• Nenhum resultado encontrado

CORPOS INANIMADOS: impostura e laço social

No documento CORPO: ficção, saber, verdade (páginas 80-96)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr2

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade,

novembro de 2015, em Porto Alegre.

2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto

APPOA; Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. E-mail: nortonjr@brturbo.com.br

Corpos inanimados: impostura e laço social

C

orpos inanimados parece um título que vai na contramão do cenário con- temporâneo, aparentemente, tão impregnado de uma excitação maníaca que visa tensionar limites a todo instante. As queixas referentes às insônias cotidianas, a falta de tempo e o imperativo de moldar um corpo ideal são co- muns em nossos consultórios. Através das insatisfações, impossibilidades ou hesitações neuróticas, o indivíduo interroga suas formas mediante uma pro- fusão imaginária de corpos que requerem novas modelagens subjetivas na atualidade: puxa, estica, recorta, preenche, costura, contorna, sutura, monta, transveste, silicona, etc. Como visto, poderíamos falar também, de corpos excessivamente animados.

Logo, se de um lado as palavras são insuficientes para falar das possi- bilidades de intervir no corpo; de outro, do ponto de vista psicanalítico, não há disjunção possível entre corpo e linguagem, pois o corpo no ser falante é um efeito do processo de simbolização e investimento libidinal. Assim, para todo falasser o esboço de um corpo é inicialmente linguageiro, efeito do sig- nificante. Desde Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Lacan ([1966]1998) situa o corpo no centro da clínica psicanalítica. Ao tomar a palavra, o analisante coloca em questão tanto o real do corpo, quanto o imaginário de seu esquema psíquico. Por isso, a linguagem é corpo. Entretanto, quando Lacan aborda essa questão através dos três regis- tros R.S.I, demonstra-nos que, apesar de possuirmos um corpo, não o so- mos. Trata-se de uma simples observação que nos coloca na posição de “locatários precários de um corpo” (Pommier, 2014)3, pois a todo instante ele nos devolve um resto que sempre escapa. Nesta condição, algo falha e faz sintoma. Desse modo, farei um recorte em torno de corpos inanimados através de duas singulares posições subjetivas que alicerçam o discurso ca- pitalista na atualidade: a neurose obsessiva e a perversão. Para colocá-las em questão, proponho interrogar a instrumentalização destinada ao corpo na lógica social contemporânea e sua relação com o saber.

O inanimado na neurose obsessiva e na perversão: posições distintas em relação ao saber

Ao abordar a perversão, Lacan ([1966]1998) situou o imperativo de se fazer instrumento do gozo do Outro, tomando o corpo do semelhante como

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

um objeto inanimado. Mas, como sabemos também, tomar o outro desta for- ma não se trata de uma exclusividade da perversão. Desde Freud, podemos constatar o quanto o obsessivo tende a colocar o outro na condição inani- mada, pois ele também irá gozar ao deixar o parceiro imóvel, assim como, facilmente se desorganiza quando este se movimenta. Diante disso, para falar das relações entre corpos inanimados e a impostura no cenário con- temporâneo, precisarei, primeiro, colocar em discussão as diferenças entre o inanimado na neurose obsessiva em relação à perversão e, posteriormente, problematizar suas implicações no laço social.

Mesmo advertido de que a tentação em estabelecer fronteiras psico- patológicas fixas não se sustenta, o percurso se impôs. Talvez, porque este parece ser um dos impasses, tanto na neurose obsessiva quanto na per- versão, por sinal, muito atual, a saber: fazer fronteira com o corpo do outro, criar muros, cercas, divisórias, ou seja, demarcar os territórios de gozo que alicerçam a lógica capitalista na atualidade. Esta sustenta um discurso que tende a desmentir a diferença e a recusar as coisas que dizem respeito ao amor, jogando o sujeito na condição de ignorante em relação ao efeito que a alienação ao objeto de consumo lhe causa. Assim, o inanimado, seja em sua vertente perversa, seja na obsessiva, não nos causa estranheza. Coloca-se em questão a amarração do corpo e do discurso. Lacan estava muito ciente disso, pois para ele o discurso não é um laço natural, gregário; pelo contrário, o discurso é o que torna possível o laço social.

