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CORPO: ficção, saber, verdade

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Academic year: 2021

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ISSN 1516-9162 REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

n. 49, jul./dez. 2015

CORPO: ficção, saber, verdade

VOLUME 1

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Porto Alegre

(2)

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

EXPEDIENTE Publicação Interna n. 49, jul./dez. 2015

Título deste número:

Corpo: ficção, saber, verdade. Vol. 1

Editores:

Deborah Nagel Pinho e Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

Comissão Editorial:

Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Deborah Nagel Pinho, Glaucia Escalier Braga, Joana Horst, Maria Ângela Bulhões, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

e Otávio Augusto Winck Nunes

Colaboradores deste número:

Comissão de Aperiódicos, Marta Pedó, Maria Lucia M. Stein e Luiza Bulhões Olmedo

Editoração:

Jaqueline Maciel Nascente

Consultoria linguística:

Dino del Pino

Capa:

Clóvis Borba

Linha Editorial:

A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922

E-mail: appoa@appoa.com.br - Home-page: www.appoa.com.br

ISSN 1516-9162

R454

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação

Psicanalítica de Porto Alegre. Vol. 1, n. 1 (1990). Porto Alegre: APPOA, 1990, -Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05) CDD 616.891.7

Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837

Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http:// www.bvs-psi.org.br/)

Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br Impressa em março 2017. Tiragem 500 exemplares.

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CORPO: ficção, saber, verdade

VOLUME 1

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(5)

SUMÁRIO

EDITORIAL ... 07

TEXTOS Um Outro corpo Another body

Otávio Augusto Winck Nunes ... 09 Diário de inverno: memórias

das inscrições no corpo Winter journal: memories of the inscriptions on the body

Lucia Serrano Pereira ... 17

Otro cuerpo: entre o real e o ficcional

na arte de Mario Ayguavives Otro cuerpo: between the real and the fictional in Mario Ayguavives’s art

Ana Lúcia Mandelli de Marsillac ... 26 Ritmo e melodia: o corpo sob

o efeito do significante musical Rhythm and Melody: the body under the effect of the musical signifier

Denise Mairesse ... 35 Corpo real, corpo simbólico,

corpo imaginário

Real body, symbolic body, imaginary body Ligia Gomes Víctora ... 44 O corpo no litoral da ciência

The body in the littoral of the science

Ana Costa ... 57 Pecado e sacrifício

Sin and sacrifice

Sílvia Raimundi Ferreira ... 66 Corpo individual, corpo social:

passagens discursivas

The body of the individual, the body of society: discursive passages

Alfredo Gil ... 71

Corpos inanimados: impostura e laço social

Inanimate bodies: imposture and social bounds Norton Cezar Dal Follo da Rosa Junior.... 80 Gênero e número

Genders and numbers

Paulo Gleich ... 88 Adolescência:

a sexuação em três tempos Adolescence: the sexuation in three stages Fernanda Pereira Breda ... 97 Corpo e discurso: os efeitos da

escritura psicofarmacológica na infância contemporânea Body and speach: the effects of psychopharmacological writing in contemporary childhood

Nilson Sibemberg ... 106 Corpos elétricos: sem

nome-do-pai e colados ao i-pad

Electric bodies: no father-name and glued to the i-pad Julieta Jerusalinsky ... 116 Uma menina silenciada

A silenced girl

Adela Stoppel de Gueller ... 126 Retratos de eventos de corpo

Portrait of the body event

Manuela Lanius ... 135 Articulações metapsicológicas

no tratamento da dor crônica Metapsicological considerations on the treatment of chronic pain

Elaine Starosta Foguel ... 145 O corpo, farândola de ilusões

The body, round dance of illusions

(6)

ENTREVISTA Ecos no corpo Echoes on the body

Henry-Pierre Jeudy ... 164 RECORDAR, REPETIR,

ELABORAR

O que quer o hipocondríaco? What does the hypochondriac want?

Contardo Caligaris ... 173 VARIAÇÕES

O corpo desaparecido The missing body

(7)

EDITORIAL

A

psicanálise ocupa-se da temática do corpo desde o seu princípio. Encon-tra-se em Freud, nos seus primeiros escritos, a indicação de que, como humanos, tem-se uma relação em nada natural com o corpo. A linguagem, então, através das formações do inconsciente, faz ali sua marca. As bases lançadas por Freud serviram para que Lacan, na sua releitura da obra freu-diana, encontrasse elementos para propor novos desdobramentos conceitu-ais. Nesta perspectiva, a proposição do laço discursivo, como o que faz laço social, é de fundamental importância para situar a temática do corpo, pois indica, assim, a posição do sujeito na relação com a linguagem.

As relações que tecemos com o corpo são paradoxais. Da certeza de possuí-lo e não poder dispensá-lo, aos estranhamentos que muitos de seus sinais produzem, resta o caminho de tentar domesticá-lo, na busca vã de controlar o incontrolável: o estranho que nele se anuncia, vez por outra, em suas afetações. Sempre retorna a certeza de tê-lo, mas será que o ser se aloja ali?

Dessa pergunta muito se ocupou a filosofia, pelos caminhos da clivagem corpo/alma, da qual o espírito cristão se apossou. Neste, o lugar do corpo segue a via do sacrifício, tão bem encarnado na figura do mártir. Herdeira dessa clivagem, a ciência – na sua máxima realização pelo cartesianismo – ajudou a cavar um fosso inexistente, nomeado como corpo e linguagem. As vias empreendidas a partir daí não cessaram de ampliar essa questão. Dessa forma, invertem-se as condições do controle: o corpo é esse Outro que nos domina! A alma aplainou-se, perdendo a condição de pensamento, fazendo do biológico e do orgânico o definidor de destinos. O destino, não mais lido

(8)

Editorial

nos astros, desloca-se para as salas de exames médicos, onde há o risco de que o sujeito fique de fora, deixando que a máquina pense sozinha.

A atualidade do estudo da temática do corpo para a psicanálise, no seu diálogo com outros campos de saber (como a sociologia, a filosofia, a litera-tura, a medicina), resulta das questões que a escuta da clínica nos coloca. Seja através das inibições, angústia, compulsões, ou mesmo do exercício sexual, faz-se importante indagar sobre o que surge como efeito de inscrição do corpo no discurso, no discurso, ou mesmo do impossível em causa nessa inscrição. Assim, situar o corpo no enlaçamento real/simbólico/imaginário im-plica o trabalho do sujeito em torno do que constrói como ficção, como saber e como verdade.

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TEXTOS

Resumo: O presente trabalho é resultado do diálogo entre a leitura do livro O apo-calipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe (2013), e a lição do dia 21/01/1970

do seminário O avesso da psicanálise, de Jacques Lacan ([1970]1992). Nele, são debatidos temas sobre o feminino do corpo, em seus desdobramentos, que incluem o sexo e a morte.

Palavras-chave: corpo, feminino, sexo, morte. ANOTHER BODY

Abstract: The present article is a result of the dialogue between a review of the book “The workers’ apocalypse”, by Valter Hugo Mãe (2013), and the lesson that dates of January 21st 1970 of the seminary “The reverse of psychoanalysis”, by Jacques Lacan ([1970]19992). This piece will present a debate on themes related to the female body, including sex and death.

Keywords: body, feminine, sex, death.

Otávio Augusto Winck Nunes2

UM OUTRO CORPO

1

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade,

novembro de 2015, em Porto Alegre.

2 Psicanalista; Membro da APPOA e do Instituto APPOA; Mestre em Psicologia do

Desenvolvi-mento/UFRGS; Mestre em Psicanálise e Psicopatologia/Université de Paris7. E-mail: otavioau-gustowincknunes@gmail.com

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Otávio Augusto Winck Nunes

As palavras, também, têm caminhos por dentro. Há que percorrê-los. Valter Hugo Mãe

A

o longo do trabalho preparatório deste congresso fui recolhendo, a partir das leituras que fizemos, algumas questões que gostaria de compartilhar, principalmente a lição do dia 21/01/1970 do seminário O avesso da psicanáli-se, de Jacques Lacan ([1970]1992), em diálogo com o livro O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe (2013), que me acompanhou ao longo desse tempo. Mãe é um talentoso escritor angolano, dono de uma escrita ímpar, efetivamente, muito singular. A obra que escolhi dele me parece ser aquela em que o humor está mais presente, apesar de o autor escrever, ine-vitavelmente, sobre o trágico do humano. É desse livro a epígrafe acima que, em sua simplicidade, revela a extensão no nosso campo.

