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Neste capítulo, temos a intenção de apresentar análises acerca das discussões específicas da Educação Física sobre práticas corporais e saúde, na perspectiva de relacioná-las às ações nas PICS destes profissionais e mesmo de outras áreas. Para tanto, também faremos um debate sobre corpo, suas concepções e práticas corporais.

Ao analisarmos o corpo em sua plenitude e complexidade, podemos notar que ele é a única “coisa” que possuímos, de fato, ao longo da nossa vida. Sendo assim, todas as escolhas que tomamos sobre ele, erradas ou certas, seguras ou perigosas, saudáveis ou adoecedoras, acabam incidindo sobre essa propriedade.

Reconhecemos também que as escolhas individuais que incidem sobre o corpo estão diretamente relacionadas à sociedade na qual estamos inseridos, havendo uma clara influência dos padrões e modelos de cada época sobre o ser. De toda sorte, há ainda uma certa autonomia sobre essas escolhas.

Durante toda nossa vida, acaba nos sendo negado a noção de que esse corpo nos pertence, à medida que somos submetidos a uma série de padrões externos, que determinam estilos, comportamentos, condutas e, assim, impõem práticas tidas como saudáveis, moralmente corretas, éticas, belas. Dessa forma, a partir desses padrões exteriores, o ser acaba sendo normatizado e mesmo julgado por suas aparentes escolhas e decisões acerca do próprio corpo, ora pelo que come e bebe, ora pelas relações e vestimentas. E assim esse corpo vai sendo adestrado para o contexto social vivido e as exigências determinadas pelo padrão social vigente.

Na estrutura de uma sociedade capitalista, na qual o trabalho é imperativo e a divisão de classes demarca os tipos de corpos e suas expressões e significados sociais, o corpo da massa trabalhadora tem arrancado suas possibilidades humanizadoras, sendo assemelhado a um equipamento de produção e colocado como “ferramenta” produtiva para o resto de sua vida “útil”. Isso, claro, sempre ao propósito de alguém que dessa “máquina” se apropria e dela tira lucro, até o tempo em que pode servir, descartando-a depois como peça sem utilidade.

Na lógica da medicina tradicional, esse corpo produtivo não adoece pelas relações sociais nocivas nem pela competição exacerbada pelo e para o sucesso financeiro; muito menos pelas injustiças sociais ou pela fome, miséria e insegurança; mas sim pela invasão viral ou bacteriana no organismo, é o que sempre nos foi dito. Por outro lado, a compreensão sanitarista nos faz crer que diversos fatores — sociais, econômicos, políticos, culturais, sanitários — acabam por influenciar a condição de saúde do sujeito, estando diretamente relacionados ao adoecimento da população.

A partir dessa construção, entendemos que o corpo precisa ser significado e mesmo ressignificado socialmente. Tal ação deve partir de uma necessária compreensão de que ele é indiscutivelmente do sujeito que o possui. Mesmo que sujeito a influências, o corpo é o sujeito e sua história.

É sabido que ao longo da trajetória humana, as civilizações buscaram controlar os corpos, sempre como formas de tê-los sob seu controle físico, moral, estético, educacional, sanitário e como ferramenta para trabalho. Para tal intento, diversas foram as formas utilizadas, passando por tentativas de controle do tempo, das experiências e vivências, dos valores e normas e das práticas sobre o corpo.

No ocidente, diversas manifestações culturais e práticas corporais foram utilizadas para tentar alcançar tal controle, a exemplo das práticas esportivas, das artes circenses, das formações militares, da ginástica etc. O visto era que o corpo precisava e ainda precisa servir a propósito social, e, portanto, deveria e deve ser adestrado para tal. Da mesma forma, no oriente, as práticas corporais estavam/estão sempre relacionadas à manutenção de valores sociais como a honra, o respeito, a disciplina etc. Isso é percebido nas artes marciais e sua prática.

No livro Educação física e saúde coletiva, lançado pelo Ministério do Esporte, que tem como organizadores os professores Alex Branco Fraga e Felipe Wachs, deparamo-nos com a seguinte citação da professora Madel Luz, no artigo por ela escrito:

[...] a educação física é herdeira de um conjunto de saberes e práticas tradicionais ligado ao treinamento do corpo e/ou seu adestramento, que antecedeu a medicina moderna e a clínica das especialidades. Esses Saberes/praticas podem estar ligados seja a tradição militar, seja ao esporte, seja a tradição circense, remontando a muitos séculos de atividade cultural ocidental, e possivelmente há milênios em culturas orientais, tais como a China e da Índia, através das artes marciais, por exemplo (2007, p. 11).

A partir dessa análise trazida pela autora, não queremos aqui estabelecer uma qualificação ou juízo de valores em relação às atividades e experiências ocidentais ou

orientais, nem tampouco apontar qual é o melhor tratamento para o corpo, queremos sim demostrar que as ações sobre o corpo, no caso, a partir de uma disciplina específica, a Educação Física, existem e que nelas são expressas as construções culturais, teóricas e políticas do sujeito que trabalha nessa área.

Enquanto os países do ocidente procuravam por respostas, “verdades” a respeito do corpo físico, dissecando-o, necropsiando-o, fragmentando-o, compartimentando-o, separando-o em mente, espírito e corpo, através da racionalidade científica, o oriente buscava uma aproximação com o divino, com o espírito, através da meditação, da respiração, do silêncio de seus mosteiros, da yoga,

do tai chi chuan, buscando a paz interior, na tentativa de conhecer o verdadeiro eu

através do equilíbrio enérgico. Embora ambas tenham proposições diferentes sobre o cuidado, a sua finalidade era restaurar o estado de “saúde” dos indivíduos.