Ao reconhecer a fixação diante de lembranças plásticas de padecimen- to, Freud ([1909]2005) localizou na neurose obsessiva as impossibilidades de sustentação do desejo, haja vista a implacável manutenção da incerteza. A escuta de Ernest Lanser ensinou a Freud: o inferno do qual padece o ob- sessivo é que seus pensamentos não cedem, pois suas lembranças serão vívidas. Quando o obsessivo fala, ele enuncia um texto como se estivesse engolfado pela cena vivenciada, como se não houvesse um gap entre o vi- vido e o revivido, entre a vivência e a experiência. Por isso, o vivido se en- contra encerrado na cadeia do finito, não podendo sofrer qualquer espécie de reparação. Sua história está congelada nos detalhes que capturam suas modalidades de gozo.

Ao tocar na ambiguidade do obsessivo em relação ao amor, Lacan ([1963]2005) refere que ele faz da mulher uma dama mumificada num pe- destal; jogando-a em sua economia excrementícia. Sua amada será preser- vada enquanto ele puder anular a sua diferença, submetendo-a à demanda idealizada no campo do Outro. Caso for preciso deixar o outro imóvel para responder a isso, ele não medirá esforços. Na tentativa de compreender as vicissitudes do amor na neurose obsessiva, refere:

Corpos inanimados: impostura e laço social

[...] É que o que ele pretende que se ame é uma certa imagem sua. Essa imagem, ele a oferece ao outro. A manutenção desta imagem é o que faz o obsessivo apegar-se a manter toda uma distância de si mesmo, distância que é justamente o mais difícil de reduzir na análise [....] Seu desejo nunca é autorizado a se manifestar como ato (Lacan, [1963]2005, p.350-351).

O ideal do obsessivo se sustenta nas impossibilidades do desejar. As- sim, o gozo em relação ao inanimado na neurose obsessiva e na perversão será diferente, haja vista a singular posição do sujeito em relação à cas- tração. Neste aspecto, ao desmenti-la, o perverso se situa numa posição distinta, pois supõe deter o saber sobre o gozo do Outro, a ponto de se fazer seu suplemento imaginário. Portanto, ele irá jogar o semelhante na condição inanimada com o propósito de localizar a castração do outro, atingindo o seu pudor a ponto de tanto lhe produzir angústia, quanto de se colocar no lugar daquele que irá obturar a falta. Esta busca será o seu imperativo categórico. Em contrapartida, quando o obsessivo situa o outro enquanto objeto inanima- do, ele o faz com o intuito de que nada saia do seu controle, simplesmente porque o desejar tende a defrontá-lo com a dimensão do trágico. Escravo de uma imagem idealizada do Outro, o obsessivo torna-se mestre no que diz respeito à demanda e ignorante sobre o desejo. Logo, desejar é uma verda- deira tragédia4 para ele, pois, caso goze de alguma realização, parece estar sempre suposto que algo ruim vai, inevitavelmente, ocorrer.

Ao se interrogar sobre o inanimado na neurose e na perversão, Calliga- ris (1986) toma como ponto de partida o ápice desta questão: a necrofilia. Ao usurpar um cadáver, o perverso dispõe de uma instrumentalização, diferente do neurótico, pois se trata de um saber que “ele sabe tanto ser, quanto em- purrar seu parceiro”.

Na necrofilia, o perverso encontra no morto o instrumento adequa- do ao gozo de seu Outro, instrumento que ele conhece e que, em última instância, sabe ser. Até aí nada de novo: só que o cadáver está no horizonte para o qual o perverso empurra seu parceiro. Po- demos objetar dizendo que, para o neurótico também, o objeto, o pedaço do corpo do Outro – o inanimado mesmo – é o fundo do ser

4 Para uma discussão mais detalhada sobre a relação do obsessivo com a questão do trágico,

sugerimos a leitura de nosso artigo A constituição do desejo no obsessivo e sua relação com a

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

e que lhe acontece de buscá-lo em seu parceiro, indo até mesmo a rebaixá-lo a essa condição. Vemos então que não é do mesmo inanimado que se trata para o perverso: o objeto se distingue, para o neurótico, do instrumento, de seu uso instrumental; e isto porque – diferentemente do perverso – o neurótico não sabe como fazer um “bom” uso dele (Calligaris, 1986, p.65).