Maria da Graça é uma mulher a dias! A poética sonoridade da expressão, ao conjugar o tempo à condição da mulher, na nossa língua, quando atraves-sa o oceano, de volta a sua origem, não encontra lá esatraves-sa mesma alusão. Nos litorais da língua, mulher a dias, em Portugal, é como a Val, personagem de Que horas ela volta?3, é a diarista, a faxineira, a imprescindível presença que se ocupa dos restos, nossos, e dos outros, ocupa-se de tudo que já perdeu valor. Maria da Graça encarna a despossuída, a desqualificada, mas ao me-nos pode sonhar. Maria da Graça sonha e muito. Sonha repetidas vezes que está às portas do céu. Lá, ela depara-se com o porteiro pouco receptivo para a função, que é São Pedro. Com ele, tenta estabelecer um diálogo, pedindo, tentando convencê-lo a deixá-la entrar. Sua insistência não resolve, ele não abre as portas. Ela briga, reivindica, se revolta. Não entende a recusa dele em aceitá-la ao lado do divino.

No grande bazar que é a antessala do céu, Maria da Graça acompanha toda espécie de confusão, de balbúrdia, de agitação, em que os mercadores locais oferecem uma série de souvenirs, de gadgets, como o que da vida se carregaria, para que, ao atravessar a porta aberta por São Pedro, não lhes falte nada no outro lado.

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Um Outro corpo

Mas o porteiro do céu a impede. Para além da morte, Maria da Graça parece querer, numa interpretação rápida, um lugar perto de Deus/pai. Tal-vez, seja esse o desejo expresso no sonho e não satisfeito por Maria da Gra-ça, mesmo que para isso a morte seja necessária. Se a esperança é a última que morre, considerando a perspectiva impossível de encontrar o amor em vida, a morte pode ser a única salvação. Assim começa o romance de Valter Hugo Mãe, Maria da Graça sonhando entrar no céu, a todo custo, atônita com as lembranças, as culpas da vida. Mas é impedida, é barrada na porta do suposto paraíso.

Maria da Graça trabalha para seu Ferreira, septuagenário, que tenta lhe ensinar a apreciar as belas artes, o refinamento da música clássica, dos cantores de ópera, dos pintores. Em que pese a sensibilidade de seu Ferreira às artes, não há uma justa transposição dessa sensibilidade no trato com sua mulher a dias. Todos os dias durante o trabalho, no afã de se fazer homem, seu Ferreira avança o sinal e, esteja Maria da Graça no aposento da casa em que ela estiver, ele se atira sobre o corpo dela, como se fosse extensão do seu, para encontrar o júbilo narcísico que procura. Ela não rejeita o ato, pelo contrário, ela aceita a invasão de seu corpo. Não considera ser violência. Pior, culpabiliza-se arrependida, pois ainda assim sente-se uma puta, prin-cipalmente por ter um marido, Augusto, a quem deve alguma satisfação. E, todos os dias, ao terminar seus afazeres domésticos e sexuais, seu dinheiro está no mesmo lugar, o pagamento pelos serviços prestados.

Maria da Graça gostaria de supor que é de amor que se trata. Mas não encontra indício, sinal, nenhum rastro de amor. Assim, sonha repetidamente com a morte, onde pensa que irá encontrá-lo.

E eis que ela, a morte, surge. Por uma via inusitada, é verdade. Maria da Graça tem uma amiga, Quitéria, sua companheira de infortú-nios. Quitéria, apesar de se fazer de prostituta, ponto em que se identificam, sonha encontrar um amor, mas do lado de cá da vida. É o tipo de amiga que faz uma função complementar, aconselha, briga, fala mal, e, apesar das dis-cordâncias e desavenças, acolhe, incentiva. Muitas vezes trabalham juntas, e faz por sua amiga aquilo que considera seu melhor, ou seja, insiste que Maria da Graça busque um amor ainda em vida. Quer fazer que Maria da Graça deseje o seu desejo. Mas como isso não é tarefa fácil, instiga sua amiga a continuar sonhando. O que Maria da Graça faz – sonhando com a morte.

E aí ocorre o encontro para alimentar os sonhos, Quitéria convida Maria da Graça para acompanhá-la num de seus afazeres: ser carpideira. E lá se vão as duas, de velório em velório, a chorar pelos mortos dos outros. Chorar por uma perda que não é a delas, por um ente querido dos outros, por uma separação que não lhes diz respeito, por uma vida que encontrou o fim, e não

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Otávio Augusto Winck Nunes

é a delas. São pagas pela dor, pela perda dos outros. As duas amigas são pa-gas pelo sexo e pelas lágrimas da morte. Mimetizam-se e gozam ao sustentar o gozo da perda alheia. Não é exagerado dizer, seriam como prostitutas tanto no sexo quanto na morte.

De um lado, a pequena morte, como diria Lacan ([1970]1992), o gozo sexual, intervalar, finito; do outro lado, o gozo irreversível e infinito da mor-te. Especificamente, o sexo e a morte como funções que se sustentam e interrogam o corpo feminino, como Maria da Graça e Quitéria exemplificam. Sexo e morte apresentam uma estranha equivalência ao não poderem ser representados no inconsciente, para lembrar Freud. Podemos pensar que nessa equivalência, entre os irrepresentáveis do sexo e da morte, aparecem os elementos que insistem em entrar no laço discursivo, mas ficam à sombra do impossível.

Não seria justamente essa uma das questões problemáticas pelas quais, na psicanálise, estamos envolvidos em nosso cotidiano – o irrepresentável do gozo, aquilo que excede a representação? O intervalo de tempo entre o início e o fim, entre o início da vida e a morte, com aquilo que faz corpo e de como nos servimos dele? Não será a esse órgão que se precisa apalavrar? Parece--me que é essa a indicação de Lacan ao dizer que do órgão/corpo a gente se serve como pode. Expressão correlata do que dizia em relação ao pai, dele se servir e poder dispensá-lo. A título de curiosidade, a palavra grega para dizer corpo aparece pela primeira vez na escrita de Homero (Foucault, 2013) servindo para designar cadáver, ou seja, como aquilo que está sem vida, em exterioridade. Então, do cadáver, do corpo morto se chegou ao corpo vivo.

Na psicanálise, poderia se dizer que é do registro simbólico que é pos-sível a construção da unificação corpórea, frente a um imaginário esfacelado; é desde um ponto exterior, que se faz interior, desde um ponto do campo do Outro que se constrói a ficção do corpo. O registro simbólico isola o corpo, é o que lhe dá uma unidade ficcional. A experiência do estádio do espelho, como o que dissemos a respeito da origem da palavra corpo, diz que o corpo está em Outro lugar. O simbólico, portanto, tenta construir uma unificação que não é garantida para sempre, a todo momento é posta à prova. Porém, é suficien-te para o ser suficien-ter um corpo. Ocorre que não sabemos o que se passa no corpo, estamos dele alienados, pois há o que lhe faz furo, o que escapa ao saber, o que excede ao recobrimento significante, e que insiste no seu retorno.

Nessa perspectiva, pensar o corpo em sua relação com o feminino, ao assumir uma posição objetal frente ao Outro, como condição subjetiva pri-meira, é a indicação de Lacan, desde o momento de sua obra em que o gozo passa a ocupar um lugar privilegiado. Considerar que há um momento de instalação do fantasma do sujeito, através do significante, com a implicação

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Um Outro corpo

do corpo, que lhe produz uma marca, e cujo efeito dessa operação é a pro-dução do gozo.

Essa é a condição inicial, momentos constitutivos que são necessários para se ter corpo. A partir dessa marca inicial é que se estabelece o traço unário, relativo à origem do sujeito e, também, relativo à inscrição do saber inconsciente. Lacan designou nessa operação dois elementos: S1 como o significante mestre, no campo do sujeito, e S2 como o saber inconsciente, no campo do Outro.

Do lado do sujeito, o traço recortado da relação ao Outro, que diz res-peito à identificação e, também, à diferenciação, que vale como ato de sepa-ração, uma separação do Outro. O traço unário, tomado em seu desdobra-mento na relação ao saber, aparece como a repetição que insiste e vem a ser meio de gozo, na medida em que excede aquilo que é relativo ao saber inconsciente, ao campo das representações.

