• Nenhum resultado encontrado

Eros e Tânatos: o feminicídio no século XIX em D Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro

No documento Memórias do corpo (páginas 176-189)

Rosana Cássia dos Santos (UFSC/CNPq) Ao tratar do tema da morte no Romantismo brasileiro, percebe-se o coração como soberano, guiando a ação das protagonistas. As emoções sobrepõem-se à

razão, especialmente no que se refere às heroínas românticas.64 A partir do

momento em que elegiam o merecedor de sua paixão, as personagens eram capazes de romper limites e padrões de comportamento, em uma dedicação irrestrita e abnegada, movidas pelo sentimento amoroso e morrer por amor fazia parte desse universo de sentimentalismo exacerbado. Muitos seriam os exemplos a serem aqui citados, como Inocência, Lucíola, Iracema, Helena, protagonistas de romances intitulados com seus nomes e cujos autores, respectivamente, Taunay, Alencar e Machado de Assis, integram o cânone literário brasileiro. Além da idealização das personagens, o amor que unia o casal romântico era igualmente idealizado. Em paralelo a esse amor, havia a família patriarcal e interesses financeiros que permeavam arranjos matrimoniais, fazendo com que se instaurasse uma tensão. O que se percebe é a predominância de uma postura conservadora em relação ao casamento. Quando a escolha do par romântico não correspondia às expectativas da sociedade e, por conseguinte, às da família, a foice da morte se aproximava para restabelecer a ordem social. Os apelos sentimentais eram superados e o público leitor voltava à “normalidade” da ordem instituída.

64 Uma versão deste texto foi publicada na dissertação “A morte da personagem feminina na

prosa romântica brasileira” (UEL, 2002). Essa nova versão se justifica por se tratar de texto de raro romance de autoria feminina do século XIX, um dos únicos, talvez o único, a abordar o feminicídio, e uma vez que o texto original possui apenas uma cópia física disponível na biblioteca da Universidade Estadual de Londrina. A retomada desta abordagem se dá em virtude do novo projeto de pesquisa a ser desenvolvido, o qual tratará do fio tensionado da literatura, ao destacar as escritoras de ontem e de hoje.

177

Apesar do reduzido espaço literário ocupado pelas escritoras na história literária do século XIX, houve as que publicaram seus poemas, assim como, em

menor número, aquelas que publicaram romances65. Torna-se assim bastante

interessante e pertinente que se possa conhecer a maneira com que essas escritoras tratavam dos temas mais caros ao Romantismo, como amor e morte, por exemplo. Assim, destaca-se o romance D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro (1823?-1869) publicado em folhetins, em 1858, e com consequente publicação em

livro, um ano depois66. A autora utilizou o pseudônimo Indygena do Ypiranga,

sendo essa prática comumente utilizada por outras escritoras da época, dentre muitas possibilidades, como forma de se defenderem dos ataques da crítica literária. São escassas as informações biográficas em relação à autora. Dentre os dados

disponíveis no estudo introdutório do romance67, consta que nasceu em Santa

Catarina, provavelmente em 1823, casou-se no Rio de Janeiro, onde veio a falecer, em 1869. Trabalhou por muitos anos como diretora e professora de um colégio de instrução primária e humanidades para meninas. Após a publicação do folhetim em 1858 e a publicação do romance em livro em 1859, a obra só foi novamente publicada em 1990, pela Editora Mulheres, e vem recebendo algumas edições desde

então68, inclusive integrando o rol de obras literárias para o vestibular da UFSC, na

primeira década deste século.

Antes de iniciar a narrativa propriamente dita, a autora, assinando com seu pseudônimo Indygena do Ypiranga, dirige-se ao público leitor e se coloca em uma posição de quase desculpas por ter escrito e tornado público o seu romance: “[...] vou rogar a benevolência daqueles que me lerem como um discípulo que se quer

65 A esse respeito sugere-se conhecer a obra Escritoras brasileiras do século XIX, coleção em três

volumes, organizada por Zahidé L. Muzart e referenciada na bibliografia deste texto.

66 Essa edição encontra-se disponível em formato digital na Biblioteca Brasiliana Guita e José

Mindlin: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3916

67 MUZART, Zahidé L. “Uma precursora: Ana Luísa de Azevedo Castro”. In: D. Narcisa de

Villar: Legenda do tempo colonial. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997.

