual ele vive? Como acreditar que sua natureza, por si só, garante sua formação e desenvolvimento?” (p.73). Para a autora o corpo revela em si o tempo e o espaço no qual foi educado e produzido, e que as marcas que revelam essa educação permitem que sejamos, ao mesmo tempo, diferentes, mas também muito parecidos. Ela nos traz, como exemplo

Que, nos dias atuais, dificilmente encontramos uma mulher usando um espartilho com fins estéticos, ou seja, nenhuma menina hoje é educada a suportar os apertos de um espartilho de forma que sua ação sobre o corpo lhe confira um formato que, naquele tempo, era considerado desejável. Os constrangimentos corporais são outros (GOELLNER, 2010, p.73).

18 Expressão de Gênero: Stuart Hall (2006) diz de nossas identidades como aspectos que surgem de nosso

“pertencimento” a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais. O autor entende que as condições atuais da sociedade estão “fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”. (p. 9). O termo “Identidade de Gênero” é amplamente utilizado nos estudos de gênero e sexualidade, porém, ultimamente, tenho ouvido, durante eventos, palestras e conferências sobre os temas em questão, referências e discussões que remetem à possibilidade do uso do termo “Expressão de Gênero”, como algo que se refere às formas pelas quais cada um de nós manifesta sua masculinidade, feminilidade, e outras possibilidades.

Entretanto, há outras formas de apelos estéticos, ainda incômodos e dolorosos que são impostos aos corpos, como a prática de depilação, uso de cintas modeladoras, que podem ser extremamente apertadas em seus corpos - assemelhando-se nesse caso, aos espartilhos, citados pela autora - para se alcançar uma silhueta mais fina e considerada atraente, social ou sexualmente. Práticas que durante muito tempo se limitaram à construção do gênero feminino, estabelecendo uma fronteira demarcada do gênero masculino. Ainda podemos pensar em outros apelos estéticos como maquiagem, tinturas, tatuagens, piercings, e tantas outras manifestações estéticas e artísticas, que podem ser expressadas nos corpos, podendo se configurar em causas de dor e sofrimento, juntamente com prazer e satisfação. Mesmo quando essa dor é fruto de uma escolha vista e assumida como própria do sujeito, a partir de que momento ela é um efeito de uma imposição de uma estética normativa e dominante sobre os corpos?

Silvana Goellner (2010) também afirma que

A cultura de nosso tempo e a ciência por ela produzida e que também a produz, ao responsabilizar o indivíduo pelo cuidado de si, enfatiza, a todo momento, que somos o resultado de nossas opções. O que significa dizer que somos os responsáveis por nós mesmos, pelo nosso corpo, pela saúde e pela beleza que temos ou deixamos de ter(...) A individualização das aparências produzida a partir da valorização por vezes exacerbada da imagem transformada em performance tem levado os indivíduos a perceber que o corpo é o local primeiro da identidade, o locus a partir do qual cada um diz do seu íntimo da sua personalidade, das suas virtudes e defeitos (p.39).

Com frequência, esse padrão estético que atinge e produz corpos, se relaciona à sua sexualidade, em maior ou menor grau. Quem e como quer se apresentar ao objeto do desejo, no campo da sexualidade, muitas vezes define a maneira como os corpos são mostrados, exibidos, disfarçados, e qual sexualidade está expressa e presente. Jefrey Weeks (2010), nos lembra que

Na medida em que a sociedade se tornou mais e mais preocupada com as vidas de seus membros – pelo bem da uniformidade moral; da prosperidade econômica; da segurança nacional ou da higiene e da saúde -, ela se tornou cada vez mais preocupada com o disciplinamento dos corpos e com a vida sexual dos indivíduos (p.52).

Considerando a ênfase dada a essa forma de ver e discutir os corpos e as sexualidades, que, de acordo com Michel Foucault (2011) assume maior destaque a partir do século XVIII, com a “colocação do sexo em discurso”, este tema, “em vez de sofrer um processo de

restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação” (p.19). O corpo e a sexualidade como temas de discussão foram submetidos ao crivo da palavra, ao controle institucional sobre o que se diz e como se diz.

Para Foucault (2011), a partir do século XVIII, em torno e a propósito do sexo acontece uma verdadeira explosão discursiva. E o autor enfatiza que

É preciso ficar claro. Talvez tenha havido uma depuração – e bastante rigorosa – do vocabulário autorizado. Pode ser que se tenha codificado toda uma retórica da alusão e da metáfora. Novas regras de decência, sem dúvida alguma, filtraram as palavras: polícia dos enunciados. Controle também das enunciações: definiu-se de maneira muito mais estrita onde e quando não era possível falar dele; em que situações, entre quais locutores, e em que relações sociais; estabeleceram-se, assim, regiões, senão de silêncio absoluto, pelo menos de tato e discrição: entre pais e filhos, por exemplo, ou educadores e alunos, patrões e serviçais. É quase certo ter havido aí toda uma economia restritiva. Ela se integra nessa política da língua e da palavra – espontânea por um lado e deliberada por outro – que acompanhou as redistribuições sociais da época clássica (p.23-24).