Nessa articulação, por paradoxal que seja, há perda de gozo. O gozo situa, demarca não só seu próprio usufruto, mas, por não produzir inscrição significante, indica uma perda de gozo no seu fracasso de não se inscrever, o que se repete como perda de gozo, correspondendo à entropia, como diz Lacan ([1970]1992). Então, é da insistência da cadeia significante que se de-pura o objeto a. Objeto que, pela presença, aparece como gozo, produzindo angústia e que, em contrapartida, na sua vertente de causa de desejo, está presente como falta.

Nessa lógica, Lacan situa o momento em que há equivalência entre a posição do sujeito e do Outro, ao lembrar o tema freudiano do Bate-se numa criança, gozo de quem? Modo do Outro se apresentar ao sujeito e engendrar, pela linguagem, uma forma de gozo. A partir daí, é preciso situar o efeito da dimensão dialética que permitirá ao sujeito, junto ao Outro, dele se despren-der, produzindo então uma delimitação narcísica. A força da marca do Outro é condição e possibilidade de inscrição do Eu, com o registro da perda do gozo, pois é o Eu que dará vestimentas, roupagens ao gozo.

É interessante que nesse momento de sua produção Lacan retome uma de suas premissas, do início do seu ensino, que o sujeito recebe sua mensa-gem do Outro de uma forma invertida, também com relação ao gozo e assim com relação ao que faz corpo, corpo do Outro, que situa então o corpo como discurso. Temos então acesso ao corpo, na medida em que há a marca do significante, vindo do Outro, que produz gozo. Gozo de um corpo que pode ser sem rosto – em que é necessária a inscrição do significante, como meio de gozo, para que o corpo possa ser apreensível, desde esse ponto de “fora”, o ponto de extimidade – do íntimo exterior ou do exterior íntimo, a partir do qual se pode ter um corpo.

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Otávio Augusto Winck Nunes

Essas interrogações me aproximaram de uma questão bastante presen-te na clínica, nos mais diversos aspectos, na medida em que coloca o corpo na dimensão simbólica, imaginária e real. Entre sexo e morte, uma articula-ção que implica a passagem pelo corpo feminino, em sua construarticula-ção fantas-mática de sujeito, apresentando-se como objeto – situação em nada simples, em que a entrega do corpo é realizada na busca do amor e que, não raro, tem um limite, a marca do impedimento, tornando impossível sua realização, como Maria da Graça, de onde partimos. Ela, em posição de resto, revela um impedimento em que o brilho do objeto fálico, que emerge de um plano à frente da imagem do corpo, não está presente. Seria o amor que poderia, jus-tamente, conter o caráter pulsional de seu corpo, para incluí-lo numa erótica, como um tempo de espera à produção desejante? Tomo um fragmento clínico que ajuda a pensar nessa questão.

Mateus procura análise num momento de crise. Conquistou, rapida-mente, uma ascensão profissional privilegiada, gozando de certo prestígio e reconhecimento não muito comuns na sua área, que muito o orgulhava, por ser bastante jovem. Mas começa a perder, também, a posição alcançada na mesma velocidade da conquistada, tendo em vista o consumo excessivo de drogas, principalmente cocaína.

Situa como sendo essa a questão que o traz para a análise, como a situ-ação que o angustia muito, pois a partir do incremento do uso de drogas não registra mais suas perdas. Ao longo do tempo, em que vai se desdobrando seu breve percurso analítico, Mateus conta ser portador do HIV, e das dificul-dades que isso lhe traz, principalmente no que diz respeito às medicações, traduzido por enjoos e desconfortos corporais sofridos pelo uso do coquetel. Numa sessão, ao contar um pouco sua história, relata sua “fantasia” de origem. A mãe, bem jovem, namorava há bastante tempo um rapaz. Após uma briga, ocorre um rompimento brusco com o namorado, ela se envolve com outro homem e engravida. Não reata o namoro em função da gravidez. Mateus nasce e fica aos cuidados dos avós maternos até que sua mãe consi-ga se estabelecer profissionalmente. Nesse intervalo de tempo, ela conhece outro homem com quem casa e que assume uma hesitante paternidade de Mateus.

No desenrolar da análise, Mateus conta também como foi seu contágio pelo HIV. Ele e sua mãe brigam. Ele sai de casa, sem destino, pega um táxi e, através do motorista, encontra abrigo na casa de um traficante. Ao longo dos dias em que fica hospedado nessa casa, mantém relações sexuais com o anfitrião e sai de lá contaminado. A história um tanto sinistra atualiza a fanta-sia de gravidez de Mateus. Diferente da gravidez materna, a sua “fantafanta-sia de gravidez” tem um destino diferente, é uma gravidez que não sai do seu corpo,

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Um Outro corpo

da qual não consegue se separar. Além do inicial problema apresentado pelo uso das medicações, os enjôos, o mal maior de Mateus é se ver impedido, imaginariamente, de amar e de ser amado, em razão do muro interposto pelas letras do HIV. O momento da sessão foi angustiante, como não podia deixar de ser, Mateus se apercebe da lógica presente em seu relato, em que atualiza em repetição a fantasia mortífera frente ao desejo materno. Mas, também, frente ao amor não realizado.

Lacan ([1955-1956]1985), numa passagem do seminário As psicoses, toma um artigo, para fazer referência ao caso de um paciente, que diagnosti-ca como histérico e que apresenta uma fantasia de gravidez. E diz que o mais estranho em relação à fantasia da procriação é que o simbólico não é capaz de recobrir toda essa experiência, pois há um enigma: o que faz com que um ser saia de outro ser, em que a sucessão dos seres romperia a ordem sim-bólica? A marcação efetuada pelo significante, no exercício de sua função, é o que pode fazer o sujeito em sua singularidade, na medida em que coloca o sujeito para além da morte, sendo imortalizado pelo nome, e dá o ser como morto. Mesmo que na fantasia de procriação encontre-se, como mensagem invertida, o limitado da vida.

A respeito dessa fantasia, a interrogação importante, tanto para a mulher como para o homem, é a mesma: o que é ser uma mulher? Pergunta sempre difícil de responder, em contrapartida a uma aparente facilidade na resposta do que é ser homem, pois esta vem quase sempre apoiada na dimensão ima-ginária do corpo. Na verdade, o que interroga, o estranhamento, me parece, é pensar em como a castração atua sobre o corpo feminino, castração sim-bólica que opera sobre o real, que é o que poderia dar ao sujeito um corpo.

O que gostaria de assinalar é a entrada desse elemento novo, desse acontecimento, que coloca em causa a suposta unidade corporal; esse ele-mento novo/estranho que fura, como real, o que estava ficcionalmente unido. Na medida em que o real, pelas letras, irrompe, ele faz furo no corpo ficcio-nalizado, assim, as letras tornam-se elementos estranhos ao texto, não con-seguem mais serem lidas, produzindo, portanto, uma vacilação nos registros. A antecipação imaginária do impedimento de amar e de ser amado é recorrente e difícil de ser deslocada, como Mateus sustenta. O corpo porta a marca, pelas letras, da morte, não só pela sua finitude, mas pela dificuldade de inscrever o desejo. Ocorre pela via do sexual a colocação em ato do fan-tasma. Parece-me que é o que Lacan aponta em relação à segunda morte, que está antes da primeira, que seria a morte do desejo. Se o amor poderia fazer do corpo um elemento portador da referência fálica, indicando a possi-bilidade de se deslocar de uma posição sacrificial, de uma entrega total ao Outro, aqui está impedido pela sua desqualificação fálica. O amor como elo

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Otávio Augusto Winck Nunes

para fazer frente ao caráter mortífero da pulsão, em sua dimensão de repeti-ção, fica impedido de operar.

Poderíamos incluir como outro elemento o confronto com o real da le-tra, momento de uma insistência, pela repetição, que alude a um gozo sem destino, em que a perda de gozo pelo seu próprio movimento fracassa como inscrição, numa dificuldade em relação à separação do Outro. Cumpre desta-car, num primeiro momento, então, que o real da letra – HIV – funciona como muro, como o impedimento ao amor.

Haveria aí um caminho a percorrer que permitisse o endereçamento da letra para, através dele, se fazer uma suposição de saber e, com isso, a produção do laço amoroso, como proposto na análise. Não seria esta a pos-sibilidade de construção do corpo?

Quando Maria da Graça descobre que seu Ferreira a amava, é tarde de-mais. Não há mais tempo para o amor desprendê-la da sua posição objetal. Ela cai, ou melhor, se joga no vazio, seguindo os passos de quem amava. São Pedro dessa vez não impede o encontro.

E se o corpo é um texto a ser lido, volto ao que destaquei no início: as palavras – como o corpo – têm caminhos por dentro, há que percorrê-los. REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n - 1 edições, 2013. LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1970]. Rio de Janei-ro: Jorge Zahar Editor, 1992.