178

instruir”. Enfatiza essa mesma ideia em outros trechos e acrescenta: “D. Narcisa de Villar foi escrita quando apenas tinha eu 16 anos: merece, portanto, que desculpeis a mediocridade da linguagem e a singeleza com que decorei as cenas”. (CASTRO, 1997, p. 17-18).

Essa indulgência pode ser justificada pela precariedade em relação à formação cultural feminina ainda no século XIX. Arthur Orlando, em “Carta à leitora”, no livro de Ignez Sabino (1853-1911) Mulheres ilustres do Brasil, editado em 1899, discorre sobre esse tema:

Em matéria de educação, têm predominado até hoje dous erros tão oppostos, quão fecundos em funestas consequencias: o primeiro consiste em equipar o espirito do homem ao da mulher, e em pretender-lhes uma identica instrucção, como se ambos os sexos possuíssem a mesma disposição mental; o segundo está em considerar a mulher um ser inferior ao homem e em conserval-a systhematicamente em requintada ignorancia.69 (SABINO, 1996, p. 14).

Por esse comentário, ainda que permeado por preconceito, percebe-se o início de uma consciência crítica, no sentido de reconhecer a forma de educação oferecida às mulheres e o quanto a mesma desfavorecia e limitava sua atuação de uma maneira mais ativa e consciente. Assim, é louvável que, apesar de todas essas limitações, uma mulher tenha escrito um romance, quando isso estivesse bem longe

do que dela se esperasse no Brasil oitocentista.70

No “Prólogo”, o leitor será advertido de que a história terá duas

narradoras71, sendo uma a mãe Micaela, índia que conhece as razões dos mistérios

da Ilha do Mel, e outra, a ouvinte dessa história, que assim explica:

69 A grafia de época foi respeitada na transcrição dos excertos, conforme as fontes consultadas. 70 Importante ressaltar, de acordo com estudo de Regina Dalcastagnè, que mais de setenta por

cento dos romances brasileiros publicados por algumas das maiores editoras do país nas últimas décadas são de autoria masculina.

71 Ressalte-se aqui a valorização da literatura oral e a presença de duas narradoras, sendo uma

179

[...] e pois começou [mãe Micaela] a sua história de modo porque a vamos expor; porém como nos é impossível referi-la com o tom e termos característicos com que ela nos contou, perdoe-nos o leitor que a substituamos pela nossa linguagem, guardando todavia certas expressões que pertencem inteiramente à narradora. (CASTRO, 1997, p. 21). Em seu romance, a escritora opta pelo distanciamento temporal, uma vez que a trama transcorre no período colonial, no século XVII. A narradora se posiciona perante alguns fatos, emitindo opiniões e suscitando indagações, como quando questiona a escolha de governadores das colônias brasileiras. Um dos personagens, D. Martim de Villar, um dos irmãos de D. Narcisa, era governador de uma dessas colônias. Assim a narradora se refere a ele: [...] o bárbaro tratamento e despotismo que ele exercia sobre seus numerosos administrados faziam-no odiar por essa gente de coração tão sensível e a quem ele chama selvagens”. (CASTRO, 1997, p. 23).

Depois da morte da mãe de D. Narcisa, ela veio ao Brasil para ficar com seus

irmãos, o já citado D. Martim, D. Luiz e D. José. A descrição da personagem segue os moldes preconizados pelo Romantismo: “[...] não tinha mais que doze anos, porém seu talhe era tão delgado que se lhe não daria mais do que oito. Sua fisionomia era doce e meiga; parecia que a dor a tinha tocado muito cedo, porque seu sorriso era sempre melancólico, e seu semblante pensativo.” (CASTRO, 1997, p. 24).

