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2.2 Participação popular na construção do SUS

3.1.1 Racionalidade médica e o surgimento da clínica moderna

Antes de entrarmos nos processos educacionais das PICS, é necessário a compreensão de alguns aspectos relacionados à saúde, e, para tal, recorremos à História para elucidá-los. Portanto, buscaremos entender o conceito de racionalidade médica e o surgimento da clínica moderna, além de alguns fatos importantes que circundam esses dois conceitos principais. Cabe ressaltar, no entanto, que não se trata de uma pesquisa histórica, logo, não haverá aqui aprofundamentos teóricos sobre o período a ser analisado.

Situamos nossa pesquisa entre os séculos XIV até o XVIII, época que foi marcada pelo Renascimento, que, entre tantas coisas, buscou uma ruptura na visão de organização do mundo e por consequência na ciência. Tal período foi marcado também por grandes mudanças nos costumes e nas ideias, e pelo surgimento de momentos inéditos na criação artística, filosófica, científica e tecnológica, apresentando ao mundo um novo jeito de “viver”, de ser e de estar neste hoje velho novo mundo.

A consolidação do capital, o surgimento de novas classes sociais, a quebra da hierarquia/tradição sanguínea (ou seja, a história de cada ser humano predeterminada a partir de onde nascesse), além do controle social e econômico, agora nas mãos da nova elite burguesa, dos banqueiros e comerciantes, que, entre outras coisas, buscavam dar a volta ao mundo para dominá-lo, configurou a formação de uma nova estrutura social. Paralelamente, houve também uma ruptura com a Igreja e seus dogmas, colocando em xeque a ideologia religiosa predominante na época, o que nos leva a refletir junto com a professora Madel Luz (1988), quando esta apresenta a ideia de que os limites de pensamento, crença, do ser e do estar podem ser contestados, questionados.

Essa revolução estrutural, principalmente na ciência, favoreceu o surgimento de alguns novos conceitos. Um deles, de fundamental importância para essa pesquisa, é o de racionalidade. A convicção Renascentista de que a razão era o único caminho para se chegar ao conhecimento e que a explicação de tudo e principalmente da Natureza6 poderia ser desvelada pela razão e pela ciência é assim compreendida

em um dos clássicos literários sobre racionalidades médicas:

A racionalidade moderna pode, assim, ser vista como tentativa de instaurar um pan-racionalismo, tanto na ordem do objetivo (‘Natureza’, ‘mundo’, ‘coisas’) como na ordem do subjetivo (‘homem’). Do ponto de vista do sujeito, entretanto, esta tentativa terá como efeito histórico a ruptura mais significativa da realidade moderna: a ruptura do próprio sujeito de conhecimento, seu estilhaçamento em compartimentos: razão, paixões, sentimentos e vontade. Ruptura que não é apenas epistemológica, mas social e psicológica, na medida em que institui instâncias socialmente exclusivas para o exercício de cada um desses compartimentos: a produção de verdades para a razão (ciência); as paixões para a política e a moral (ética); os sentimentos e os

6 “Natureza” (embora mais frequentemente como “meio ambiente“, ou “ecossistema“) é vista como o

útero que gera o homem e todos os seres vivos, portanto como algo de que se é ou se foi parte. Por outro lado, a natureza é a fonte de onde se veio, de onde se nasceu. Neste sentido, a natureza é origem, mas em face dela a humanidade é externalidade, cordão umbilical rompido, independência. O natural é um reino do qual o humano se diferencia e exterioriza. É assim, como alteridade em face do humano, que a Natureza é percebida a partir do Renascimento. Uma alteridade com a consistência de objeto, de coisa cognoscível e transformável (LUZ, 1998, p. 48).

sentidos para as artes (estéticas). Esta compartimentação terá o efeito de ‘negar’ socialmente o sujeito humano e ‘neutraliza-lo’ epistemologicamente, criando condições históricas para torná-lo, como a Natureza, objeto de ciência, isto é, para naturaliza-lo, torna-lo coisa passível de intervenção, de transformação, de modelação, de produção (LUZ, 1988, p. 55).

Percebemos então que, além do surgimento da racionalidade, um fato secundário de fundamental importância foi o começo da noção de segmentação do corpo humano, retirando ou compartimentando um todo (corpo) em diversos segmentos. Essa compartimentação é refletida até a contemporaneidade e ainda aparece como um dos conceitos básicos do modelo biomédico hegemônico, ou seja, o Homem é tratado de formar fragmentada e desconexa de suas emoções e história de vida.

A época em questão também foi marcada pelo antropocentrismo e pelo humanismo, o homem, tido como a criação mais perfeita de Deus, assumia o papel de centro do universo, sendo ele capaz de modificar, compreender e até mesmo dominar a natureza, detendo, portanto, o direito de agir sobre os corpos. Esse pensamento provocou uma revolução no ensino das universidades, quando houve a introdução de disciplinas como poesia, história e filosofia.