MÃE, Valter Hugo. O apocalipse dos trabalhadores. São Paulo: Cosac-Naify, 2013.

Recebido em 19/08/2016 Aceito em 30/09/2016 Revisado por Joana Horst

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TEXTOS

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 49, p.17-25, jul. 2015/dez. 2015

Resumo: Este texto percorre questões relativas à relação corpo e linguagem a partir da produção ficcional de Paul Auster, em Diário de inverno. Nesta direção, se inclui o trabalho do estilo, os efeitos de ressonância situados por Lacan na abordagem do sinthoma, os enlaces que dizem da operatória da criação no en-contro real-simbólico-imaginário.

Palavras-chave: estilo, ressonância, corpo, ficção.

WINTER JOURNAL: memories of the inscriptions on the body Abstract: This text approaches issues regarding the relationship between body and language from Paul Auster’s fictional work in Winter Journal. In order to do so, the work on the style is included, as well as the resonance effects situated by Lacan in the understanding of the sinthome, and the intertwining pertaining to the operatory of creation in the encounter of the real-symbolic-imaginary.

Keywords: style, resonance, body, fiction.

Lucia Serrano Pereira2

DIÁRIO DE INVERNO:

memórias das inscrições no corpo

1

1 Trabalho apresentado no VI Congresso de Convergencia, 2015, em Madrid e no Congresso

Internacional da APPOA: Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre.

2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA;

Mem-bro da Association Lacanienne Internationale; Pós-doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Doutora em Literatura Brasileira (UFRGS); Autora dos livros Que queres tu de mim? (Unisinos 2011); O conto machadiano, uma

experiência de vertigem (Companhia de Freud, 2008); Um narrador incerto entre o estranho e o familiar, a ficção machadiana na psicanálise (Cia de Freud, 2004); e do audiolivro A cartomante e a vertigem (Ideias a Granel, 2010). Organizadora do livro A ficção na psicanálise: passagem pela Outra cena (APPOA, 2014). E-mail: luciaserranopereira@gmail.com

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Lucia Serrano Pereira

P

rimavera, Livraria Barnes & Nobles em Nova Iorque, Paul Auster entrou em meio a grande público, ambiente efervescente, onde nos encontráva-mos rodeados de livros e expectativa, para o reading de lançamento do Win-ter Journal, seu Diário de inverno (2012), que há pouco foi editado no Brasil. Ele vai diretamente à leitura das páginas iniciais, e o primeiro impacto se instala com sua presença: o texto, na voz do autor.

Narrativa de diário, em tom baixo. Narrativa incomum, toda em segunda pessoa, criando um clima de intimidade compartilhada. Paul Auster (2012, p. 1)3 inicia:

Você acha que nunca vai acontecer com você, que não pode acontecer com você, que você é a única pessoa no mundo com que nenhuma dessas coisas jamais há de acontecer, e então, uma por uma, todas elas começam a acontecer com você, do mesmo modo como acontecem com as outras pessoas.

Você? Ele, eu?. Um efeito de endereçamento que embaralha o quem fala.

O narrador se coloca desde o inverno da vida, a estação na qual se en-contra, caso a medida fosse a do tempo da vida dividido nas quatro estações. Mas um inverno sem nostalgia, afirma o autor.

Não é a primeira abordagem de memórias, de Paul Auster, se lembra-mos A invenção da solidão, publicado em 1999, pouco depois da morte de seu pai.

A narrativa de agora é um olhar retroativo, mas a forma da escrita segue uma lógica associativa, e isso é importante nos efeitos que produz. Esco-lhe como narração a voz que se dirige ao interlocutor. Nem a autobiografia tradicional da narrativa em primeira pessoa, nem a distância excessiva da terceira. O tu se impôs como garante de um partilhar entre eu (o escritor) e tu (o leitor) – ele refere em entrevista (Auster, 2013).

Em um parágrafo, fala desde os seis anos, em outro, está em sessenta e quatro (idade em que começou este texto), dali vai para a adolescência, os trechos desenham curvas, idas e vindas, intersecções.

Mas o que faz a surpresa narrativa neste livro é o “desde onde” tudo se amarra, se enlaça.

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Diário de inverno...

O transporte que Auster (2012) escolhe: memórias tramadas a partir do corpo, um ângulo inusitado, criando um roteiro surpreendente.

“Talvez seja melhor deixar de lado suas histórias por ora e tentar exami-nar a sensação de viver dentro desse corpo [...]” (Auster, 2012, p. 1).

Uma espécie de fenomenologia da respiração, ele diz.

Mas é claro, faz histórias, como as pequenas mônadas de Walter Benja-min (1985) em seus fragmentos biográficos, que têm essa propriedade: é de si, mas não para o si mesmo, é bordejo com o campo do Outro.

No início, a proximidade desse pequeno corpo do chão, corpo que per-tencia a você aos três ou quatro anos, onde o que compõe o cenário do mun-do pode ser, na contingência, uma formiga:

“[…] o pequeno mundo de formigas e moedas perdidas, elas são o que você lembra melhor” (Auster, 2012, p.3); e mesmo seu próprio movimento corporal – o escorregar, o balançar, o se esquentar, todas as sensações tão comuns e ao mesmo tempo surpreendentes; o como esse corpo aborda ou é abordado pelo mundo.

Em um salto, o adulto:

[…] o inventário das suas cicatrizes, em particular aquelas de seu rosto, visíveis a você cada manhã quando você olha no espelho do banheiro para se barbear ou pentear o cabelo. Você raramente pensa sobre elas, mas seja lá o que você faça, você entende que elas são marcas de vida [...] letras do alfabeto secreto que conta a história de quem você é, cada cicatriz é o traço de uma ferida cura-da e cacura-da machucado foi causado por uma colisão inesperacura-da com o mundo (Auster, 2012, p.5).

Marcas singulares de sua história, os prazeres e as dores, as paixões, os circuitos que se impõem, repetitivos, e que posicionam seu estar no mun-do. Em um momento, ele diz da bebida e do fumar – “há momentos em que parece impossível deixar seus amados pequenos cigarros e frequentes copos de vinho que deram a você tanto prazer por anos” (Auster, 2012, p.5). Ele diz que se (você) fosse parar (de beber, de fumar) depois de tanto tempo, a fantasia é a de que o corpo poderia se despedaçar, seu sistema todo parar de funcionar. E aí a declaração desse circuito com a fragilidade, desta com a dor, e os recursos que encontra para enfrentar, seguir se mo-vendo no mundo:

[…] não tem dúvida de que você é uma pessoa falha e ferida, um homem que carregou uma ferida em si desde muito cedo. Por que

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outra razão você teria gasto a totalidade de sua vida adulta san-grando (bleeding) palavras em uma página? (Auster, 2012, p.15).

Sangrando palavras em uma página ... O corpo no linguageiro.

Sabemos bem que a questão do estilo não é equivalente ao senso co-mum da expressão do autor, em se tratando da arte, dos escritores.

Lacan trabalhou sobre o estilo muito perto da questão dos efeitos de uma análise, do que sobrevém de uma travessia, da perda do objeto e de certa recuperação, ele diz, gerando algo do gozo de um exercício. É interessante como Giorgio Agamben (2005), no texto O autor como gesto, diz da questão de um estilo: a abertura de um espaço no qual o sujeito que escreve não termina de desaparecer. É uma referência à ideia de que a marca do autor está na singularidade relativa à sua ausência. O gesto, alusão também ao corpo, de onde deslizam as letras quando as pulsões empurram.

Como se desdobra o Diário de inverno, em que Auster diz de seu fazer de escritor relativo a sangrar?

Ele toma na narrativa o caminho das cicatrizes, dos encontros incrivel-mente banais do corpo no mundo, os encontrões, os acidentes. O que se inscreve como acidente são os choques inesperados, coisas que não preci-savam acontecer, mas que aconteceram. Isso que não fecha, que mantém o litoral entre o corpo e a palavra. Ele ancora seu escrito nos efeitos em que a contingência posicionou esses encontrões.