Para o autor, as diferenças entre o neurótico e o perverso em relação ao gozo diante do inanimado é justamente a questão do saber, pois na neurose o sujeito não sabe como fazer uso deste, a castração o impede; ao passo que na perversão, ao reconhecer e desmentir a castração, simultaneamente, o perverso se situa desde uma posição de saber sobre o gozo perdido. Como apontou Lacan ([1966]1998), ele imagina-se ser o Outro para garantir seu gozo. Portanto, o saber sobre o gozo situa a posição do perverso em relação à castração, a ponto de jogá-lo no engodo de restituir ao Outro o objeto per- dido. Entretanto, o obsessivo, ao tomar o corpo do semelhante como objeto, ele o faz em função do desamparo e da angústia de ser devorado pela de- manda do Outro.

Apesar da pertinência clínica de se fazerem distinções psicopatológi- cas, considerando as diferentes formas do inanimado se materializar, torna- -se necessário reconhecer o quanto essas precisões não se sustentam; pelo motivo de que fronteiras diagnósticas rígidas demonstram-se frágeis. Isto nos faz pensar na importância de considerar o quanto a neurose obsessiva e a perversão podem estar amalgamadas no laço social contemporâneo. A im- postura no laço com o outro irá nos ajudar a explicitar melhor essa questão. Impostura e laço social: obsessivaperversidade

Na introdução, mencionei o quanto a neurose obsessiva e a perversão alicerçam o discurso capitalista na atualidade. Nesta direção, trago-lhes uma experiência para sustentar a proposição de que vivemos em tempos de ob-

sessivaperversidade no laço social.

Recentemente fui convidado para intervir em um grupo de trabalho com muitos conflitos. Tive a oportunidade de conhecer os diretores da organiza- ção no mesmo dia em que foi apresentado o “Plano de Participação em Re- sultados” para os colaboradores da empresa. Neste, os diretores capazes de atingir metas altamente arrojadas poderiam dispor de 06 a 10 salários extras no final do ano. Chegado a um determinado número, o “ganho” poderia se multiplicar em dez vezes. O leitor pode imaginar o quanto o estresse, a com- petição, a alienação ao labor e o adoecimento psíquico são apenas algumas

Corpos inanimados: impostura e laço social

das consequências da loucura posta em questão, pois, conforme a fala do presidente, eles deveriam se ocupar com isso: “24 horas por dia durante os 365 dias do ano”. O “dever” em questão exigia que todos os espaços e inter- valos fossem preenchidos em busca da meta.

Estes projetos são comuns em contextos que buscam a tão almejada alta performance de seus executivos. Entretanto, algo me deixou impactado, a saber, a imagem apresentada pelo consultor para explicitar a lógica de tal plano. Após detalhar cálculos complexos e ser interpelado para esclarecer dúvidas, ele colocou um slide com o desenho capaz de sintetizar tudo: era a imagem de um burro entre duas cenouras. O animal representava “aqueles” que estariam em busca das metas: os diretores. A cenoura colocada a sua frente, exatamente na altura da boca, materializava a meta a ser atingida: o bônus a ser alcançado. Por outro lado, a cenoura de trás, na altura do ânus, tinha como propósito situar uma forma de punição, ou seja, se o burrinho não se mexer...

Sedução e pornografia coabitam na imagem que, através de um tecni- cismo medíocre, joga a todos na condição de burro inanimado. Verdadeira impostura. Pode-se também, com uma pitada de ingenuidade, ler a materia- lização de uma reducionista lógica binária, quando correr é bom, parar, ruim. Mas, tão surpreendente quanto o burro entre duas cenouras foi a motivação dos colaboradores após a apresentação do plano, pois demonstravam plena disposição para colocar em prática o que acabaram de ver e ouvir. Vejam! Não há tempo para pensar, apenas executar. A coerção tecnicista exige so- mente a execução do imperativo a ser alcançado: a meta. Neste instante, tudo se resume a cifras. Desse modo, os números se sobrepõem a tal ponto de destituir qualquer possibilidade de narrativa.