Em outra obra - “Vigiar e Punir” - Michel Foucault (2009) apresenta as muitas estratégias e formas inventadas para “esquadrinhar os corpos, conhecê-los e escolarizá-los” (LOURO, 2015, p.2), e assim adequá-los por meio da repressão, do castigo, do controle, produzindo corpos cristãos, dóceis, com práticas que atendam ao modelo normativo vigente. Para Foucault (2011) a pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra, trazendo para discussão as sexualidades e prescrições a seu respeito. Para ele, “a interdição de certas palavras, a decência das expressões, todas as censuras do vocabulário poderiam muito bem ser apenas dispositivos secundários com relação a essa grande sujeição: maneiras de torná-la moralmente aceitável e tecnicamente útil” (FOUCAULT. 2011, p.27).

Também a esse respeito, Guacira Louro (2010) diz que muitas pessoas “consideram que a sexualidade é algo que todos nós, mulheres e homens, possuímos “naturalmente”” (p.11). Essa é uma ideia amplamente defendida, sobretudo por aqueles e aquelas que se apegam à origem e definição biológica dos corpos como o principal fator de definição e construção dos sujeitos. Para Weeks (2010) é comum, nas discussões a respeito das sexualidades e suas práticas, nos depararmos com “uma ênfase no sexo como um “instinto”, expressando as necessidades fundamentais do corpo” (p. 39). Porém, Guacira Louro (2010) enuncia que, ao aceitarmos essa ideia, da sexualidade como sendo um atributo

exclusivamente, ou majoritariamente natural/biológico, perde-se o sentido de argumentar a respeito de sua dimensão social e política ou a respeito de seu caráter construído.

Considerar a sexualidade como sendo algo “dado” pela natureza, inerente ao ser humano, nos levaria à adotar a concepção que ela usualmente se ancora apenas no corpo e na suposição de que todos vivemos nossos corpos da mesma forma. Entretanto, “é importante compreender que a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções (...), processos profundamente culturais e plurais” (LOURO, 2010, p.11). Dialogando com Silvana Goellner (2010), a autora solicita-nos que “lembremos: um corpo não é só um corpo. É ainda, o conjunto de signos que compõe sua produção” (p.37).

Mantendo o sentido de pensar corpo, gênero e sexualidade como produção, Judith Butler (2015), afirma que o sujeito é ele próprio produzido em – e como – uma matriz generificada de relações, e que isso “não significa descartar o sujeito, mas apenas perguntar pelas condições de sua emergência e operação” (p.160). Seguimos pensando com Silvana Goellner (2010), e percebemos que esta autora busca demonstrar que é importante que tenhamos contato com a vasta literatura produzida e disponibilizada, atualmente, que coaduna com a ideia de que a/as sexualidade/s, tem base nas possibilidades do corpo: o sentido e o peso que lhe atribuímos são, entretanto, modelados em situações sociais concretas. Para a autora, “isso tem profundas implicações para nossa compreensão do corpo, do sexo e das sexualidades, implicações que precisamos explorar” (p.40).

Para irmos um pouco mais além nesse entendimento, que tem o corpo como uma composição de artefatos e práticas culturais, podemos contar, mais uma vez, com Michel Foucault (2011) para quem a sexualidade é um dispositivo histórico. E Guacira Louro (2010), dialogando com Foucault, reforça que a sexualidade é esta invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a partir de múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normatizam, que instauram saberes que produzem “verdades” (p.11-12).

Falar do corpo, físico e social, é também falar da sexualidade vivenciada por e nesses corpos, e Foucault (2011) afirma que “cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo” (p.31). As linhas e fronteiras que definem esse padrão estão em constante deslocamento e negociação. Para Foucault, “o sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos” (2011, p.31), e, nos dias atuais, é frequente percebermos esse movimento político, muitas vezes institucionalizado, de tentativa de gerenciamento das identidades e práticas sexuais e expressões e circulação dos corpos.

Jefrey Weeks (2015) nos fala que

Até o século XVIII, o modelo hierárquico, de sexo único, certamente interpretava o corpo feminino como uma versão inferior e invertida do masculino (...) O esgotamento desse modelo, levou à sua substituição, no século XIX, por um modelo que enfatizava a existência de dois corpos marcadamente diferentes, a radical oposição das sexualidades masculina e feminina, o ciclo reprodutivo automático da mulher e sua falta de sensação sexual. Esse foi um momento crítico na reformulação das relações de gênero, porque sugeria a diferença absoluta de homens e mulheres: não mais um corpo parcialmente diferente, mas dois corpos singulares, o masculino e o feminino (p.57).

A prática do controle e gerenciamento dos corpos se faz em nome da necessidade de manutenção da ordem, de um status quo que atende a uma norma imposta e defendida por alguns e que deve ser cumprida por todos os demais, seguindo um modelo social onde a liberdade e as expressões são, ainda, muitas vezes cerceadas, dentro de padrões excludentes aos quais a escola pode servir como instrumento.

No documento claudeteimaculadadesouzagomes (páginas 46-51)