A escolha de Paul Auster em escrever o que resta destes encontrões imprevisíveis traz de alguma forma a dimensão do real. Real como Freud propõe, eventos, acontecimentos que resistem à representação, no que de trauma eles carregam. O narrador que fala do precário, do que não foi pos-sível abarcar, e que produziu cicatrizes, da escrita que conta a memória da vulnerabilidade sua/minha/do outro. De um lado, pode parecer que o material dessa escrita está bem acessível, são coisas que ele pode situar, recordar, nesse sentido, pouco mistério com relação à tarefa; por outro, talvez, possa-mos considerar que há também nesse transporte um fazer do escritor em ler junto a esses encontrões, ou escrever a partir do que o próprio tropeço faz trabalhar, aquilo que não pode ser apresentado ou representado diretamente, nesta direção mesma em que o simbólico não consegue recobrir o real. O encontrão diz, ao mesmo tempo, de encontro e de um atrito, de resistência. E escrevê-lo implica enfrentar esse choque.

Quero destacar uma das vias do encontro/choque/atrito na relação cor-po/linguagem através de um termo que achei fecundo. Quando Lacan (2007) introduz em seu seminário O sinthoma a questão de como liberar algo do

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sin-Diário de inverno...

thoma (fazer algo com ele), sublinha o fato de que para a operação analítica é preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe. É preciso que o corpo lhe seja sensível; isto é relativo ao que está desenvolvendo no seminá-rio: as pulsões são no corpo o eco do fato de que há um dizer. Apontamento que vinha desde o seminário O saber do psicanalista:

[…] não há nada a fazer nem com o sentido nem com a razão; é pre-ciso buscar a ‘réson’ (alusão a ressonância) recorrer a réson para o de que se trata, a saber, o Real (Lacan, manuscrito não publicado, p.47-48).

Situando o termo da ressonância de forma simples: o efeito de vibração que pode se produzir quando elementos heterogêneos se articulam. A taça de cristal (um real receptor) que pode ser posta em vibração quando uma onda sonora a atinge. Ao mesmo tempo, é ressonância quando o toque do dedo gira na borda da taça e pode enviar o som.

Alain Didier-Weil (2010), em seu Un mystére si lointain que l’inconscient, vai em direção a este termo, a propósito da interrogação do encontro, dos heterogêneos carne e significante. Ele se pergunta: que ressonância é com-parável entre a faca significante e o real da carne humana?

E propõe uma leitura sobre a mão do oleiro e a argila, que, sabemos, é por onde Lacan (1988) nos fala desse encontro na operatória da criação, da arte:

Há um conflito entre a mão do oleiro e a resistência da argila: quan-do a massa informe da argila é amassada pela mão quan-do homem ela é definitivamente alterada pela forma adquirida ou ela guarda um res-to inalterado que resistiu à ação da mão humana? E neste caso, foi a mão do oleiro que não soube fazer com que ela, a argila, dissesse “sim” ou é porque há no real da matéria um resto inalterável que fica para sempre virgem? (Didier-Weill, 2010, p.39-41).

Nisto nunca vai haver homogeneidade: o sujeito a se produzir é dividido. De um lado, há o que passa pela simbolização, diz sim, mas, de outro lado, há o que tende a ficar para fora da ação do significante, nessa argila. Didier-Weil (2010) propõe, com certa poesia: se poderia dizer que a argila quer se tornar bela pela forma que pode adquirir e, ao mesmo tempo, resta rebelde a toda forma possível. Diz, desse modo, de um real que é, ao mesmo tempo, aberto e fechado à simbolização, um ritmo para o advento do sujeito, como se o real dissesse silenciosamente: sim, tu podes te encarnar; não, tu não podes.

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Didier-Weill (2010) faz uma incursão nessa relação na arte, com a dança: da mesma forma que uma parte do real argiloso resiste à mão do oleiro, uma parte do palco resiste aos pés do dançarino, não se oferece a ser perfurada, esburacada pelo pé, resta virgem. E é por isso que, depois de ter voado, o dançarino cai sobre o palco (que retornou a ser virgem). Ele, o palco, demanda ser de novo esburacado, de uma forma nova, pela ponta do pé.

É um dizer da dança que alude à encarnação do simbólico com relação ao real, passando pela consistência do corpo. No sinthome, na retomada da metáfora do oleiro e do moldar a argila, Lacan (2007) fala do corpo como o pote, a consistência que o corpo tem; o real como a ex-sistência, o vazio en-gendrado pelo simbólico fazendo o furo.

Assim, essa dança, história de amor impossível entre o simbólico e o real, em como eles vão se tomar um ao outro.

Talvez o que nos permita pensar também o passar a vida sangrando palavras numa página, da escrita do escritor.

Podemos acompanhar, na narrativa de Paul Auster, nesses atos de es-crita, o movimento do saber fazer em torno do vazio, ou seja, de como o escritor se deixou tomar pela linguagem para fazer esse transporte. Forma e conteúdos imbricados, a narrativa é fragmentária, dentro/fora operando, Aus-ter joga com o movimento moebiano, notícias de como o corpo é atravessado e marcado pela linguagem. O como é que sangram essas palavras.

Marcio Seligman-Silva (2013, p.386-387) diz em seu livro História, me-mória, literatura:

É evidente que não existe uma transposição imediata do “real” para a literatura, mas a passagem para o literário, o trabalho do estilo, e como a delicada trama de som e sentido das palavras que constitui a literatura é marcada pelo real que resiste à simbolização.

Real articulado com a categoria do trauma, no contexto que Seligman--Silva (2013) desenvolve neste escrito, como uma ferida que não se fecha, ele está abordando mais de perto o redimensionamento da literatura frente à literatura de testemunho. Que não é o gênero do Diário de inverno enquanto encontro com a catástrofe, mas que, ao mesmo tempo, não é sem relação, pois se trata, guardadas as devidas diferenças, de algo relativo ao enfrenta-mento com o real.

A primeira das crises de pânico que aterrorizaram Auster aconteceu dois dias depois da morte da mãe. Passou esses dois dias anestesiado, se cobrando o fato de não chorar, bebendo uísque, café, quase sem dormir,

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quando atende o telefone e a prima, neste momento dos pêsames, insinua as traições da mãe com relação ao pai, anos atrás. Foi demais.

O ataque começou simultaneamente do interior e do exterior, uma re-pentina sensação de pressão do ar em volta de você, como se uma força invi-sível estivesse tentando empurrar você através da cadeira e jogá-lo no chão, mas ao mesmo tempo uma leveza sobrenatural em sua cabeça, uma batida forte, vertiginosa, vibrando contra as paredes de seu cérebro, e ao mesmo tempo em que o exterior continua pressionando você, o interior vai ficando vazio, ainda mais escuro e vazio, como se você estivesse a ponto de morrer. Aí seu pulso acelera, você pode sentir seu coração tentando rebentar através de seu peito, e no momento seguinte não tem mais ar nos seus pulmões, você não pode mais respirar. Aí é quando o pânico ultrapassa você, quando seu corpo desaba e você cai no chão. Deitado de costas você sente o san-gue parar de correr em suas veias, e pouco a pouco seus membros virarem cimento. É quando você começa a gemer. Você é feito de pedra agora, e en-quanto você jaz lá no chão da sala de jantar, rígido, sua boca aberta, incapaz de se mover ou de pensar, você geme de terror como se você aguardasse seu corpo mergulhar nas águas profundas da morte. Você não conseguia chorar. Você não conseguia fazer o lamento, manifestar o pesar do luto da maneira que as pessoas fazem normalmente, então seu corpo veio abaixo e fez o lamento por você (Auster, 2012, p.128-129).

Suas doenças, seus amores, faz até o inventário de todas as casas onde morou, como que listando os deslocamentos desse corpo pelos lugares que o acolheram. Desde New Jersey, todas as mudanças de moradia na juventude, o quartinho de estudante sem dinheiro em Paris, e, claro, seu Brooklyn nova--iorquino. Das listas, ele parece ter bem a dimensão: é o que se faz quando não se pode, por estrutura, abarcar uma totalidade ou uma extensividade. Novamente o impossível, o que fazer com o encontro. A vertigem das listas, podemos lembrar o livro de Umberto Eco (2010), a lista como recurso para o indizível que queremos cernir, abarcar. Tentar produzir a lista é pôr em cena algo do lugar do indizível, como poder enfrentar este território.

“Você gostaria de saber quem é” (Auster, 2012, p.115). Pergunta que ele explora, mas com o saber de que no centro da resposta há um furo, uma inconsistência.

Frente às experiências que o ultrapassam, Paul Auster faz, na escrita, a tentativa de “ler” essas experiências da colisão inesperada com o mundo passando pelo corpo.