Essas duas concepções, diferentes entre si, podem ser observadas nas representações artísticas adiante. A primeira, uma obra de Leonardo da Vinci do século XV, que é considerada o primeiro estudo das proporções do corpo humano da história, e que já mostra o corpo fragmentado. A segunda, uma representação simbólica de como funciona o entendimento vitalista na China, o yin e yang, que se caracteriza como duas energias opostas, que coexistem em tudo no universo, uma está dentro da outra (bem/mal, positivo/negativo, escuridão/claridade).

Figura 1 – O homem vitruviano, segundo a interpretação de Leonardo Da Vinci, 1490, Galleria

Figura 2 – Yin yang, representação artística da filosofia chinesa.

Tradicionalmente, em ambas as culturas, existe uma dualidade entre corpo e mente. A segunda toma um caráter de superioridade ao primeiro, ou seja, nosso corpo físico é a encarnação de um espírito, que, portanto, tem absoluto controle sobre o corpo e é hierarquicamente mais importante ele.

Essa compreensão, tida como comum e tradicional, é analisada no livro O

mito da atividade física e saúde, quando nos deparamos com o seguinte fragmento “A

mente é canonicamente superior a matéria. Ontologicamente superior, a mente, o desejo, a consciência ou o ego têm sido indicados como os guardiães e governantes do corpo, e o corpo deve ser criado” (PORTER 1992, p. 303 apud CARVALHO, 2004, p. 41). Tal escrito da obra tenta fazer uma leitura crítica dessa visão que divide o corpo e atribui domínio à chamada mente.

A partir dessa noção comum de “controle” da mente sobre o corpo, qualquer ação, comportamento ou sentimento desviante era entendida como um problema dessa mesma mente, que passava a ser vista como acometida por transtornos de denominações diferentes, sendo a ela tratada como culpada. Na linha dessa compreensão, ao longo dos tempos, os “problemas” da mente receberam várias denominações e expressões. Sobre isso, Carvalho (2004) traz a seguinte leitura:

Uma mulher em delírio, com jeito ‘extravagante’, e ‘esquisito’ e ‘duvidoso’ está ‘doente’, todos concordam. O diagnóstico, nos séculos XVI e XVII, suportaria possessão demoníaca, identificada a mulher como feiticeira ou bruxa, no período vitoriano, a reposta para qualquer anormalidade da consciência era caracterizada como ‘perturbação mental’; já no século XX a mulher poderia estar com sintomas de ‘doença mental’ (p. 42).

Uma visão sobre o corpo, sem dúvida de importância e influência social, é a religiosa. Nesta, notadamente a partir do pensamento judaico-cristão, o corpo é dualizado, sendo ele a expressão ou representação mais perfeita do pecado. As

escolhas a partir do espírito religioso eram e são divididas entre carne e espírito, em que se render aos prazeres da carne (corpo) se configurava e configura como pecado, enquanto resistir (espírito) faz o ser aproximar-se da divindade e santidade, fazendo- o ser purificado.

Tais conotações são expressas nos escritos religiosos tradicionais e, por isso, repercutem com força entre aqueles que professam religiões dessa tradição; e mesmo entre os que não acabam sendo influenciados, haja vista o peso social desses credos. Adiante, apontamos trechos de textos religiosos que trazem o tema “corpo”:

Gálatas 5:16: Portanto, vos afirmo: Vivei pelo Espírito, e de forma alguma satisfareis as vontades da carne! Porquanto a carne luta contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne. Eles se opõem um ao outro, de modo que não conseguis fazer o que quereis. Contudo, se sois guiados pelo Espírito, já não estais subjugados pela Lei (BÍBLIA SAGRADA).

João 6:63: É o Espírito quem dá vida; a carne em nada se aproveita; as palavras que Eu vos tenho dito são Espírito e são vida (BÍBLIA SAGRADA).

Mesmo com o movimento renascentista questionando esses dogmas através da ciência, a base social ocidental tradicional foi construída sob esses valores, agora não mais pela obrigatoriedade ou imposição, mas sim pelo convencimento, mesmo que apelativo nas questões mais frágeis do ser humano.

Dito isso, apontamos olhares às disciplinas que têm o corpo como objeto de estudo, o que foi necessário fazer para justificar ou tornar possível sua objetificação enquanto ciência. Vejamos o que Carvalho (2004) nos diz a respeito dessa colocação:

As disciplinas que se ‘apoderam‘ do corpo nesse objeto de estudo conseguiram, de maneira geral, apenas elaborar formulações, compreensões parciais sobre o corpo para, cada vez mais, fragmenta-lo, reduzi-lo, limita-lo. Um exemplo pode ser a frequente comparação que se faz do funcionamento das sociedades como o funcionamento do corpo – analises mecanicistas, organicistas - servindo o corpo muitas vezes como instrumento de diagnostico, ou prevenção, ou de terapia. Todavia, com dupla função: de instrumento, na sua relação com o trabalho, e de objeto como aquele no qual intervém. (p. 47).

Essa análise corrobora tudo que este texto vem trazendo ao longo dos capítulos. Cabe ressaltar que, embora existam fatos históricos de séculos distantes, as relações com o corpo são muito próximas da contemporaneidade.

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