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2.2 Participação popular na construção do SUS

3.1.2 PICS e educação em saúde/autocuidado

Tendo trazido um contexto histórico do surgimento do conceito de racionalidade médica e da clínica moderna, podemos agora tentar traçar um paralelo com as PICS. Apesar de em sua grande maioria se constituírem como práticas milenares e orientais, as concepções de saúde presentes na lógica médica das PICS foram omitidas culturalmente e teoricamente da história ocidental e, por consequência, na grande maioria das vezes sua terapêutica é entendida como magia, charlatanismo, placebo ou ainda considerada sem comprovação científica, portanto, não justificável sua utilização no SUS segundo a medicina tradicional. Ainda assim, as PICS vêm ganhado espaço nas terapêuticas adotadas nos países ocidentais no último século e no atual.

Partido do princípio de que as PICS buscam sua terapêutica baseada no autocuidado/educação em saúde e tomando como base a concepção educacional de Paulo Freire, que procura, dentre outras coisas, estabelecer uma relação horizontal entre educador-educando, defendendo que ambos são sujeitos ativos no processo educacional, é possível compreender de forma mais fácil a atuação das PICS nos processos de saúde/doença dos indivíduos.

Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em

que crescem juntos e em que os ‘argumentos de autoridade’ já, não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas (FREIRE, 1970, p. 39).

As PICS, de maneira geral, não atuam sobre a doença somente, elas sempre irão de alguma forma buscar a criação de vínculo entre o terapeuta e o indivíduo, a compreensão da sua história de vida, os processos sociais, culturais, hábitos etc. que o levaram àquela condição de saúde e dessa forma sua terapêutica partirá sempre de uma reelaboração da consciência sobre o corpo a ser tratado. Assim, continuando nas contribuições de Freire (1987), “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (p. 79).

Retornando ao exemplo da campanha contra o tabagismo já citada, o indivíduo constrói o habito de fumar não inconscientemente ou apenas por uma explicação química de dependência à nicotina. Na verdade, ali estão imbricadas diversas histórias da vida daquele sujeito e do “mundo” ao seu redor; talvez seja fruto de decepções ou alegrias, de traumas vividos, ou apenas para ser aceito socialmente na época em que viveu sua juventude. Portanto, entendemos que dificilmente se aplica, num cenário de realidade, o slogan “Fumar você aprende. Parar de fumar a gente ensina”. Na verdade, tal mudança de relação com este e outros vícios, passa necessariamente por um processo de autoeducação, de um envolvimento pessoal no processo terapêutico, e não apenas a partir de uma ação externa se modificaria o envolvimento do sujeito com o tabagismo.

Dentre as práticas terapêuticas das PICS, temos como exemplo a homeopatia, que compreende o processo de doença como o desequilíbrio da força vital do indivíduo e que tem como suas categorias centrais essa mesma força vital7, o

miasma8 e psora9. Embora suas bases disciplinares advenham da física, química e da

fisiologia, assim como a medicina alopática, a homeopatia não procura explicar a doença e suas causas. Para ela, é do o indivíduo doente que se parte para elaboração do tratamento a ser adotado, trazendo uma noção sobre a saúde distinta da medicina

7 É a força vital uma energia não corpórea, provinda da intimidade do organismo, do centro à periferia,

que pode ser perturbada por um fator mórbido.

8 Os miasmas constituem etapas fisiopatológicas de desequilíbrio inicial que progridem devido à

persistência do ambiente hostil, de sobrecargas internas e de agressões diversas.

9 Modo reacional acionado por fatores etiológicos, que ocorre quando há desequilíbrio orgânico,

havendo aumento das reações fisiológicas, no sentido de eliminar toxinas e antígenos, aumentando as eliminações nos diferentes emunctórios ou em vias anormais de drenagem.

hegemônica, a alopática, embora tenham as mesmas bases teóricas. Ainda nessa lógica, a terapêutica homeopática, segundo Luz:

[...] afirma que os eventos mórbidos conhecidos como doenças nada mais são do que a expressão sintomática, visível do desequilíbrio (ou ‘desarmonia’) da vida. A expressão sintomática não corresponde nenhuma entidade. O papel da medicina é concentrar-se nessa Gestalt visível exterior, mutável e variável de indivíduo para indivíduo (e em cada indivíduo, ao longo de sua vida), para eliminar o processo mórbido como um todo, sem buscar causas nem entidades (LUZ, 1998, p. 167).

Nas PICS, há uma busca pela compreensão contextual do indivíduo doente, e, consequentemente, a escolha terapêutica passará pela coparticipação no processo de cura desse indivíduo. Associado a isso, existirá um processo educacional nessa terapia não somente na construção de hábitos saudáveis ou na adesão medicamentosa (tomar medicamentos na hora certa), mas sim na busca conjunta da explicação do adoecimento, o que levou aquele sujeito ao estado mórbido e de como se pode sair dele, nunca desassociado de um processo de práticas em parceria com o terapeuta.

Tomemos agora como exemplo o Lian Gong, prática corporal terapêutica da Medicina Tradicional Chinesa (MTC). Ela une a medicina terapêutica e a prática corporal com o intuito de desenvolver atividades de prevenção de agravos e promoção da saúde, assim como o tratamento de dores no pescoço, ombros, cintura, pernas e também doenças crônicas. O Lian Gong é fruto de constantes pesquisas das heranças culturais — a MTC, antigos exercícios terapêuticos e as artes guerreiras tradicionais (Wu Shu) — e a reflexão sobre os resultados de sua aplicação no campo terapêutico, ao longo de mais de 40 anos de prática.

É relevante notar que essa terapia precisa de uma coisa fundamental para que aconteça, os corpos presentes. E, para que esses corpos estejam presentes para realização da prática corporal, os indivíduos precisam compreender o seu protagonismo no seu processo de saúde/doença e assim levar seu corpo.

Ao chegar lá, não terá alguém que fará por ele, mas sim alguém que fará com ele os exercícios propostos. Ou seja, parte de uma nova compreensão de saúde daquele “corpo”, a busca pela saúde antes mesmo da instauração da doença, a compreensão de que ele agora também é responsável pela sua saúde e, portanto, é ativo nesse processo e necessita agir para tal. Por fim, se não houver a coparticipação, não haverá terapêutica e, portanto, não haverá cura ou promoção da saúde. Tudo isso não seria possível se não houvesse processos educacionais presentes nessa relação,

mediando essa nova percepção de saúde do indivíduo e a construção ou adaptação de novos hábitos.

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