Ao mesmo tempo, temos os efeitos que restam das colisões e um corpo que é escrito. Imaginário e simbólico produzindo um corpo que passa pela ficção. Há algo de testemunho nisto, podemos pensar? Talvez naquilo em

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que testemunho pode dizer respeito a um modo não de estabelecimento da verdade, mas de acesso a algo da verdade que vem, fragmentariamente, sem possibilidade de totalização.

Feldman e Laub (1992), em Testimony, dizem do discurso freudiano, considerado como testemunho, como um discurso sem precedentes na his-tória da cultura. Apontam a Interpretação dos sonhos como testemunho do inconsciente, trazendo em especial o sonho da injeção de Irma, onde as do-res de Freud (sua dor da artrite no ombro) ecoam a dor de sua paciente Irma. Freud revolucionou a dimensão clínica com a fala analista/analisante, quando o testemunho do doutor não substituiu o testemunho da paciente, mas faz ressonância com este.

Para concluir, a passagem engraçada e comovente da leitura do “encon-tro da argila com a palavra” no Diário de inverno, que vem com as descober-tas infantis:

1952, cinco anos, nu na banheira, sozinho, grande o suficiente para se lavar, agora, e quando você deita de costas na água morna, seu pênis de re-pente chama a atenção, pulando para fora acima da linha da água. Até esse momento você tinha visto seu pênis só de cima, estando de pé e olhando para baixo, mas desde este novo ângulo vantajoso, mais ou menos ao nível dos olhos, ocorre a você que a ponta de seu órgão masculino circuncizado alcança uma semelhança impressionante com um capacete. Um capacete de tipo antigo, como esses usados pelos bombeiros no final do século 19. Essa revelação agrada você, desde que a esse ponto de sua vida sua maior ambição é crescer para se tornar um bombeiro, o qual você considera o tra-balho mais heroico da face da terra (sem dúvida é), e como é justo que você devesse ter um capacete de bombeiro miniatura estampado em sua própria pessoa, na parte de seu corpo que além do mais parece e funciona como uma mangueira (Auster, 2012, p.16).

Que sorte, ele pensa, que incrível felicidade descobrir, naquele momen-to, inscrito no corpo justamente o sonho que ele tinha de vir a ser um bombei-ro! E, assim, Paul Auster vai abrindo este diário como quem testemunha das incidências do inconsciente sobre o corpo.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. El autor como gesto, In:______. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editores, 2005, p.78-94.

AUSTER, Paul. A invenção da solidão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. AUSTER, Paul. Winter journal. New York: Henry Holt & Company, 2012.

AUSTER, Paul. Dossier Les romancières américaines. Le Magazine Littéraire. Paris, junho 2013, p.86.

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Diário de inverno...

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, v. I.

DIDIER-WEILL, Alain. Un mystère plus lointain que l’inconscient. Paris: Aubier, 2010. ECO, Umberto. A vertigem das listas. São Paulo: Record, 2010.

FELDMAN, Shoshana; LAUB, Dori. Testimony. Londres: Routledge, 1992.

LACAN, Jacques. Seminário Le savoir du psychanaliste. Paris: Association Freudien-ne Internationale Destiné à ses Membres.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

SELIGMAN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura. Campinas: Unicamp, 2013.

Recebido em 22/08/2016 Aceito em 09/12/2016 Revisado por Deborah Nagel Pinho

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TEXTOS

Resumo: Neste artigo, analisaremos a obra Otro cuerpo, do espanhol Mário Ay-guavives. O artista constrói e fotografa objetos que remetem à carne, pele e pelos humanos, joga com o real e o ficcional, interroga sobre a objetalização do corpo e sua capacidade de abertura a novos sentidos. Ancorados na metodologia psica-nalítica de leitura das obras, buscamos analisar a complexidade que a obra dá a ver, refletindo sobre os temas: corpo, obra e sinthome.

Palavras-chave: arte, corpo, obra, psicanálise, sinthome.

OTRO CUERPO:

between the real and the fictional in Mario Ayguavives’s art

Abstract: In this article, we analyze the work Otro cuerpo made by the Spanish Mario Ayguavives. The artist builds and photographs objects, which refer to meat, skin and pubic hairs, plays with the real and the fictional, questions about the objectification of the body and its ability to open new directions. Anchored in the psychoanalytic method of reading works of art, we analyze the complexity of the work gives the view, reflecting on the topics: body, work of art and sinthome. Keyswords: art, body, work of art, psychoanalysis, sinthome.

Ana Lúcia Mandelli de Marsillac2

OTRO CUERPO: entre o real e o

ficcional na arte de Mario Ayguavives

1

1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de

2015, em Porto Alegre.

2 Psicanalista; Membro da APPOA; Doutora em Artes Visuais – História, Teoria e Crítica UFRGS;

Mestre em Psicologia Social e Institucional UFRGS; Professora do Departamento de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia UFSC e da Residência Integrada Multiprofissio-nal HU/UFSC. E-mail: 2206ana@gmail.com

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Otro cuerpo: entre o real e o ficcional...

E

ncontro o trabalho de Mário Ayguavives em meio à pesquisa que desen-volvo sobre o tema das políticas do corpo. Nosso grupo de pesquisa3 fez um levantamento das obras expostas no Museu de Arte Contemporânea de Santa Catarina e no Museu Nacional Victor Meireles entre os anos 2000 e 2012, que tinham o corpo como tema. Em uma mostra de fotógrafos espa-nhóis, exposta no MASC em 2001, fomos interpelados pela obra Otro cuerpo de Mário Ayguavives. É a partir dela que buscarei analisar o tema do corpo, sob as perspectivas da obra como corpo e como sinthome.

A obra, criada pelo artista espanhol em 1998, interroga o tema do corpo, sua forma e manipulação. Mário Ayguavives constrói e fotografa objetos que remetem à carne, pele e pelos humanos. Interroga-nos sobre a objetalização do corpo e sobre sua capacidade de se abrir a novos sentidos.

A arte de Mario Ayguavives joga com o outro corpo: com aquele que permitiu a construção da obra (o corpo do artista), com o corpo que a obra constitui em sua consistência, com o corpo do espectador. Ayguavives foto-grafa sua pele e usa essas imagens, de forma digital, como invólucro de seus objetos, nesse sentido: do corpo, faz outro corpo. O artista embaralha real e ficcional ao criar e fotografar um objeto que não existe. Digitalização do cor-po na criação de realidades imcor-possíveis, interrogação sobre a ficcionalidade dos objetos fotográficos. Ayguavives cria um corpo transgênico, que mistura traços humanos e objetais.

Imagem 1: Mario Ayguavives, Otro cuerpo, 1998.

3 Constituído, na época, por: Tomás Tancredi, Tom Cickman, João Endi e Gustavo Beirão,

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Imagem 2: Mario Ayguavives, Otro cuerpo, 1998.

Imagem 3: Mario Ayguavives, Otro cuerpo, 1998.

O gesto do artista produz encantamento e horror, produz semelhanças e estranhamentos. Maçã, batata, pele, pelo, umbigo, membro amputado, dedo, pênis, joelho embaralham nosso olhar. A obra de Ayguavives remete ao real do corpo, à sua consistência, ex-sistência, por aquilo que não se inscreve.

Em diálogo com as análises do teórico Georges Didi-Huberman (1998), que também se subsidia na teoria psicanalítica, analisamos que toda obra pode ser pensada como metáfora de um corpo: entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio, de se abrir; com suas entradas e saídas, relacionadas ao outro, revelando sua forma e, pa-radoxalmente, escondendo seu suposto conteúdo pleno. Obra/corpo em seu perpétuo movimento de produção de sentidos, no contra fluxo de uma supos-ta essupos-tabilidade da forma. Toda obra é corpo que se cria e que produz novos sentidos por sua existência.

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Não se trata de uma imagem nua que possa desvendar o real, isso seria impossível; mas, sim, de trazer à tona um símbolo do vazio, a expressão de algo não dizível do corpo, aberto a inúmeras significações. As obras de arte, como analisa o teórico da arte René Passeron, são um “curativo do vazio”. “Todo curativo esconde ao mesmo tempo que trata, e substitui sua aparência perceptível a não aparência do ferimento, desde então aberta ao imaginário” (2001, p.11). Mas, cabe destacar que o curativo não é a ferida. É vestígio, indício, véu, que mantém aberta à imaginação o fascínio e o horror do que esconde. Poderíamos também acrescentar que a palavra trauma vem do gre-go para designar ferida e é derivada da palavra furar. Trauma serve para designar uma ferida com arrombamento, ruptura (Laplanche; Pontalis, 1981). Se a obra está sempre à frente de seu tempo e continua a interrogar outras épocas, ela pode ser pensada em sua relação com o trauma, com as feridas, que estão sempre a demandar curativos.