O movimento de naturalização do corpo, ou seja, a ideia de que se pode intervir sobre ele, com uma compreensão de que pode ser consertado é o um dos primeiros passos para o surgimento do segundo marco histórico relevante para esse capítulo, a clínica moderna.

A razão passou a ser a grande produtora de verdades, muito a partir das experiências e a utilização do método para decodificar seus significados, buscando ordenar sentidos, através da construção de uma série de passos e operações, que utilizaram uma ordem lógica, para a produção de “verdades”. Tal fundamento se tornou marcante, ao ponto de determinar que seguir rigorosamente todos esses passos era mais importante do que a própria veracidade do fato a ser estudado ou até mesmo do resultado. Ou seja, o emaranhado de linhas e possibilidades tem agora o seu organizador: a ciência.

Esse movimento resulta em reordenação social e epistemológica das outras formas de expressão humana de significados e de produção de verdades, como, por exemplos, as artes, a política, a moral, a religião e a filosofia (LUZ, 1998).

Todos esses eventos — naturalização, fragmentação/compartimentação, racionalização e reordenação — culminaram no que chamaremos aqui de

reducionismo da concepção de corpo, que, entre outras coisas, naquele contexto histórico e de certa forma até hoje, é entendido como partes (órgão, membros etc.) independentes e, portanto, possíveis de realizar a troca. Ou seja, o corpo mecanizado, articulado e animado.

Para que esta ruptura do mecanismo, no nível do saber médico e da prática da clínica, se realize, será necessário, em primeiro lugar, que a forma humana seja vista como máquina animada, com a reforma da Anatomia, e que o funcionamento do corpo será pensado, com a nova fisiologia, como obra de engenharia em movimento (LUZ, 1998, p. 122).

Essa lógica teve como efeito transformar ou conduzir a medicina para a construção de um discurso disciplinar sobre a doença. Percebam que não irá se teorizar mais sobre a saúde, cura ou vida. A busca pela compreensão da doença e de sua terapêutica se dará tão somente nos leitos desses doentes e nos microscópios já produzidos na época, sempre à procura de evidências acima de tudo. De certa forma e não por acaso, até hoje as bases das áreas de saúde são anatomia e patologia. A eterna guerra entre bactérias e vírus que invadem o organismo e anticorpos que tentam combater essa invasão. Isso fica muito claro na seguinte afirmação:

O mais importante aqui, a questão epistemológica fundamental, é que a medicina, tornando-se uma ciência das doenças, vivendo da morte, transforma a questão da vida – e do homem vivo, embora doente - numa questão metafisica, portanto supérflua ´para o conhecimento. Não considerando a questão da vida em termos teóricos do saber e da prática clínica, a medicina aos poucos verá na observação dos indivíduos doentes, homens vivos, uma fonte de confusão, de desconhecimento (LUZ, 1998, p. 128).

Esse breve passeio histórico trouxe a compreensão de como se deu a construção do entendimento, e consequentemente da terapêutica dos indivíduos doentes na medicina alopática moderna. Historicamente, o indivíduo nunca foi um sujeito ativo no seu processo de saúde/doença, nem ao menos foi educado para isso. Ao contrário, normalmente, alguém que detém um conhecimento superior sobre o corpo e seu funcionamento de maneira geral e generalizada toma as decisões sobre a saúde do indivíduo, desconsiderando sua história de vida e seus hábitos, diagnosticando a doença pura e simplesmente e a tratando com remédios. Em destaque, duas citações relacionadas a essa compreensão:

No entanto a elaboração da doença, como a do corpo doente, é fruto de uma história de cerca de três séculos, história que pode explicar por que no século XIX a disciplina das doenças torna-se a ciência do normal e do patológico, porque essas duas categorias têm profunda imbricação com a ciência da sociedade, a Sociologia, [...] (LUZ, 1998, p. 128).

Se as ciências do homem apareceram no prolongamento das ciências da vida, é talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas é também porque o estavam medicamente; sem dúvida por transferência, importação e, muitas vezes metáfora, as ciências do homem, utilizaram conceitos formados pelos biólogos; mas o objeto que eles se davam (o homem, suas condutas, suas realizações individuais e sociais) constituía, portanto, um campo dividido segundo o princípio do normal e do patológico. Daí o caráter singular das ciências do homem, impossíveis de separar da negatividade em que apareceram, mas também ligadas a positividade que situam, implicitamente, como norma (FOUCAULT, 1963, p. 40).

Entendemos assim que a área médica e seus modos de intervenção sobre o ser humano se pautaram, historicamente, em ações que não envolviam o sujeito em suas decisões, cabendo isso ao especialista iluminado, que partia da premissa de um corpo fragmentado, excluído de qualquer contexto mais amplo, que não apenas o biológico.

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