A menina foi entregue aos cuidados de serviçais. A forma como as mulheres eram tratadas no século XIX já era bastante excludente, considerando identidades como as de classe e raça, mas ainda seria muito pior no século XVII, ao tempo da narrativa do romance. A personagem foi apartada de seus familiares e é possível concluir que sua educação formal tenha sido interrompida, pois suas relações limitaram-se à companhia de “fâmulos” que serviam à família Villar. Dentre as índias que a serviam havia uma que lhe era mais próxima, Efigênia, a qual tinha um filho, Leonardo:

180

[...] e o reconhecimento muito vivo que sentia por esses dois entes, que tanto por ela se interessavam, se foi transformando pouco a pouco em amizade, de sorte que D. Narcisa já não podia viver sem Efigênia e seu filho. Querendo mostrar mais vivamente a sua gratidão à índia, tomou a si o trabalho da educação de Leonardo; ensinou-o a ler, e instruiu-o tanto quanto pode na religião católica, fazendo o discípulo progressos com aquela mestra inspirada. (CASTRO, 1997, p. 25-26)

Os contornos de um casal amoroso vão se delineando: “Passaram-se anos, D. Narcisa de Villar ficou moça e Leonardo já era homem. Ele não andava vestido como seus companheiros de escravidão; suas roupas eram elegantes e seus modos distintos”. (CASTRO, 1997, p. 27). Depois de moça, segundo a narradora, acentuaram-se ainda mais as qualidades já evocadas de D. Narcisa.

Como era costume para mulheres como D. Narcisa, era chegada a hora de se escolher um marido para desposá-la e, na falta de seu pai, essa tarefa cabia aos seus irmãos. Os critérios para a eleição do futuro esposo seriam aqueles de interesse essencialmente financeiro. O escolhido foi o fidalgo Sr. Coronel Pedro Paulo. Desde que a ele havia sido apresentada, já lhe causara repugnância. Ela começou a perceber que seus sentimentos por Leonardo se tornaram mais intensos, e chega mesmo a reconhecê-lo como merecedor de ter nascido príncipe. A narradora se esmera na descrição de Leonardo, na tentativa de torná-lo “digno” desse sentimento de D. Narcisa: “O exterior do mancebo era altivo e agradável ao mesmo tempo, e ninguém o podia ver sem sentir-se tocado de admiração.” (CASTRO, 1997, p. 32). Quando Leonardo percebe o acordo de casamento sendo firmado pelos irmãos de D. Narcisa, a palavra morte aparece pela primeira vez no romance: “Ele desejava morrer naquele momento, diante dela, talvez que a sua agonia, a sua morte, arrancassem de seus olhos uma lágrima de compaixão – uma lágrima dela, por quem daria com prazer em troco sua inútil vida!...”. (CASTRO, 1997, p. 32)

Ambos estão apaixonados um pelo outro, porém, a narradora já anuncia como funesto esse amor: “Ah! Pobres desgraçados, que só no céu teriam o prêmio

181

de tão grande amor!” (CASTRO, 1997, p. 32). Um casal formado por uma fidalga e um índio jamais poderia ter um final feliz, pois a concretização de seu amor não dependia apenas da vontade de ambos, mas estava condicionada à aceitação de uma sociedade que, se à época da escritora era ainda tão arraigada a preconceitos vários, ainda mais o seria em período anterior, ao tempo da narrativa. O que instiga a continuação da leitura é saber como reagirão seus protagonistas frente às adversidades que estariam por vir, de que forma a pena movida pela mão da escritora conduziria uma história já desde o início fadada a um triste final.

O século XIX foi marcado por muitas transformações econômicas e sociais. No livro História das Mulheres no Brasil, Norma Teles comenta sobre esse período de tempo: “Não se pode esquecer, no entanto, que esse século foi sombrio para as classes trabalhadoras europeias, para as mulheres e para os colonizados, foi também o século em que surgiram os movimentos sociais e os feminismos, o movimento sufragista e a Nova Mulher”. (In: DEL PRIORE, 2000, p. 402). Segundo Zahidé L. Muzart:

Em D. Narcisa de Villar, veremos aparecer fortemente a voz feminina da narradora. Entre os temas mais importantes, sobressaem a crítica à falta de liberdade da mulher, o seu casamento como negócio. É um romance sobre a opressão da mulher pela família e pela sociedade e sobre a escravidão dos índios pelos colonizadores. Aliados, portnto, aparecem os temas de denúncia do machismo e do racismo. A escritora escolhe os oprimidos como sua principal temática. (MUZART, 1999, p. 254) São várias as citações da narradora que deixam claro um posicionamento de crítica à maneira como alguns segmentos da sociedade eram tratados. Havia a necessidade de reformulação de antigos conceitos que levasse a um avanço em relação a posturas arcaicas e preconceituosas. A situação vivenciada à época ainda ensejava a marginalização de alguns grupos sociais, no entanto, foi também o período em que se percebia a necessidade de novos encaminhamentos, e a literatura colaborou com esse propósito.