Gori (2013), no livro La fabrique des imposteurs5, ajuda-nos a pensar o quanto esta proposição coloca em cena a “proletarização das condições de vida do indivíduo”. Segundo o autor, cada sociedade tem o tipo de impostor que merece, em função de seus valores, rituais e normas. Assim, o próprio dos impostores é ser uma espécie de “mártir da comédia social contempo- rânea”, pois são “esponjas vivas” que “absorvem os valores que organizam o drama social”. Portanto, há uma impostura em responder a demandas de forma alienada, pelo simples fato de colocar em cena “a proletarização da capacidade de pensar”.

5 Ver também: youtube, Université Permanente. www.up.univ-nantes.fr. Roland Gori. La fabrique

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

As formulações de Gori interrogam as respostas dos indivíduos frente aos imperativos e às demandas sociais impostas na atualidade. Estamos de acordo com o psicanalista quando nos diz o quanto a sociedade da norma se preocupa em calibrar tanto os comportamentos quanto os modos de vida, a ponto de o impostor se constituir como uma espécie de solução às exigên- cias e normas sociais. Isto nos faz pensar que a tão aclamada “resiliência” como ideal de saúde psíquica, ou seja, a habilidade para se adaptar a novos contextos, superar traumas, aceitar desafios e saltar obstáculos, pode ser lida também, como resposta sintomática a demandas ortopédicas e alienan- tes. Nem sempre precisamos ser “resilientes”. Pelo contrário, por vezes, faz- -se imprescindível ser resistente para fazer face às tiranias e aos saberes totalizantes. Responder ao imperativo de resiliência, como uma meta a ser alcançada a todo instante pode aniquilar a nossa capacidade de exercitar o pensamento crítico a tal ponto de alienação de simplesmente respondermos a demandas sem qualquer interrogação.

Como afirmei anteriormente, o capitalismo selvagem não permite fron- teiras rígidas entre perversão e neurose obsessiva. Neste caso, resta-nos reconhecer a obsessivaperversidade do laço social. Lacan ([1963]1998) já estava advertido disto quando apontou a familiaridade lógica que perpassa- va a incidência das teses de Kant na alcova de Sade. Então, retomando a imagem do burro entre duas cenouras, proponho as seguintes questões: a voz da meta imposta seria a incidência da obsessiva ação moral kantiana na alcova organizacional? O imperativo da meta venderia a ilusão de restituir algo perdido? Cenouras à parte, essas demandas tendem a fazer do corpo do outro um burrico inanimado, pois, ao colocar em causa a disjunção do corpo e do discurso, apesar de pretender um pacto – com vistas à calibragem de comportamentos em busca de metas –, não faz laço social. Vê-se aí uma modalidade da pornografia contemporânea: o mais de gozar implícito na bus- ca alucinada de superação, quando o sujeito consome a si mesmo. Diante disso, o imperativo de superar limites não é somente um ideal, tornou-se uma compulsão masturbatória ordinária, colocando em cena uma forma de gozo que não reconhece a nossa condição, estruturante, de “locatários precários de um corpo”.

A ética psicanalítica nos convoca a resistir tanto às pequenas tiranias, quanto aos imperativos que vendem a pretensão de saber fazer com o gozo do outro. Logo, por vezes, resistência, ao invés de resiliência, pode ser uma forma de manter ativa a capacidade de pensar criticamente e fazer face à impostura de responder a demandas alienantes.

Corpos inanimados: impostura e laço social

REFERÊNCIAS

CALLIGARIS, C. Hipótese sobre o fantasma na cura psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.

FREUD, S. A propósito de um caso de neurosis obsesiva (1909) In:______. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu editores, 2005, v.10.