Ayguavives procura captar o tema do corpo e, ao mesmo tempo, con-testar, resistir às imagens ideais. Não se trataria, então, de uma reprodu-ção do mundo das aparências, mas, sim, de permitir ao observador pene-trar no corpo, no mundo dos sentidos, da angústia e da pulsão, evocando a perturbação que um corpo pode provocar. O artista trabalha, justamente, com as metamorfoses da forma e com a impossibilidade de uma represen-tação última; convocando, assim, o espectador a “pensar também com os olhos”, propondo-lhe um enigma, contrariamente a uma versão pronta da realidade. Não há como fixar ao corpo uma imagem, ele está constante-mente mudando de forma e, paradoxalconstante-mente, almejando um espaço se-guro a habitar.

A obra de Ayguavives remete ao estranho que nos olha, um misto de be-leza e horror. Frente à impossibilidade de fecharmos os sentidos, deparamo--nos com a incompletude do ser, com a “insuficiência do simbólico em recobrir o real” (França, 1997, p.133). Vamos, então, pela arte, para uma dimensão da experiência bem diferente da que governa a lógica contemporânea, que evita deparar-se com a falta e é, justamente, a partir do encontro com esse estranho, que podemos fazer furo na repetição, desfazer a forma, tornando--se impossível sustentar uma unidade que não há.

Não temos como dar conta do enigma que a obra nos propõe. Há sem-pre um resto que escapa à possibilidade de simbolização, e isso Jacques Lacan analisou através do conceito de real e de sinthome. É da ordem do real este algo mais, que encontramos nas obras, no corpo, nos objetos, nos sonhos, mas também no sinthome. Este conceito foi trabalhado por Lacan, a partir dos anos 70 e busca relacionar a concepção de sintoma abordada por Freud, naquilo que se articula com a dimensão do real.

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O psicanalista Slavoj Zizek realiza um importante estudo a este respeito, intitulado Como Marx inventou o sintoma? (1996). Neste artigo, reflete que Marx e Freud aproximam-se pelos seus métodos interpretativos. A análise do “segredo-forma-mercadoria”, desenvolvida por Marx, serve de chave para a compreensão de fenômenos que a princípio não guardam relação com a eco-nomia. Trata-se sempre de uma tríplice estrutura: seu conteúdo manifesto, o conteúdo latente e um certo “ainda”,4 cujo desmascaramento do segredo não dá conta de eliminar o fascínio.

Como bem colocado por Zizek, enquanto a atenção voltar-se aos con-teúdos latentes da mercadoria, ela ainda restará como um grande enigma, mas ao deter-se nos mecanismos do processo que lhe confere determinada forma, torna-se possível aproximar-se um pouco mais. Tal como nos sonhos, o verdadeiro trabalho é o de deslocamento e condensação dos conteúdos latentes que se expressam na forma manifesta.

Lacan, ao debruçar-se sobre o tema do sinthome, em seu seminário XXIII, a partir da obra de James Joyce, formula a importante questão: “O problema todo reside nisto – como uma arte pode pretender de maneira divi-natória substancializar o sinthome em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo?” ([1975-76]2007, p.38)

A pergunta de Lacan foi desenvolvida ao longo de seu seminário, no qual ele define o conceito de sinthome, enquanto aquilo que possibilita a sustentação, consistência dos três registros: real, imaginário e simbólico. Ins-tâncias equivalentes e complementares.

Lacan, ao analisar cada um dos três registros, observa que a consis-tência e a inquietante estranheza advêm do que chamamos de imaginário; já o ficcional, a linguagem e a função do buraco que a suporta, referem-se ao registro do simbólico; o real, por sua vez, refere-se ao impossível, ao impen-sável, ao que nos escapa.

Paradoxalmente, é o real que nos leva a imaginar, que força uma escri-ta. Na medida em que nos escapa, instiga inscrição, mesmo que esta seja sempre precária. O real é o que não cessa de não se inscrever, segue pulsan-do. Se há valor na experiência traumática, que poderia ser pensada enquanto um excesso de real, é por aquilo que decorre como criação. É justamente o

4 No sentido de um excesso. Perspectiva que poderia ser aproximada ao conceito de real para

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real que mantém juntos o imaginário e o simbólico, ainda que seja desprovido de lei e ordem. O real é o impossível, mas é dessa falta, que se cria, que se produzem obras.

Pensar a obra em associação ao conceito de sinthome possibilita uma metodologia de base psicanalítica na leitura das obras. Essa perspectiva vem buscando se afastar de uma suposta psicopatologia do artista, tendo como foco a leitura da obra e de sua contingência. Detemo-nos ante o paradoxo da forma/obra, entre sua superfície e profundidade, analisando os conteúdos manifestos e latentes, que constituem a obra e se vinculam com o artista e seu contexto. Nessa via, a obra é um sinthome, que indica o saber-fazer do artista, a partir da articulação real, simbólica e imaginária, que é contingente ao ato criativo. Assim, o sinthome não é uma invenção ex nihilo, criação que viria do nada, pelo contrário é a amarragem que articula os três registros.

A obra/sinthome pode ser pensada como forma, através da qual o ato criativo se apresenta em sua densidade imaginária, simbólica e real. Ela nos interpela, se impõe e, paradoxalmente, nos escapa, revelando sua falta de sentido. É o saber inconsciente que interrompe o curso da representação, segundo uma lei que resiste à observação banal, lei subterrânea que compõe durações múltiplas, tempos heterogêneos e memórias entrelaçadas; lógica da rede, sustentada por condensações e deslocamentos. O sinthome/obra nos apresenta esta estranha conjunção de diferença e repetição.

Podemos seguir nossa análise sobre a obra de Mário Ayguavives na perspectiva do sinthome. Criada na virada do século XXI, Otro cuerpo é for-mação de compromisso entre o fascínio da manipulação e o domínio do cor-po, com a angustiante presença do corpo e suas deformidades. Ayguavives desfaz a forma e cria um outro corpo, ficcional. A obra Otro cuerpo é um estra-nho corpo que nos olha, questiona nossos ideais de controle sobre o corpo. O corpo que o artista nos revela não nos traz o sublime a ser contemplado, mas nos convoca a simbolizar, restando sempre um algo mais, que não cessa de não se escrever.

É pela via do equívoco, dos duplos sentidos, que os psicanalistas traba-lham, também é por essa via que Mário Ayguavives cria seus corpos. Vale-se da tecnologia, questionando os limites entre realidade e ficção. Sua obra joga com os ideais de nossa época e nos questiona até onde queremos chegar nessa busca pela suposta verdade e domínio do corpo. A dúvida e o estranho parecem se afirmar como a verdade da obra, e talvez nesse gesto se torne possível interrogar as verdades do corpo. Pois, no que tange ao corpo, à subje-tividade e à vida, estamos alijados das certezas. Semelhante na diferença é a consigna por onde definimos o outro, mas também poderia ser atribuída ao cor-po, na medida em que busca ser um, mas está sempre produzindo diferença e

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repetição. Ele é materialidade que nos permite ser um, mas que também nos aprisiona, nos confunde, nos demanda preenchimento, dedicação. O homem ama seu corpo, na medida em que crê que ele lhe pertence. De fato, não se tem o corpo, mas o corpo, como bem analisa Lacan ([1975-76]2007), é nossa única consistência mental, que ainda assim sai fora a todo instante.

Entre o real e o ficcional constitui-se permanentemente uma trama. Entre os ideais, as decisões e os atos do artista, dialoga-se com as possibilidades da matéria e os vestígios do inconsciente. Dos equívocos entre imaginário e real, constitui-se o sinthome.

Se partimos da premissa da psicanálise, de irmos em busca dos sig-nificantes, dos vazios, dos meios ditos, realizaremos a leitura da obra, para além do encontro com o belo. O olhar em psicanálise, tomado na perspectiva da pulsão escópica, tem como uma de suas modalidades a reversão ao seu oposto, nesse sentido somos interrogados por aquilo que olhamos. Deparar--se com a inquietante estranheza da obra assinala o lugar que suscita a an-gústia e nos interroga. Desta forma, o esforço metodológico de leitura das obras deve contemplar esta paradoxal estrutura das obras que, como sintho-me, mostram-se, mas, ao mesmo tempo, velam.