182

Quando há a narrativa do contrato firmado para a realização do casamento de D. Narcisa com o coronel Pedro Paulo, a narradora expressa a aflição da personagem feminina e o quanto deveria ser doloroso para as mulheres serem tratadas como mercadoria. Tomem-se por exemplos os seguintes trechos:

Ela tremia nesse trajeto como treme a pomba debaixo das garras do gavião.

[...] a donzela obedeceu a tudo sem hesitar, sem indagar mesmo o motivo.

Cheia de medo, não ousava pesquisar o que achava de se passar, com temor de descobrir uma verdade que naquele momento a mataria.

[...] era ele o coronel Pedro Paulo, rico nobre, e de bom nome, que de tão longe vinha pedir a mão de D. Narcisa de Villar; esta aliança que vinha achar tão forte apoio na vontade de D. Martim, o fez dispor de sua irmã, como senhor, e não era preciso para a conclusão desse negócio [grifo da autora] o consentimento inútil, como pensava ele, de uma menina que mal sabia o que fazia. Demais, sua irmã, criada no isolamento, havia adquirido o caráter dócil e brando das pessoas só acostumadas à obediência. (CASTRO, 1997, p. 39-40)

A narradora busca expressar o desrespeito pelo ser humano através da transação de um casamento que não levaria em conta a vontade de D. Narcisa, e mostrar ao leitor a afronta de uma atitude como essa. As palavras se convertiam então como arma de denúncia da condição social feminina. Através de sua obra literária, a autora poderia colaborar para que as mulheres conquistassem maior respeito e dignidade na sociedade oitocentista. Isso corrobora a explicação da utilização do pseudônimo. Essa postura de enfrentamento em relação aos preconceitos poderia não ser bem aceita, e a autora talvez viesse a sofrer sanções por sua ousadia.

O amor do casal de protagonistas tem sua primeira prova: Leonardo aparece ferido pelo disparo de uma arma, sem que se esclareça o motivo desse infortúnio. Ao deparar-se com o ferido, manifestam-se ideias no sentido de contrariar o destino imposto por seus irmãos. A morte poderia se converter em uma aliada, o

183

último recurso para que sua vontade pudesse prevalecer. Era conhecedora, afinal, de possuir o livre-arbítrio em optar pela vida ou pela morte:

Teria de combater, para defender o seu sossego; mas como sairia ela do combate, fraca e tímida moça, que só à vista de seus irmãos se enregelava de medo? Como sairia? Viva ou morta?... Ah! Leonardo ali estava, ferido e quase a morrer, talvez por sua causa: e sem ele para que queria ela a vida?... (CASTRO, 1997, p. 44)

O amor entre uma branca e um índio traz à lembrança um outro célebre casal do Romantismo brasileiro criado por José de Alencar em O Guarani (1857). Trata-se de Peri e Ceci. Porém, se em Alencar não houve a declaração com todas as letras do amor de um pelo outro, ficando sempre nas entrelinhas e nos subentendimentos, em relação à D. Narcisa de Villar o amor entre as duas raças é exposto em toda a sua grandeza. A personagem feminina não hesita em se declarar: “Sim, eu te amo, Leonardo!”. (CASTRO, 1997, p. 54).

O casamento estava próximo. A personagem feminina corresponde em grande parte aos ideiais românticos, mas chama a atenção seu ímpeto em desobedecer a seus irmãos, o que não era comum à época. A maior transgressão da personagem feminina está em uma sequência que narra o desespero de Leonardo em perceber que sua amada seria de fato desposada por outro homem. Já curado de seu ferimento, propõe-lhe então: “Fujamos daqui, minha querida, deixemos algum espaço entre nossos tiranos e nós: o céu nos guiará a um asilo seguro.” (CASTRO, 1997, p. 78). D. Narcisa se deixa levar por seu amor, assumindo todos os riscos e fugindo no dia de seu casamento com um indígena. Uma heroína romântica com coragem suficiente para não se subjugar às decisões de seus irmãos, encaminhando- se para a aventura de fugir, na esperança de fazer prevalecer sua vontade.