GORI, R. La fabrique des imposteurs. Paris: Éditions les Liens qui Libèrent, 2013. LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

______. Kant com Sade [1963]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

______. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano [1966]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ROSA Jr., N. C. D. da. A constituição do desejo no obsessivo e sua relação com a angústia. Correio da APPOA. Porto Alegre, n.178, out.2008, p.10-24.

Recebido em 22/08/2016 Aceito em 02/12/2016 Revisado por Joana Horst

TEXTOS

Resumo: Este texto pretende colocar alguns interrogantes presentes na atual discussão em torno das questões de gênero, em uma articulação com a psicaná- lise. Busca interrogar a noção de binarismo de gênero, assim como seu lugar e pertinência no campo da psicanálise.

Palavras-chave: gênero, sexualidade, binarismo, identidade, psicanálise. GENDERS AND NUMBERS

Abstract: This text intends to expose some interrogations which are present in the contemporary discussions about the so called gender questions, in an articula- tion with psychoanalysis. It aims to question the notion of gender binarism, as well as its place and pertinency in the field of psychoanalysis.

Keywords: gender, sexuality, binarism, identity, psychoanalysis.

GÊNERO E NÚMERO

1

Paulo Gleich2

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade,

novembro de 2015, em Porto Alegre.

2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA;

Jornalista e Psicólogo (UFRGS). E-mail: paulogleich@yahoo.com

Gênero e número

N

este trabalho, gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre algo que tem interpelado a todos, tanto no cotidiano, como na clínica e nas formulações com que sustentamos nossa prática. Trata-se daquilo que na atualidade se convencionou chamar questões de gênero. Se essas questões antes se restringiam a âmbitos restritos, como o acadêmico ou o de grupos minoritários, hoje elas se fazem escutar em todas as partes: nas salas de aula, nas redes sociais, nas conversas de família; seja pelo crescimento sig- nificativo do movimento e das reivindicações feministas, seja pela conquista por homossexuais de direitos até então exclusivos de heterossexuais, seja pelo reconhecimento social de pessoas “trans” não mais como doentes, mas, sim, como outra forma de habitar o corpo e o sexo.

A reivindicação de um lugar no campo social para esses sujeitos, que até então ficavam à margem das formações discursivas capitaneadas por um pai em constante declínio, tem permeado as redes sociais, as produ- ções ficcionais, os discursos veiculados pela mídia – suportes do Outro em nossos tempos. Em um movimento de dupla via, essas mudanças no discurso ressignificam a própria experiência desses sujeitos, na medida em que se produzem novos lugares de enunciação e formas de viver. A polifo- nia dessas vozes e reivindicações tem causado efeitos dos mais variados matizes, desde o apoio fervoroso ao rechaço violento. Como em outras dis- cussões na esfera pública, constitui-se aí um verdadeiro campo de batalha. Se, por um lado, avançam as mudanças e rupturas propostas por essas discursividades, por outro há respostas violentas a esses deslocamentos, muitas vezes com amparo em líderes religiosos e políticos que, com fre- quência, fazem uso perverso de sua condição de defensores da “tradição” para seu próprio bem.

Seja como for o desenlace dessa guerra, é inegável que há uma trans- formação em curso no que tange às questões relativas ao gênero. Os efeitos disso já se fazem notar, como mostra uma pesquisa, elaborada por Melo (2015), com jovens brasileiros entre 18 e 34 anos, publicada recentemente no jornal Zero Hora. Aumentou sensivelmente o número de pessoas que não se declaram heterossexuais: um terço dos homens e mulheres consultados se dizem homo ou bissexuais, em contraste com uma ideia ainda vigente no imaginário popular, que situa essa cifra em torno de 10%. Também é muito significativa a aceitação de formatos diferentes de família, como as homo e monoparentais ou recompostas.

Junto com a difusão da ideia de que a naturalidade do binarismo de gênero é produto da cultura, e que isso produz exclusão de muitos, vem um movimento para desconstruir as categorias vigentes de masculino e feminino,

No documento CORPO: ficção, saber, verdade (páginas 80-96)

Documentos relacionados