Das particularidades significantes do inconsciente do artista há enlaces com os outros, que se dispõem a ver e se sentem interrogados pela obra. O inconsciente deixa vestígios, artifícios que produzem a obra, ao mesmo tempo, a obra é artifício, ato que produz inconsciente. Lacan analisa que “só há fato pelo artifício” ([1975-76]2007, p.63), só há fato, pois há discurso so-bre ele. O fato nos apresenta o real, mas só chegamos a pequenos pedaços dele. O estigma do real é não se ligar a nada. O real é sempre uma espécie de caroço, em torno do qual o pensamento vagueia, seu estigma consiste em não se ligar a nada (Lacan, [1975-76]2007).

A obra, desta forma, está entre o real, que não pode ser dito, e a verdade que só é meio dita. Possivelmente, nos aproximaríamos da verdade da obra ao nos confrontarmos com sua radical constituição pela falta. Mas ao falar-mos possivelmente, já mentifalar-mos e mais uma vez o encontro com a verdade nos escapa. A obra, de maneira extraordinária, nos revela sua consistência, ex-sistência, seus não sentidos, seus furos.

Na contemporaneidade, vivemos em meio aos rápidos avanços do co-nhecimento, que se desdobram diretamente sobre as concepções e possi-bilidades do corpo. As ciências da saúde, bem como as socioeconômicas e as da comunicação, estimulam e viabilizam a busca do corpo perfeito, que poderia se traduzir de forma dominante nos ideais do corpo jovem, belo, forte, saudável, produtivo e atraente. Na medida em que se associa o corpo a al-guns significantes que precisam se enodar de forma fixa, revela-se a terrível

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Otro cuerpo: entre o real e o ficcional...

angústia do encontro com o real, com nossa impossibilidade de lidar com o que escapa à representação. Procura-se, portanto, fixá-lo em um lugar, objetivá-lo, para não nos confrontarmos com ele, com o seu incessante movi-mento pulsional e com a angústia frente à inevitável finitude.

O artista cria um sinthome, mas isso não se trata de um processo total-mente consciente para ele. O artista está em meio ao seu tempo, é fruto do contexto e cria através de sua obra novas realidades. Ayguavives debruça-se sobre os processos de manipulação da imagem, a partir dos temas do corpo. Vale-se de um material que remete ao humano, mas cria um corpo, que po-deria ter sido feito com a pele de qualquer um, sem identidade, frio e vazio, que interroga os possíveis do nosso tempo. Seria interessante retomar que o inconsciente freudiano se constitui na relação que mantemos com o corpo, que nos é estranho.

Do ficcional ao real, em movimento incessante, produz-se a obra, cons-titui-se um corpo. Sem o ficcional, sem que o discurso se materialize e dê forma ao corpo, não se produz um corpo. Nem a obra, nem o corpo, são má-quinas, não dispõem de forma fixa e estável. As obras de arte, enquanto atos dos sujeitos, são linguagens que carregam consigo aspectos conscientes e inconscientes e criam um saber sabido em ato, saber que não havia antes da presença da obra. A leitura das obras, sustentada pela teoria psicanalítica, revela a importância de ir em busca dos elementos significantes, que indicam as interlocuções instauradas pelo ato criativo, através de uma escuta/olhar flutuante. A psicanálise instiga a analisar as condições de enunciação do ob-jeto de arte, o jogo significante, que revelam e velam seu contexto, instauran-do novas realidades. Cada obra é como uma aranha que tira de si sua teia. É da obra que o analista deve partir, pois ela carrega consigo seu mundo, sua verdade, ainda que parcial e fragmentária. A obra de arte é um enigma não decifrado, que sempre deixa um certo ainda fascínio, que continua a nos interrogar.

REFERÊNCIAS

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. FRANÇA, Maria Inês. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva, 1997.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, 1a edição.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. 9. ed. São Paulo: Mar-tins Fontes, 1986.

PASSERON, René. Por uma poïanálise. In: SLAVUTTZKY, Abrão; SOUSA, Edson Luiz A. de; TESSLER, Elida (orgs.). A invenção da vida: arte e psicanálise. Porto Ale-gre: Artes e Ofícios, 2001, p.9-13.

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Ana Lúcia Mandelli de Marsillac

ZIZEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? In: ______. (org.). Um mapa da ideo-logia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.297-331.

www.marioayguavives.com. Acesso em 14 out. 2015.

Recebido em 02/08/2016 Aceito em 09/09/2016 Revisado por Joana Horst

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TEXTOS

Resumo: Este trabalho busca construir, através da escuta de um caso clínico, os efeitos do significante musical na subjetivação. Analisei o percurso de Ela na apropriação de seu desejo, perdendo 50 quilos e abandonando uma posição va-cilante entre ser e não ser o falo no desejo do Outro primordial, para dar voz e sonoridade ao sujeito. Este estudo se realiza na interlocução com os autores Didier-Weill, através do conceito de Nota Azul, e Jacques Lacan, através do con-ceito de pulsão invocante.

Palavras-chave: ritmo, melodia, corpo, pulsão invocante, nota azul. RHYTHM AND MELODY:

the body under the effect of the musical signifier

Abstract: This work seeks to build through the listening of a clinical case the ef-fects of the musical signifier on subjectification. I analyzed Ela’s path toward the appropriation of her desire, losing 50 kilos and abandoning her wavering position between being and not being the phallus in the desire of the primordial Other in order to give voice and sound to the subject. This study is grounded on conver-sations with the authors Didier-Weill, on the Blue Note concept and on Jacques Lacan’s concept of the invocatory pulsion.

Keywords: rhythm, melody, body, invocatory pulsion, blue note.

RITMO E MELODIA: o corpo sob

o efeito do significante musical

1

Denise Mairesse2

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade,

novembro de 2015, em Porto Alegre. Tem como base um caso da clínica da autora e, ainda, na tese de doutorado da mesma intitulada Condição de morbidez: uma vacilação ao trágico?

2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia Social

da UFRGS; Doutora em Educação da UFRGS. E-mail denisemairesse@gmail.com

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Denise Mairesse

L

á3 estava Ela4, aborrecida, entediada, melancólica. O trabalho, fruto de uma formação sólida de graduação, a conduzia a um padrão que lhe pos-sibilitava status e dinheiro. Ela recém havia retornado de viagem, da morada no estrangeiro, onde lá se aventurou por outros cenários, um deles, o da música! Lá se tornou uma estrela. Fazia parte de uma banda, construiu uma imagem de si e para si, de muita alegria e força. Ela pesava em torno de 150 quilos e lá emagreceu. Por um tempo foi ela mesma, palavras suas em sessão. Ela volta ao Brasil com o mesmo peso que foi, algo a fez retornar à mesma posição. Retornou ao Brasil e caiu em terras gaúchas por motivo de um convite de trabalho. Ela me procura por indicação de um médico endocri-nologista, fala de seu sofrimento pelo peso e quer emagrecer, reencontrar-se em meio àquele corpo. Como sair de dentro do próprio corpo que, mesmo sendo ela, sentia como algo que não lhe pertencia. Construímos um laço transferencial que faz com que Ela se comprometa com o trabalho, apesar do inicial sentimento de dívida e culpa por estar se dedicando a si, e não somen-te à empresa que tão generosamensomen-te a acolheu. Desligar o celular na hora da sessão, estar desligada do trabalho, era um ato de muita coragem. Dizer não ao Outro, dar-se limite perante esta demanda produzia sofrimento e um pouco de alívio. A análise seguiu duas vezes na semana.

No transcorrer do nosso trabalho, Ela passa a buscar hobbies: drama-tização e música. Inicia um curso de teatro, envolve-se com as artes e com os artistas da cidade, acabando por voltar a cantar. Ela canta e se encanta. A análise segue pela escuta e interpretação do significante, agora predominan-temente o da música, do cinema, da arte.

Em uma análise, ao se revisitar antigos sítios da nossa alma, afetos brin-dam essas passagens como uma música que é capaz de nos remeter a acon-tecimentos, recriando-os e ao mesmo tempo nos reinventando. As imagens visuais, como as acústicas, guardam a possibilidade de criação, reinvenção, de nos inscrever em uma nova história. Mudam rumos, constroem destinos. A arte cinematográfica, a dramaturgia de modo geral, agrega todas essas imagens que nos levam para uma viagem, muitas vezes, sem volta, porque raramente saímos os mesmos de um espetáculo que guarda algum traço de verdade da nossa existência enquanto sujeitos.

3 O destaque em itálico em Lá e Si alude ao significante e à escrita da nota musical. 4 Denomino como Ela a paciente protagonista deste trabalho.

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