Ainda que o romance apresente superficialmente tratar apenas de uma ingênua história de amor, ele se distingue pelo fato de que transparece de suas linhas um posicionamento crítico, uma postura de indignação pela situação

184

feminina, e também pela criação da personagem D. Narcisa, que difere de outras personagens do Romantismo por suas opções e por enfrentar o jugo daqueles que a consideravam uma mercadoria. A resposta que deu ao pedido de fuga de Leonardo demonstra sua audácia: “Depois de uma curta oração, tomou um capote, p -lo sobre os ombros e, corajosa como uma mulher que ama deveras: – partamos, meu amigo, disse, ousada; leva-me para onde quiseres...”. (CASTRO, 1997, p. 82).

Fugiram para o mar, onde uma tempestade os fizera retroceder. Estavam na Ilha do Mel. Os irmãos de D. Narcisa e o coronel Pedro Paulo os encontraram em uma gruta. Era chegada a hora de pagarem por sua transgressão. O Sr. De Villar entregou Leonardo ao coronel: “– Guardai-o, meu amigo, porque é a vós que isso compete. Quanto a esta outra infame criatura, que nos desonra, torna a pertencer- me. Não vos deveis preocupar um momento com a criminosa cena que presenciamos. O seu castigo lavará a nódoa, que nos não pode manchar”. (CASTRO, 1997, p. 112). D. Narcisa exprime sua indignação frente à maneira como seus irmãos a tratavam:

[...] lembraste-vos de mim, quando por cálculos de vosso interesse me quisestes vender a títulos, pompas e riquezas sem número, que vinham encher o vosso orgulho: o que sei eu? Completar vossos planos de ambição. Nem um momento, a felicidade do meu coração veio lembrar- vos que a mulher vendida no casamento, nem sempre acha ventura no ouro de seu preço. (CASTRO, 1997, p. 114)

Uma luta desigual foi travada com quatro homens contra um. Leonardo lutou bravamente, mas estava praticamente morto quando ainda conseguiu reunir forças e atirar uma pedra certeira que atingindo o crânio do coronel o levou à morte.

A cena de tragédia ganha novos tons quando surge a mãe de Leonardo e ante todos confessa o seu segredo: Leonardo era filho de D. Luiz de Villar. Mesmo assim não consegue abrandar a ira dos irmãos da famíllia Villar. Leonardo estava já morto, nada mais prendia D. Narcisa à vida. Ela mesma clama aos irmãos que a

185

matem, pois sua felicidade agora estaria condicionada à morte, pois acreditava que isso seria um bem para ela, uma possibilidade de encontrar a felicidade no céu. Para seus irmãos, seria uma forma de castigá-la por seu erro, como que confirmando serem seus senhores, e retomarem a ordem social. Ainda que pese uma linguagem romanesca própria do período, a transcrição a seguir trata de um dos momentos mais violentos contra a mulher representado no Romantismo brasileiro:

D. Narcisa de Villar esperava com firmeza a vinda de seus algozes. [...]. Os assassinos se aproximaram da vítima, e sem se condoerem de tanta beleza e mocidade, com as próprias tranças de seus negros cabelos a sufocaram... Sem muito esforço dos malvados, a donzela caiu sem vida, como a tenra avezinha é esmagada pelas patas do quadrúpede! (CASTRO, 1997, p. 124)

A narrativa das páginas finais do romance evidencia toda a repulsa da narradora pelos acontecimentos e que poderia se estender como crítica à forma como as mulheres eram tratadas, mantendo-se em uma inaceitável atualidade, não somente em relação às mulheres burguesas, não somente no século XVII. Ao menos literariamente os assassinos foram punidos por seus crimes. a morte da personagem feminina não ficaria impune, ela havia sido sacrificada por buscar sua liberdade, por desejar conduzir sua própria vida. Se ela apenas morresse e seus algozes não fossem castigados, resultaria em uma falsa impressão de que sua morte teria sido merecida, por ter se insurgido contra seus irmãos. O castigo para eles seria fundamental para deixar claro que a atitude que tiveram fora criminosa.

Assim, no capítulo intitulado “Conclusão”, com contornos góticos a narradora revela o destino dos irmãos de D. Narcisa. D. Martim morre com um verme que o matou “cheio de sofrimentos e remorsos”. D. José de Villar morreu apóstornar-se frade. D. Luiz, pai de Leonardo, ficou alienado e corria pelas matas, até o dia em que o encontraram morto, desfigurado por um ataque de animais.

No documento Memórias do corpo (páginas 176-189)